A medicina evolucionária (ou evolutiva) e a medicina
narrativa são duas estruturas poderosas de abordagem da prática médica que
surgiram nos últimos trinta anos.
Uma é baseada na ciência biológica e nas idéias de Charles
Darwin, junto com seus seguidores mais recentes. A outra veio das ciências
sociais. Baseia-se em ideias que são familiares na filosofia e nas humanidades
sobre o papel central da tradição narrativa de histórias em todas as culturas
humanas. À primeira vista, as duas estruturas e os movimentos a elas associados
podem parecer opostos como modos de pensar a medicina, ou mesmo incompatíveis.
Como uma estrutura que se baseia na aceitação da verdade biológica pode ser
harmonizada com uma atrelada à subjetividade e ao relativismo? É possível,sim,a
argumentar que elas são de fato complementares e têm o potencial de enriquecer
uma à outra.
A medicina evolucionária segue o famoso ditado do
geneticista Theodosius Dobzhansky: "Nada na biologia faz sentido exceto à
luz da evolução."
Uma vez que a medicina está tão profundamente ancorada na
biologia, os estudiosos da medicina evolucionária argumentam que os médicos
deveriam estender sua curiosidade a partir de questões familiares como 'o que
causou esta doença?' ou 'como devemos tratá-la?' a outras mais fundamentais,
como 'essa condição poderia ter surgido em humanos porque conferiu benefícios
em algumas circunstâncias?' e 'é possível que os tratamentos possam ter efeitos
prejudiciais ao neutralizar esses benefícios?'
Essas questões nos convidam a adotar uma perspectiva baseada
em tempos diferentes ao contemporâneo e em outros tipos de sociedades que não a
nossa. As questões também podem ser perturbadoras porque sugerem que as
mentalidades médicas baseadas em explicações aproximadas e soluções lineares
podem ter utilidade a curto prazo, mas podem ser muito limitadas em seu escopo
intelectual e ecológico.
É incontestável o argumento convincente para o ensino de
biologia evolutiva nas escolas médicas, a fim de sustentar uma compreensão
adequada das outras ciências básicas.
A medicina narrativa tem uma essência diferente. Baseia-se
na ideia de que os seres humanos se entendem principalmente em termos das
histórias que contam aos outros e a si mesmos.De acordo com essa ideia, a alegria
ou o sofrimento, e os significados que atribuímos a eles, não surgem apenas de
eventos. Eles são construídos da mesma forma que romancistas ou cineastas criam
suas próprias obras: com crenças, valores, personagens, cronogramas,
quebra-cabeças e futuros imaginários. A medicina narrativa considera cada
problema médico inseparável da história na qual está inserido. Ele faz
perguntas como: 'o que influenciou como esse paciente está construindo sua
história?' e 'por que eles estão descrevendo para mim neste momento desta
maneira particular?'
Ela vê os problemas e as histórias como interativos: você
não pode resolver o problema de ninguém, a menos que tenha também uma história
melhor para contar. Sua perspectiva é melhor resumida no título de um famoso
artigo do médico de família americano Howard Brody: “Minha história está
quebrada, como posso consertá-la?”
Como a medicina evolucionária, a medicina narrativa também
reivindicou a centralidade no currículo médico. Mas quando suas origens são tão
diferentes e parecem estar puxando em direções totalmente diferentes, é
realmente possível que ambas possam ser consideradas disciplinas unificadoras
para o ensino e a prática da medicina?
A resposta está no campo de estudo conhecido como evolução
cultural.
A teoria evolucionária moderna foi muito além dos tentilhões
e macacos sobre os quais Darwin escreveu. Ela examinou como seus princípios
básicos podem ser aplicados nas culturas humanas. Também livrou-se da
contaminação do chamado "determinismo genético" - a ideia de que os
genes por si sós governam o destino dos indivíduos, independentemente de
qualquer interação com outras pessoas ou com a sociedade em geral. A teoria da
evolução cultural têm muitos sabores, mas o mais familiar deles é provavelmente
a tese de Richard Dawkins. Como todos os evolucionistas, Dawkins acredita
firmemente que todas as nossas ações são, em última análise, direcionadas à
preservação do eu, da progênie e dos parentes. No entanto, em O Gene Egoísta ele
argumenta que os humanos, sozinhos na terra 'podem se rebelar contra a tirania
dos replicadores egoístas. Nós fazemos isso, ele propõe, por meio da
transmissão cultural e da seleção natural ao longo do tempo histórico de traços
culturais com valor de sobrevivência.
Esse tipo de argumento foi desenvolvido por muitos outros.Outra
abordagem interessante da evolução cultural está em um livro do ecologista
evolucionista James Chisholm com o maravilhoso título Sex, Hope and Death . Chisholm argumenta que tudo o que surge da
natureza humana - incluindo criação de filhos, religiões, mitos, leis e
moralidade - é uma manifestação de nossas estratégias reprodutivas; tanto por
sua variedade quanto por semelhanças subjacentes, eles contribuíram para nossa
posição como espécie que atualmente prevalece na Terra. Outros escritores
argumentaram que contar histórias e a troca de diferentes narrativas são uma
característica crucial de como os humanos transmitem e desenvolvem a
compreensão cultural, em todos os níveis, desde sociedades inteiras até as
histórias que os pais contam aos filhos.Conseqüentemente, a narração de
histórias, a transmissão cultural e a descendência biológica podem ser vistas
como processos paralelos ou aninhados uns nos outros. A partir desta
perspectiva, é inteiramente possível entender o que médicos e pacientes estão
fazendo durante suas interações como evolução no momento: experimentos de
criação de sentido que funcionam da mesma maneira que qualquer outro processo
evolutivo, por tentativa e erro, e em fluxo contínuo.
Muitas vezes as pessoas interpretam mal a frase
'sobrevivência do mais apto'. Não se refere necessariamente à aptidão no
sentido ginástico, mas sim à sobrevivência de tudo o que "se ajusta"
ao ambiente mutável e freqüentemente imprevisível em que cada organismo se
encontra. Não é um grande esforço imaginar que o que devemos fazer com cada
paciente é perseguir dois objetivos evolutivos ao mesmo tempo: encontrar a
solução biológica mais adequada para seus problemas, ao mesmo tempo que
colaboramos com eles na criação de uma história que ' encaixa'. Cada vez que
fazemos isso com sucesso, estamos produzindo uma síntese da medicina evolutiva
e da narrativa. Da mesma forma, os movimentos para promover essas duas
estruturas não estão em conflito um com o outro. Ambos estão contribuindo, de
maneiras diferentes, à visão que o próprio Darwin expressou tão poeticamente: 'Há
grandeza nessa visão da vida, com seus vários poderes, tendo sido originalmente
soprada em algumas formas ou em uma; e que ... de um começo tão simples, as
formas infinitas mais belas e maravilhosas foram, e estão sendo, evoluídas.
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