Pensamos no coronavírus como o causador de
uma doença respiratória. Um símbolo icônico da pandemia provavelmente seja o
respirador ou uma máscara.
Mas , em algumas situações , a infecção vai bem além
de uma pneumonia grave . O crescente número de casos e experiências pelo mundo
mostra que o vírus não se limita ao trato respiratório : problemas renais ,
circulatórios , do sistema nervoso central , da pele emergem em relatos
dramaticos. É uma doença de alta complexidade talvez comparada nos seus
desafios iniciais ao que já vivenciamos há 40 anos atrás com o HIV.Gradualmente
a verdadeira face do coronavírus está emergindo.
A falta de ar e a
inflamação pulmonar ´são bem entendidas. Os pulmões têm cerca de 6 milhões de alvéolos
, a unidade funcional onde ocorre a oxigenação orgânica. É neste ponto que infecções
severas causam um colapso fisiológico difuso que requer cuidados intensivos
dependentes de ventilação mecânica. Paradoxalmente é uma intensa reação
imunológica descontrolada.
Um mistério ronda esses
casos pulmonares. Os médicos controlam a saturação de oxigênio dos pacientes
com coronavírus monitorando o percentual de moléculas de hemoglobina na
corrente sanguínea que estão “ carregando “ o oxigênio. Normalmente em pacientes saudáveis
uma saturação abaixo de
90 % é motivo de grande preocupação: orgãos vitais como o coração e o cérebro
podem ser seriamente comprometidos.Mas , estranhamente , alguns pacientes com
coronavírus podem se sentir confortáveis mesmo com níveis de saturação´baixos.
Isto vem sendo chamado de hipoxemia silenciosa. Pode ser um sinal iminente de
complicações graves e risco de morte e parece implausível.
Seria a hipoxemia um
sinal de alerta para intervenções decisivas ? Ou
o virus interfere com a hemoglobina? Teorias não faltam. Acima de tudo esse fato pesa
na decisão de colocar o paciente em ventilação mecânica.Enquanto não
entendermos melhor a fisiologia por trás da hipoxemia silenciosa e porque
apenas alguns pacientes passam por isto , viveremos este mistério sendo que ,
de alguma forma , este padrão poderá decidir quem deveria ser intubado com
prioridade.
Outra particularidade que
vemos em alguns pacientes , e que justifica toda a disfunção respiratória , é a
intensa reação imunológica que desencadeiam resultando em um processo
inflamatório difuso pelo pulmão.Isso ocorre principalmente pela liberação de
citocinas.Novamente , porque isso só ocorre com alguns indivíduos não sabemos.
O sistema circulatório também pode ser alvo de uma guerra entre
sangramento e coagulação. Através da medida de uma proteína chamada d-dímero, é
possível ter uma noção do quanto de coagulação pode estar ocorrendo . Muitas
infecções causam um aumento irregular dessa proteína tornando a correlação com
a clínica muito dificil de ser feita. Enfrentamos então um desafio : a
anticoagulação preventiva que é usada de rotina em pacientes admitidos no
hospital pode agravar um distúrbio de coagulação.
Mas , níveis altos de d-dímero demandam
agressiva anticoagulação.
Pacientes em situação grave de saúde
normalmente se submetem à dosagem de proteínas chamadas troponinas normalmente
encontradas no musculo cardíaco.Sua presença indica dano cardíaco.Alguns
pacientes com o coronavírus têm níveis elevados de troponina indicando possível
dano ao coração. Não sabemos qual tipo nem como abordar
Relatos iniciais da China supõem
que o coronavírus possa atacar diretamente o musculo cardiaco produzindo uma
situação chamada de miocardite.
Muitos pacientes críticos com coronavírus desenvolvem
insuficiência renal tendo que recorrer às máquinas de diálise. Em alguns
locais elas já estão sendo tão escassas quanto os respiradores.
Alguns pacientes podem não recuperar sua função renal.A
provável explicação é a baixa oxigenação renal que causaria danos estruturais
aos rins.
Outros órgãos podem também ser comprometidos.Isso se
justifica pelo fato que a proteína que serve de receptor para o coronavírus , a
ACE-2 , não está apenas localizada no trato respiratório mas também no estômago
, intestino e cérebro. Existem relatos de pacientes que apresentaram encefalite
e derrame.Também têm sido notados casos de cetoacidose , uma complicação
possível do diabetes , em pacientes sem histórico para a doença.
Lorraine Daston escreveu em um ensaio recente que é natural
se lançar em busca de respostas no inicio de uma pandemia. “ em momentos de
incerteza científica a observação geralmente considerada de pobre valor de evidências
é uma valiosa ferramenta”.
No momento vivemos uma boa dose de empirismo.A melhor forma
hoje de superar tanta ignorância é viver a experiência de um paciente por
vez.
Com todos os seus mistérios.