Vivemos em um teatro do absurdo.
Todos estão atuando, ninguém está dirigindo, e o roteiro se
reescreve sozinho no meio da cena. A cortina se abre diariamente para a mesma
farsa: confusão generalizada com iluminação impecável. Os aplausos?
Automatizados, é claro. Até os aplausos agora são terceirizados.
A vida moderna não é simplesmente teatral, é atuação
metódica sem método, um ensaio perpétuo para uma estreia que nunca chega.
Improvisamos em meio a notícias de última hora e jantares, munidos de adereços
digitais e coreografias emocionais. A humanidade não evoluiu; apenas está mais
bem iluminada. A razão do Iluminismo nos deu sistemas; a cenografia do nosso
século nos dá assinaturas. Não vivemos, transmitimos. Não acreditamos,
ensaiamos a crença enquanto secretamente esperamos que alguém, em algum lugar,
ainda esteja assistindo.
Às vezes, imagino Martin Esslin,responsável pelo tema “teatro
do absurdo”, navegando pelo Twitter, perplexo com um mundo onde todos se
expressam por meio de slogans e a indignação tem seu próprio emoji. Nossas
timelines estão repletas de sintaxe polida e convicção vazia, frases montadas,
produzidas em massa e com garantia de desmoronar sob o peso do significado
real. Não é conversa; é solilóquio competitivo. Todos falam, ninguém escuta, e
os aplausos vêm na forma de notificações. Até Sócrates, o eterno provocador da
razão, teria jogado seu celular no Mar Egeu e se dedicado à cerâmica. Não
trocamos mais ideias, selecionamos reações, como exposições de museu de nossas
melhores versões, rotuladas e aprovadas por algoritmos.
A cultura, nosso suposto espelho da transcendência,
tornou-se um teatro de espelhos… brilhante, recursivo e levemente nauseante. O
que antes servia como iniciação ao mistério agora se assemelha a um ensaio
geral para o significado: os gestos permanecem, mas os deuses abandonaram o
prédio. A arte, outrora um ato de insurreição metafísica, agora se apresenta
como um substituto lendo de um teleprompter, ciente de que ninguém está
realmente assistindo. A beleza foi domesticada; a vanguarda agora paga aluguel.
O artista, outrora um conspirador meio louco contra a
banalidade, tornou-se um funcionário público da sensibilidade, preenchendo
formulários, buscando financiamento, produzindo obras que devem tanto provocar
quanto agradar, um paradoxo que só o absurdo poderia sustentar. Não visitamos
exposições para sermos transformados, mas para confirmar nossa presença; os
museus assemelham-se a aeroportos da alma, cheios de viajantes cansados
fingindo que sua escala tem um propósito. O que Pirandello vislumbrou como
tragédia, personagens vagando em busca de um autor, tornou-se um estilo de
vida: todos improvisando significados diante de uma plateia distraída demais
para aplaudir. O palco cultural não desmoronou; simplesmente foi deixado
funcionando durante a noite, atores e espectadores murmurando suas falas para
ninguém em particular.
Até mesmo o amor, esse desafio mais ilógico à morte, agora
se desenrola como uma cena de uma farsa absurda, dois protagonistas aguardando
o sinal para sentir algo genuíno enquanto o cenário desmorona ao seu redor em
perfeita sincronia. O erotismo foi domesticado em um ritual de gestos tão
ensaiados que mal se qualificam como humanos: uma coreografia de gestos
evasivos e negativas, onde a paixão é representada com distanciamento. O que
antes exigia o risco da entrega agora parece burocracia. As pausas, os
mal-entendidos requintados, a emoção ansiosa de não saber qual é a sua posição,
tudo foi substituído por uma franqueza calculada, por uma burocracia emocional
que insiste na “comunicação clara” em detrimento do mistério.
Talvez essa seja a comédia final: dominamos a arte de amar
com serenidade, de terminar um relacionamento sem desmoronar. A cortina se
fecha, a plateia boceja e nos curvamos, ainda sem saber ao certo se a peça foi
uma tragédia, uma farsa ou simplesmente um ensaio.
Apaixonar-se hoje é como entrar numa peça absurda sem
roteiro, ambos os amantes convencidos de que são os protagonistas, sem saber ao
certo em que gênero se encontram. O afeto é improvisado, o compromisso,
improvisado, as saídas prematuras. Tudo oscila entre a tragédia e a sátira, com
todos demasiado autoconscientes para acreditarem nas suas próprias falas e
demasiado solitários para deixarem de as representar. Talvez esse seja o
absurdo moderno: ansiamos por autenticidade, mas a ensaiamos diariamente.
Nossas emoções foram achatadas pela própria publicidade,
prensadas como flores entre as páginas da autoexpressão. Dizem-nos para “sentir
profundamente”, mas apenas dentro do espectro aprovado: tristeza que fica bem
em fotos, raiva que pode ser monetizada, desespero que se dissolve polidamente
em afirmações em tons pastel. Até mesmo o luto agora precisa demonstrar boa
postura. Selecionamos crises, as legendamos como “crescimento” e chamamos isso
de autenticidade.
A tragicomédia reside na precisão com que representamos a
sinceridade, cada tremor ensaiado, cada confissão iluminada para criar
simetria. O sentimento genuíno tornou-se incenável, demasiado incontrolável
para o algoritmo da empatia. Entramos no reino de um mundo onde o clamor por
sentido se torna mais uma forma de conversa fiada.
E o teatro só fica mais barulhento. O palco expande-se das
salas de conferência aos parlamentos, do PowerPoint à propaganda… a mesma
coreografia, apenas com figurinos melhores. A política, entretanto, tornou-se
totalmente vanguardista, embora sem o intelecto ou o perigo que outrora
justificavam o termo. Não é mais governança, mas uma trupe itinerante do
absurdo, um espetáculo imersivo onde os cenários mudam mais rápido do que as
falas podem ser memorizadas. Cada ultraje é coreografado, cada pedido de
desculpas pré-aprovado, cada gesto espontâneo, produto de dez ensaios e um
grupo focal. O Teatro do Absurdo sonhava em expor a futilidade da linguagem; a
política moderna o aperfeiçoou. As coletivas de imprensa se assemelham a uma
farsa trágica: microfones se abrem como flores metálicas, todos falam, ninguém
escuta, e o significado se dissolve em aplausos. A multidão ainda se transforma em feras, só
que agora o faz diante das câmeras, documentando orgulhosamente a metamorfose
em tempo real. O absurdo não é que a crença tenha desaparecido, mas que a
convicção se tornou fantasia.
E enquanto os atores mudam e os slogans se renovam, a peça
em si se recusa a terminar. O absurdo da política se mistura ao absurdo do
tempo, um bis interminável apresentado para uma plateia tão desorientada que
nem percebe que a cortina nunca se fecha.
Assim, até o tempo perdeu sua dignidade linear, desmoronando
em um ensaio geral interminável para um final que se recusa a chegar. Os dias
não avançam mais; circulam como figurantes cansados aguardando sua deixa em
uma peça que já dura tempo demais. Cada ciclo de notícias parece um déjà vu
repetido indefinidamente, o ontem reescrito nas manchetes de hoje, com apenas
os adjetivos rearranjados. Vivemos não na história, mas no eco, suspensos em um
presente beckettiano onde nada começa, nada termina, e todos continuam falando
apenas para provar que ainda estão vivos. Pressentimos o colapso, mas o
protocolo exige que prossigamos. O apocalipse já aconteceu, apenas se recusou a
se despedir. Agora passamos nossas tardes arrumando as consequências, fingindo
que o show deve continuar, embora ninguém consiga se lembrar exatamente por que
começou.
E em meio a esse carrossel temporal, buscamos uns aos
outros, não por conexão, mas para provar que o carrossel ainda gira. A amizade
também se tornou parte do espetáculo. Antes, ela oferecia um refúgio da
performance, um backstage onde se podia remover a máscara, falar sem roteiro e
ser brevemente perdoado pela incoerência. Agora, a amizade se assemelha a um
serviço de assinatura com níveis flexíveis de atenção. Mantemos nossos laços
por meio de gestos que imitam intimidade (curtidas, emojis, corações de reação),
como se o afeto pudesse sobreviver ao gotejar constante de aplausos
pixelizados. O absurdo reside em nossa fé na tecnologia; agimos como se a
proximidade pudesse ser sustentada sem presença, como se o reconhecimento
pudesse substituir a compreensão.
E quando a cortina se fecha em nossos teatros particulares,
buscamos significado nas instituições, apenas para encontrar o mesmo roteiro,
reescrito em jargão acadêmico. Até mesmo a educação, outrora o ensaio da razão,
tornou-se outra performance absurda, degenerando em um anfiteatro corporativo
onde ideias são classificadas por seu valor de mercado e alunos ensaiam a
certeza como se a ambiguidade fosse um crime. A sala de aula se tornou um palco
para a exaustão mútua: professores representando uma autoridade na qual não
acreditam mais, alunos representando um interesse que não sentem mais. O
absurdo não é que o conhecimento tenha declinado, mas sim seu propósito. Antes,
a educação prometia uma iniciação à complexidade; agora, oferece certificação
em conformidade.
E o que resta do aprendizado quando as perguntas são
padronizadas? Apenas a linguagem… e mesmo ela se juntou à farsa. As palavras,
outrora instrumentos do pensamento, agora encenam sua própria paródia de
significado. A linguagem sucumbiu à grande redução da era moderna… comprimida,
simplificada, tornada obediente ao ritmo da conveniência. Outrora uma
ferramenta para extrair significado do caos da experiência, agora funciona
principalmente como um mecanismo para fabricar consenso, uma abreviação
burocrática para o pensamento. Palavras que antes arriscavam a ambiguidade na
busca pela verdade agora buscam segurança na uniformidade: “icônico”,
“problemático”, “tóxico”, “desencadeador”… encantamentos recitados para
sinalizar virtude, poupando-nos o trabalho da nuance.
E quando as palavras perdem seu peso, a fé irrompe para
preencher o silêncio, mas até mesmo a crença, outrora um diálogo com o
infinito, foi reduzida a mera composição sonora. O sagrado também aprendeu a se
apresentar. Até mesmo a religião, nossa última defesa contra o absurdo,
aprendeu a comercializar o vazio. Os deuses se digitalizaram, oferecendo
iluminação por meio de assinaturas com tempo limitado e graça algorítmica. A fé
se tornou um acessório de estilo de vida, seus rituais embalados em fontes
minimalistas e lavanda difusa. O sagrado agora é acessível: entoamos afirmações
em vez de orações, manifestamos abundância em vez de misericórdia, meditamos
não para transcender o eu, mas para otimizá-lo.
E, em meio a toda essa coreografia de falta de sentido, algo
teimoso em nós se recusa a sair de cena. A cortina ameaça cair, mas ninguém
acredita que a peça deva terminar. Talvez a própria resistência tenha se
tornado nosso último ato de fé. Apesar de tudo isso, resistimos. É quase cômico
o quanto persistimos em comparecer a uma apresentação que já não entendemos. O
mundo esqueceu o enredo, os técnicos de palco entraram em greve, o público foi
embora para checar seus celulares… e ainda assim, os atores continuam recitando
suas falas, determinados a acreditar que o próprio ensaio constitui um sentido.
Há algo magnificamente tolo nisso, e magnificamente humano. Camus chamou isso
de revolta; suspeito que esteja mais próximo do instinto. A recusa em abandonar
o roteiro, mesmo quando ele deixa de fazer sentido, talvez seja nossa mais
genuína expressão de graça.
Viver no absurdo é admitir que não há ato final, nenhuma
grande revelação, nenhum aplauso que redima o caos. É continuar agindo mesmo
assim, escolher a coerência em vez do cinismo, a curiosidade em vez do
desespero astuto. Talvez seja isso que nos distingue das almas cansadas de
Beckett: não que saibamos mais, mas que ainda esperemos que nossos gestos, por
mais fúteis que sejam, possam iluminar brevemente a escuridão. O absurdo não é
inimigo do significado; é seu berço. No vazio, encontramos o contorno de nossa
persistência.
Que o teatro continue. Que nos atrapalhemos com nossas
entradas, esqueçamos nossas falas, quebremos o personagem e ainda assim
voltemos ao palco. O absurdo não se dissipará, mas nós também não. Em algum
lugar entre o riso e o colapso, talvez ainda possamos improvisar algo que se
assemelhe à verdade… não perfeita, não eterna, mas nossa.
Afinal, se o mundo insiste em permanecer absurdo, o mínimo
que podemos fazer é nos recusar a desempenhar mal nossos papéis.
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