quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

o teatro contemporâneo

 








Baudrillard escreveu como quem observa um palco mal iluminado.Nada é exatamente falso,mas quase nada é plenamente real. A sensação de existir num cenário onde tudo parece encenação é diagnóstico sociológico.

O mundo contemporâneo opera por simulações. A vida vira espetáculo e o sujeito,inevitavelmente,vira personagem.

O hiper-real de Baudrillard funciona assim: primeiro você imita um gesto, depois o gesto imita você, até que não exista mais distinção entre origem e cópia. A autenticidade se dissolve. Tudo se apresenta como performance. Trabalho performado. Afeto performado. Indignação performada. Alegria performada. O cotidiano se transforma em feed permanente onde cada ação pode ser convertida em narrativa consumível. Você deixa de viver e passa a administrar aparências.

O problema não é apenas estético; é ontológico. Quando tudo vira encenação, o sujeito perde referência do que sente. Como identificar desejo próprio se o desejo é medido por curtidas. Como sustentar tristeza se a tristeza precisa parecer elegante. Como formular opinião se a opinião deve caber em formatos virais. Baudrillard sugeriria que, nesse ambiente, as pessoas não mentem; elas simplesmente reproduzem códigos. Elas não encenam para enganar, mas porque a lógica exige encenação para existir. O real se torna inconveniente, lento, assimétrico demais para se sustentar num mundo calibrado para consumo instantâneo.

O mais cruel é que a encenação cria sensação de proximidade enquanto intensifica o vazio. Todos parecem acessíveis, mas ninguém é realmente tocável. Todos parecem expostos, mas quase nada é revelado. A transparência total gera opacidade. O excesso de visibilidade produz cegueira. Baudrillard descreveria isso como implosão do sentido: há tanta informação que o sentido evapora, tanta exposição que nada é visto, tanta comunicação que a comunicação se torna ruído.

Nesse mundo, até a intimidade vira produto simbólico. A narrativa de si substitui o si. A vida privada se converte em matéria de circulação. As pessoas passam a atualizar versões próprias como quem faz manutenção de um software. A pergunta fundamental deixa de ser “quem sou eu” e passa a ser “como devo parecer”. O sujeito trabalha para manter coerência estética entre sua existência e sua vitrine. A encenação deixa de ser exceção e se torna ambiente estrutural.

O sentimento de exaustão nasce justamente dessa incongruência. O corpo sabe quando não está vivendo algo, mas encenando. Ele percebe a distância entre experiência vivida e experiência exibida. Isso produz uma espécie de anemia ontológica: uma vida saturada de imagens, mas pobre de presença. Baudrillard chamaria essa condição de sedução falsificada, uma sedução que não envolve risco, apenas aparência. O sujeito não se engaja, apenas circula.

A consequência é psicológica e política. Um mundo que funciona como simulação dificulta o conflito real. A crítica vira estética. A revolta vira tendência. A indignação vira template. A própria resistência passa a ser capturada pela lógica da encenação. Nada escapa ao espetáculo porque o espetáculo absorve tudo. Baudrillard antecipou a era em que até o colapso vira marketing.

Como sobreviver a isso?. Não existe receita, e ele não seria ingênuo o bastante para propor. Mas há gestos possíveis. Primeiro, reconhecer a simulação como ambiente, não como falha pessoal. Depois, criar zonas de realidade mínima: conversas que não precisam ser exibidas, atos que não precisam de plateia, erros que não precisam de justificativa pública. Pequenos fracassos que devolvem textura à existência.

Entender Baudrillard não significa tornar-se cínico. Significa abandonar a fantasia de que autenticidade plena é possível num sistema baseado em imagens. O que resta è um tipo de lucidez prática: escolher deliberadamente momentos de não encenação. Silêncios que não viram conteúdo. Vidas que não precisam performar profundidade. Relações que não operam como espelho social.

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