quarta-feira, 26 de novembro de 2025

o apagamento cultural da morte






A morte, que um dia foi o centro simbólico das culturas, tornou-se um ruído incômodo no

fundo da modernidade. Vivemos como se ela não existisse — e quando surge, é tratada 

como erro, não como estrutura.

A civilização que promete juventude eterna e produtividade infinita não sabe mais morrer.

O fim foi terceirizado: escondido em hospitais, estetizado em redes sociais, domesticado em

discursos de superação. Em vez de elaborar a perda, a cultura contemporânea a disfarça —

transformando o luto em distração e a mortalidade em falha técnica.

Freud via na morte a base da vida psíquica: Eros e Tânatos são forças inseparáveis. O impulso de vida só se define pela presença do fim. Mas a sociedade atual, regida pela lógica do desempenho e da transparência, reprimiu Tânatos. A morte foi recalcada — e o recalcado retorna em ansiedade, pânico, colapsos. A negação do fim cria sujeitos incapazes de luto, que prolongam experiências, amores e identidades como se nada pudesse se encerrar. O resultado é uma existência sem encerramentos, feita de continuidades forçadas.

A infantalização diante do fim nasce da recusa em aceitar o limite. O adulto, dizia Winnicott, é aquele que suporta a perda sem desmoronar; a criança, ao contrário, acredita na reversibilidade de tudo. Nossa cultura, obcecada por juventude e performance, regrediu a essa posição infantil: quer viver sem consequências, amar sem risco, envelhecer sem declínio. A morte, que deveria dar forma à existência, foi substituída por uma promessa de continuidade sem profundidade. O resultado é uma vida que não termina, mas também nunca se cumpre.

Heidegger via na consciência da finitude a condição da autenticidade. Só quem encara a morte pode realmente viver, pois é no limite que o ser se revela. Negar a morte é negar a própria liberdade. Ao eliminar o fim da experiência humana, a cultura elimina também a gravidade do viver. Tudo se torna reversível, descartável, substituível. A imortalidade imaginária produz não coragem, mas superficialidade: se nada acaba, nada importa.

A morte precisa ser reintegrada ao simbólico — não como tragédia, mas como horizonte. Ela é o ponto de tensão que dá sentido à narrativa. A cultura que aprende a morrer recupera também a arte de viver.

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