domingo, 18 de abril de 2021

o vírus da desinformação

 

Há um novo vírus entre nós.Podemos contrair essa doença por contato pessoal ou digitalmente.Poucos de nós possuem imunidade, alguns são até hospedeiros voluntários; e, apesar de tudo o que aprendemos sobre ele, esse vírus está se mostrando mais esperto e mais difícil de erradicar do que qualquer um poderia esperar.

O nome desse vírus é desinformação.

Não é nada novo, é claro. Notícias falsas já existiam antes mesmo da invenção da imprensa, embora a primeira farsa jornalística em grande escala tenha ocorrido em 1835, quando o jornal New York Sun publicou seis artigos anunciando a descoberta de vida na Lua (especificamente, unicórnios, homens-morcegos e castores bípedes). Devemos lembrar também das primeiras caças às bruxas modernas ,os mitos coloniais que retratavam os escravos como uma espécie diferente; os vaivéns de propaganda antijudaica e antigermânica durante as guerras mundiais etc. A história está repleta de enganos.

O que é diferente hoje é a velocidade, os temas e a escala da desinformação, incrementada pela tecnologia. A mídia online deu voz a grupos anteriormente marginalizados, incluindo vendedores de mentiras, que turbinaram as ferramentas de engano à sua disposição. A transmissão de falsidades agora abrange um ciclo viral no qual a inteligência artificial, robôs profissionais e nossas próprias atividades de compartilhamento de conteúdo ajudam a proliferar e amplificar alegações enganosas.

Esses novos desenvolvimentos vieram na esteira do aumento da desigualdade, da queda do engajamento cívico e do desgaste da coesão social - tendências que nos tornam mais suscetíveis à demagogia. Tão alarmante quanto, um crescente corpo de pesquisas na última década está lançando dúvidas sobre nossa capacidade - até mesmo nossa disposição - de resistir à desinformação diante de evidências corretivas.

Estudos mostram que não importa o quão clara seja a correção, normalmente mais da metade das referências dos sujeitos à desinformação original persistem. O que é notável é que as pessoas parecem se apegar à falsidade, sabendo que é falsa. Isso sugere que, mesmo se desmascarados com sucesso, os mitos ainda podem se insinuar nos julgamentos e influenciar as decisões - um resultado referido na literatura como "o efeito de influência contínua".

Por que isso acontece? De acordo com Jason Reifler, professor de ciência política da Universidade de Exeter, tendemos a aceitar as informações recebidas pelo seu valor nominal, 'porque a existência da sociedade humana se baseia na capacidade das pessoas de interagir e nas expectativas de boa fé. ' Além disso, os mitos podem assumir formas sutis e engenhosas que fingem legitimidade, tornando-os difíceis de expor sem uma análise cuidadosa ou checagem de fatos.Muitos não estão dispostos a exercer um esforço mental extra para formar uma visão crítica e podem facilmente sucumbir ao engano. E, uma vez que uma falsidade se insinue e se torne codificada na memória - mesmo que fracamente -, ela pode se mostrar incrivelmente pegajosa e resistente à correção. Se o mito se encaixa na "lógica" dos eventos, sua retração deixa um buraco e as engrenagens da história não se encaixam mais.

Outra razão pela qual a desinformação resiste à correção é a repetição. Uma vez que algo se repete com bastante frequência - afirmações sensacionalistas nas redes sociais; lendas urbanas etc - pode induzir as pessoas a considerá-lo verdadeiro apenas por causa de sua familiaridade. O efeito de verdade ilusório, como é conhecido, sugere que quanto mais fácil de processar e mais familiar algo for, maior será a probabilidade de acreditarmos nele. O que é exatamente o que repetir uma afirmação enganosa faz - fazer com que ela desça suavemente fortalecendo as vias neurais ligadas a ela.

Nos últimos anos, à medida que a desinformação se infiltrava em grandes camadas da sociedade, os cientistas procuravam os métodos mais eficazes para combatê-la. Para desmascarar um mito com sucesso, é útil fornecer uma explicação causal alternativa para preencher a lacuna mental que a retração do mito poderia deixar. Os contra-argumentos também funcionam, pois apontam as inconsistências contidas no mito, permitindo às pessoas resolver o conflito entre o enunciado verdadeiro e o falso. Outra estratégia é levantar suspeitas sobre a origem da desinformação.

Mas não é tão simples assim e pode piorar. Suponha que a mensagem perfeita encontre uma pessoa que até consiga fixar suas falsas crenças: as atitudes e o comportamento dessa pessoa mudarão de acordo?  As evidências são contraditórias. Mesmo em estudos que encontram um efeito indireto nas intenções, esse efeito é pequeno. Em outras palavras, você pode entregar os fatos às pessoas, pode até fazer com que elas aceitem esses fatos - e ainda assim pode não mudar nada.

Uma demonstração preocupante dessa possibilidade vem do campo das vacinas. Em um estudo de 2016, feito Dartmouth College em New Hampshire, testou duas abordagens para desmascarar o mito de que as vacinas contra a gripe realmente causam a gripe - um mito parcialmente responsável pelas baixas taxas de vacinação e milhares de mortes evitáveis ​​por influenza nos EUA . Um grupo de participantes viu materiais corretivos oficiais dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, enquanto outro grupo recebeu informações sobre os riscos de não vacinar. Este último grupo não mostrou nenhuma mudança nas crenças do mito, enquanto no grupo de correção as crenças do mito declinaram substancialmente, mesmo entre os sujeitos mais céticos. Parecia que a correção funcionou - e de forma brilhante. Mas o que mais  interessava não era a crenças dos participantes mas as suas intenções de vacinar - e, em toda a amostra, estas não se mexeram em absoluto. Os indivíduos que mais hesitaram em vacinar acabaram ainda menos dispostos a vacinar do que antes do estudo.

Para compreender totalmente a natureza perniciosa do vírus da desinformação, precisamos reconsiderar a ” inocência ” do hospedeiro. É fácil nos vermos como vítimas de engano por atores mal-intencionados. Também é tentador pensar em ser mal informado como algo que acontece com outras pessoas - algumas massas sem nome, facilmente influenciadas por demagogia e escândalo. Já ouvi esse sentimento repetido várias vezes por outras pessoas, a implicação sempre sendo que eles e eu não éramos como aquelas outras pessoas mal informadas. Não: fomos educados, fomos ensinados a pensar, imunes à fraqueza. Mas, como se constatou, a desinformação não atinge apenas os ignorantes: às vezes, aqueles que parecem menos vulneráveis ​​ao vírus podem se provar seus hospedeiros mais perspicazes.

 Nunca as sociedades humanas souberam tanto sobre como mitigar os perigos que enfrentam, mas concordam tão pouco sobre o que sabem coletivamente .

Em vez de ser uma simples questão de inteligência ou pensamento crítico,estamos diante de crenças pessoais profundamente arraigadas.  Nos casos em que as motivações de proteção da identidade desempenham um papel fundamental, as pessoas tendem a buscar e processar informações de maneiras tendenciosas que estão de acordo com suas crenças anteriores. Eles podem prestar atenção apenas às fontes com as quais concordam e ignorar pontos de vista divergentes. Ou eles podem acreditar em afirmações congruentes sem pensar por um momento, mas não poupam esforços para encontrar buracos em afirmações incongruentes.

Isso sugere uma conclusão incômoda: que os mais bem informados entre nós podem ser mais, não menos, suscetíveis à desinformação se ela alimentar crenças e identidades queridas.

Ironicamente, no entanto, as escolhas individuais racionais podem ter consequências coletivas irracionais. À medida que os vínculos tribais prevalecem, as emoções triunfam sobre as evidências, e o desacordo resultante impede a ação em questões sociais importantes.

Recentemente, o desacordo público transbordou para a própria ideia da verdade. O termo 'pós-verdade' tornou-se a palavra do ano 2016. O problema da pós-verdade não é uma mancha no espelho. O problema é que o espelho é uma janela para uma realidade alternativa. Nessa outra realidade, marcada pela ascensão global do populismo, as mentiras se transformaram em uma expressão de identidade, uma forma de pertencimento a um grupo. No Brasil, o governo com seu discurso de ódio coloca o povo" contra " as elites e ataca os chamados valores cientificos - educação , evidência, perícia.

A mentira assume as armadilhas do anti-establishment, minando a verdade como norma social. Este é o vírus da desinformação em sua forma mais diabólica.

Como disse o biólogo escocês D'Arcy Wentworth Thompson em 1917, “tudo é o que é porque ficou assim”.

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