quarta-feira, 29 de abril de 2020

Empirismo



Pensamos no coronavírus como o causador de uma doença respiratória. Um símbolo icônico da pandemia provavelmente seja o respirador ou uma máscara. 

Mas , em algumas situações , a infecção vai bem além de uma pneumonia grave . O crescente número de casos e experiências pelo mundo mostra que o vírus não se limita ao trato respiratório : problemas renais , circulatórios , do sistema nervoso central , da pele emergem em relatos dramaticos. É uma doença de alta complexidade talvez comparada nos seus desafios iniciais ao que já vivenciamos há 40 anos atrás com o HIV.Gradualmente a verdadeira face do coronavírus está emergindo.

A falta de ar e a inflamação pulmonar ´são bem entendidas. Os pulmões têm cerca de 6 milhões de alvéolos , a unidade funcional onde ocorre a oxigenação orgânica. É neste ponto que infecções severas causam um colapso fisiológico difuso que requer cuidados intensivos dependentes de ventilação mecânica. Paradoxalmente é uma intensa reação imunológica descontrolada.
Um mistério ronda esses casos pulmonares. Os médicos controlam a saturação de oxigênio dos pacientes com coronavírus monitorando o percentual de moléculas de hemoglobina na corrente sanguínea que estão “ carregando “ o oxigênio. Normalmente em pacientes saudáveis
uma saturação abaixo de 90 % é motivo de grande preocupação: orgãos vitais como o coração e o cérebro podem ser seriamente comprometidos.Mas , estranhamente , alguns pacientes com coronavírus podem se sentir confortáveis mesmo com níveis de saturação´baixos. Isto vem sendo chamado de hipoxemia silenciosa. Pode ser um sinal iminente de complicações graves e risco de morte e parece implausível.

Seria a hipoxemia um sinal de alerta para intervenções decisivas ? Ou o virus interfere com a hemoglobina? Teorias não faltam. Acima de tudo esse fato pesa na decisão de colocar o paciente em ventilação mecânica.Enquanto não entendermos melhor a fisiologia por trás da hipoxemia silenciosa e porque apenas alguns pacientes passam por isto , viveremos este mistério sendo que , de alguma forma , este padrão poderá decidir quem deveria ser intubado com prioridade.

Outra particularidade que vemos em alguns pacientes , e que justifica toda a disfunção respiratória , é a intensa reação imunológica que desencadeiam resultando em um processo inflamatório difuso pelo pulmão.Isso ocorre principalmente pela liberação de citocinas.Novamente , porque isso só ocorre com alguns indivíduos não sabemos.

O sistema circulatório também pode ser alvo de uma guerra entre sangramento e coagulação. Através da medida de uma proteína chamada d-dímero, é possível ter uma noção do quanto de coagulação pode estar ocorrendo . Muitas infecções causam um aumento irregular dessa proteína tornando a correlação com a clínica muito dificil de ser feita. Enfrentamos então um desafio : a anticoagulação preventiva que é usada de rotina em pacientes admitidos no hospital pode agravar um distúrbio de coagulação. Mas , níveis altos de d-dímero demandam agressiva anticoagulação.
Pacientes em situação grave de saúde normalmente se submetem à dosagem de proteínas chamadas troponinas normalmente encontradas no musculo cardíaco.Sua presença indica dano cardíaco.Alguns pacientes com o coronavírus têm níveis elevados de troponina indicando possível dano ao coração. Não sabemos qual tipo nem como abordar

Relatos iniciais da China supõem que o coronavírus possa atacar diretamente o musculo cardiaco produzindo uma situação chamada de miocardite.

Muitos pacientes críticos com coronavírus desenvolvem insuficiência renal tendo que recorrer às máquinas de diálise. Em alguns locais elas já estão sendo tão escassas quanto os respiradores.
Alguns pacientes podem não recuperar sua função renal.A provável explicação é a baixa oxigenação renal que causaria danos estruturais aos rins.

Outros órgãos podem também ser comprometidos.Isso se justifica pelo fato que a proteína que serve de receptor para o coronavírus , a ACE-2 , não está apenas localizada no trato respiratório mas também no estômago , intestino e cérebro. Existem relatos de pacientes que apresentaram encefalite e derrame.Também têm sido notados casos de cetoacidose , uma complicação possível do diabetes , em pacientes sem histórico para a doença.

Lorraine Daston escreveu em um ensaio recente que é natural se lançar em busca de respostas no inicio de uma pandemia. “ em momentos de incerteza científica a observação geralmente considerada de pobre valor de evidências é uma valiosa ferramenta”.
No momento vivemos uma boa dose de empirismo.A melhor forma hoje de superar tanta ignorância é viver a experiência de um paciente por vez.
Com todos os seus mistérios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário