quarta-feira, 15 de novembro de 2023

um futuro sem petróleo

 

Um futuro sem petróleo ¿

Podemos imaginar de duas formas . Podemos estar dirigindo os carros movidos a hidrogênio, ou metano, ou energia solar, ou qualquer outra coisa que ainda não descobrimos. Os navios cruzariam o mar movidos a energia solar e a velas(computadorizadas para captar qualquer sopro de ar). Poderíamos ter avolta dos dirigíveis, que podem içar e transportar uma enorme quantidade de carga sem poluição. Os trens estariam à disposição. O mesmo aconteceriam com as bicicletas que poderiam ser inviáveis nos dias insuportavelmente quentes (que devem ser a regra).

Desenvolveríamos energia hidroeléctrica de pequena escala, utilizando barragens amigas dos peixes. Estaríamos comendo e até cultivando vegetais orgânicos em nossos antigos gramados, regando-os com água da chuva, e com a água economizada pelo uso de vasos sanitários com baixa descarga, máquinas de lavar que economizam água e outros eletrodomésticos que já está no mercado.Já estamos usando lâmpadas de baixo consumo – as incandescentes foram proibidas – e sistemas de aquecimento com eficiência energética.

Através da melhoria do isolamento e estabilidade do clima interior das casas, incluindo persianas e toldos à prova de calor, os sistemas de ar condicionado poderiam estar na maioria das vezes desligados. Quanto à energia, além da geração hídrica, solar, geotérmica, das ondas e eólica, e das centrais a carvão isentas de emissões,ainda disporíamos da energia nuclear com toda segurança. O que vamos vestir? Muitas roupas de cânhamo : uma fonte de fibra resistente com poucos requisitos de pesticidas (o cultivo do algodão terá se mostrado muito caro e destrutivo). O que comeremos, além dos vegetais do gramado? Isso pode ser um problema – haverá uma escassez do peixe barato. A abundância de proteína animal em grandes quantidades será para poucos. No entanto, não somos uma espécie inventiva ¿ sendo onívoros, comemos qualquer coisa.. Olhando pelo lado positivo: a obesidade devido ao excesso de alimentação não será mais uma crise e os planos alimentares não serão apenas gratuitos, mas obrigatórios.Esse é um cenário adaptativo de longo prazo.

Mas , vamos supor que o futuro sem petróleo chegue muito rapidamente. Tudo iria imediatamente parar. Sem carros, sem aviões; alguns trens ainda movidos por hidrelétricas e algumas bicicletas, mas isso não levaria muita gente muito longe. Os alimentos deixariam de fluir para as cidades, a água deixaria de fluir das torneiras. Em poucas horas, o pânico se instalaria.

O primeiro resultado seria o desaparecimento da palavra “nós”: exceto em áreas com organização e liderança excepcionais, a palavra “eu” a substituiria.Haveria uma guerra de todos contra todos. , seguida imediatamente por tumultos por causa de alimentos e saques numa tentaiva de acumular um pouco de comida e encher as banheiras com água. As luzes se apagariam. Os sistemas de comunicação entrariam em colapso. Não demoraria muito – devido à fome, ao lixo purulento, à multiplicação de ratos e aos cadáveres em putrefação – para que uma doença pandémica se espalhasse

Um cenário apocalíptico.

Está evidente que as pessoas não dependem apenas do petróleo, mas foram criada por ele: a humanidade expandiu-se para preencher o espaço que o petróleo lhe tornou possível.Não será possível estabelecer uma idéia de custos pois não haverá qualquer “economia”.

 

Infelizmente, como todas as outras espécies do planeta, somos conservadores: não mudamos os nossos hábitos a menos que a necessidade nos obrigue. Os primeiros peixes pulmonados não desenvolveram pulmões porque queriam ser um animal terrestre, mas porque queriam continuar a ser peixes mesmo quando a estação seca drenava a água ao seu redor. Também temos interesse próprio: a menos que existam leis que obriguem a conservação de energia, a maioria não o fará, porque porquê fazer sacrifícios se outros não o fazem? A ausência de regras de utilização de energia justas e aplicáveis ​​penaliza os conscienciosos, ao mesmo tempo que enriquece os sem moral. Nos negócios, as leis da concorrência significam que a maioria das empresas extrairá o máximo de riqueza dos recursos disponíveis sem pensar muito nas consequências. Porquê esperar que qualquer ser humano ou instituição se comporte de outra forma, a menos que consiga ver benefícios claros?

Poucos países , no momento, planejam o futuro da diminuição do petróleo.E os que estão têm uma característica : eles não têm petróleo ou não precisam de nenhum. A Islândia gera mais de metade da sua energia a partir de fontes geotérmicas abundantes. A Alemanha está a converter-se rapidamente. Eles estão se preparando para enfrentar a tempestade que se aproxima.

Os países ricos em petróleo, aqueles que eram pobres no passado, enriqueceram rapidamente e não têm outros recursos para além do petróleo.Investem a riqueza petrolífera que sabem ser temporária em tecnologias que esperam que funcionem para eles quando o petróleo acabar.

Mas a regra é a seguinte : o planeamento governamental a longo prazo necessário para lidar com a diminuição do petróleo nos países ricos e com recursos mistos é praticamente inexistente. O biocombustível é em grande parte ilusório: a quantidade de petróleo necessária para produzi-lo é maior do que o lucro. Algumas empresas petrolíferas estão a explorar o desenvolvimento de outras fontes de energia, mas em geral estão simplesmente a fazer lobby contra qualquer coisa e qualquer pessoa que possa causar uma diminuição no consumo e, assim, ter impacto nos seus lucros. É hora da corrida do ouro, e o petróleo é o ouro, e os ganhos a curto prazo superam a dor a longo prazo, a loucura está em marcha, e qualquer um que queira parar a corrida é considerado um inimigo.

O Planeta Terra está se alterando. A mudança para o extremo mais quente do termómetro, que outrora se previu que aconteceria muito mais tarde,está acontecendo agora. Aqui estão três principais sinais de alerta. Primeiro, a transformação dos oceanos.Não estão apenas sendo afetados pelo aquecimento das suas águas (que por si só é um enorme fator de influência no clima). Há também o aumento da acidificação devido à absorção de CO2, a quantidade cada vez maior de lixo plástico à base de petróleo e de poluentes tóxicos que os seres humanos despejam nos mares, e a pesca excessiva e a destruição dos ecossistemas marinhos e das áreas de desova pelos arrastões. O pior para nós seria a destruição das algas marinhas verde-azuladas que criaram a nossa atual atmosfera rica em oxigénio, há 2,45 mil milhões de anos. Se as algas morressem, isso poria fim a nós, pois morreríamos ofegantes como peixes fora d’água.

Um segundo sinal de alerta importante é a seca na Califórnia, considerada a pior dos últimos 1.200 anos. Esta seca se estendeu por anos e é espelhada pelas secas noutros estados do oeste dos EUA, como Utah e Idaho. A camada de neve nas montanhas que normalmente alimenta o abastecimento de água nesses estados caiu para apenas 3% do normal. Os verões serão longos, quentes e secos. Um terceiro sinal de alerta é o aumento do nível dos oceanos. Já ocorreram alguns eventos de inundação dignos de nota, sendo o mais evidente na América do Norte com o furacão Katrina, e a inundação da parte baixa de Manhattan na época do furacão Sandy em 2012. Caso o aumento previsto do nível do mar de 30 a 60 centímetros ocorra, o estado da Flórida poderá perder a maior parte de suas praias e a cidade de Miami estará copiando Veneza.

Estes resultados, no entanto, não são discutidos a fundo por alguns dos políticos que deveriam estar alertas aos perigos que ameaçam o bem-estar dos seus eleitores. Frases como “mudança climática” ou“aquecimento global” são veementemente negadas e tem um cunho na proibição da sua discussão de natureza ideológica. Parecem utilizar de uma estratégia prática : não vamos falar sobre isso, e talvez isso desapareça.Esse é um truque sujo : negar este assunto ou varrê-lo para debaixo do tapete para que os negócios possam continuar como sempre, e lá na frente, alguém pagará a conta. Porque haverá uma conta: o custo será elevado, não só em dinheiro, mas em vidas humanas. As leis da química e da física são implacáveis ​​e não dão segundas chances. Na verdade, essa conta já está vencendo.

Mesmo que os negacionistas possam ser levados a reconhecer com relutância os fatos, eles apresentam o seu recurso: 1) As mudanças são naturais. Eles não têm nada a ver com a queima de combustíveis fósseis pela humanidade. Portanto, podemos continuar a fazer o nosso piquenique tal como está, talvez fazendo alguns gestos no sentido da “adaptação” – um paredão aqui, a construção de uma central de dessalinização ali – sem nos preocuparmos com a nossa própria responsabilidade. E culpam os chamados contrários : “esquerdistas”, “artistas” e “radicais” .

Quais são as implicações para a maneira como vemos a nós mesmos e a maneira como vivemos? Resumindo: na cultura da energia do carvão — uma cultura de trabalhadores e de produção — você é o seu trabalho. “Eu sou o que faço.” Numa cultura energética de petróleo e gás – uma cultura de consumo – você é o seu bem. “Eu sou o que compro.” Mas numa cultura de energia renovável, você é o que conserva. “Eu sou o que salvo e protejo.


domingo, 29 de outubro de 2023

a filosofia e o terror


 

É impossível não se sensibilizar com os atos de terror perpetrados nas últimas guerras do século XXI: Ucrânia-Rússia e Israel-Palestina. Diante das imagens chocantes das últimas semanas, é mais do que urgente que a Filosofia se manifeste. Conceitos como os de Europa, Ocidente, terror, terrorismo, colonização e a alteridade são fundamentais para esta análise.

A guerra nos impõe um rosário de situações que nos assombra. Entretanto, para disseca-las, é necessário trazer se aprofundar nos conceitos, o ponto de partida de uma base filosófica, bem como o entendimento das bases simbólicas que fomentam as práticas de terror e do terrorismo, que hoje acontecem na região que já foi chamada de Ásia Ocidental. Surge aí a problematização do próprio nome da localização geográfica, o Oriente Médio. Nomear, assim, implica uma ação colonialista européia (inglesa) que ocorreu entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. O resultado foi determinar que as pessoas que ali habitavam foram circunscritas a uma dada região entre o Mar Vermelho e o império inglês nas índias.

O nomear é fundamental aqui na medida em que retirar o ocidente do contexto geográfico não apenas tem implicações nas diferenças de assentamento e culturais, mas, antes, designa um olhar para fora daquela Europa que transcende um continente. Para Edmund Husserl (filósofo ligado à fenomenologia) é fundamental definir o conjunto de características que constitui o espírito de um povo e que este se deve a um local específico de nascimento. Local este que constitui o patamar de valores e crenças. Ora, a Europa designa o ocidente e tem sua origem, seguindo a referência husserliana, na Grécia Antiga.A retirada do Ocidental da Ásia passa a ser fundamental para a exclusão daqueles que não podem ser reconhecidos como europeus e, portanto, adotando entendimento de valores advindos de uma Grécia antiga,passam fazer parte de um mundo dividido entre civilizados e bárbaros.Aqui um primeiro problema posto, o do Nome. Passar a existir um nomear que exclui aquele que não é lido como europeu e, portanto, não é civilizado, comportando-se como um bárbaro.

Entretanto, há um além nesse ato de nomear, pois, a despeito da região geográfica, o Estado de Israel é forjado a partir de um sionismo advindo da tal Europa no sentido husserliano, cujo caráter civilizatório transcende o Continente. A formação do Estado de Israel traz consigo, para além da terra santa, os valores daquele nascimento anterior, que se respalda tanto na filosofia quanto nas ciências europeias.É importante guardar esta questão aqui colocada; afinal, dela derivam apoios a um ou a outro lado no conflito Israel-Palestina, bem como outra nomeação fundamental no conflito, a de terrorista.

Não há conceitos soltos, tampouco deslocados da história. Nesse sentido, é fundamental resgatar os conceitos de Europa, como designação do ocidente, de inimigo, de quem é o outro. As imagens brutais não podem ter um lado apenas na sustentação de que aquele atacado possui o direto de defesa. E já que Guerra existe, as regras devem ser jogadas de modo limpo, e não com limpeza étnica. O conflito, assim, pelas telas midiáticas, demonstra o quanto está pautado pela negação do Outro, um outro que é inimigo na essência e, por esta razão mesma, lhe cabe a morte, mas não sem antes lhe implementar todo medo e terror. O ato de terror perpetrado diante de inocentes se torna ato de terrorismo. Donde a característica de contra-ataque, retaliação ou qualquer meio de defesa ou ataque em tempos de guerra declarada, deixar de ser uma defesa; antes se manifesta como escalada do terror.

Pensando para fora da Palestina, mas circunscrevendo a situação ao Hamas. Esquece-se que o Hamas é formado a partir de palestinos, cuja existência e essência é lida, por Israel, como inimiga. E inimigos,seguindo os princípios animalescos,devem desaparecer. Não obstante, o mesmo ocorre entre o Hamas e os judeus. Ora, se judeus foram Outros desterritorializados e desprovidos de Ser para uma dada Europa, mas hoje o Estado de Israel configura uma Europa extra geográfica,então, ao ser essa Europa, o Estado de Israel traz consigo, não apenas o olhar dos demais grupos da região do Oriente Médio como aquele que invade um espaço na reivindicação de uma terra prometida como também se apresenta enquanto colonizador que destitui um povo, uma etnia de sua existência. Torna-se, portanto, inimigo. Mas o invasor da terra prometida não é, simbolicamente, o europeu, mesmo que este a tenha invadido como colônia; o invasor é o palestino, que sequer deve ter o direito a seu Estado nação, haja vista ser engolfado no termo árabe. A inimizade pública se manifesta na violência. Uma violência que reduz os sujeitos a corpos passíveis do morticínio, sujeitos passíveis de serem violados no aspecto físico e psicológico. 

O Hamas ataca inocentes e civis, em um violento ato de terrorismo. Na ação do contra-ataque, Israel vitima civis e impõe o medo em Gaza. A tensão histórica das várias negações da existência do Outro, palestinos e judeus, acaba por validar a sentença de Hannah Arendt, “se os objetivos não são alcançados rapidamente, o resultado será não apenas a derrota, mas a introdução da prática da violência na totalidade do corpo político”. Afinal, pois os desígnios das ações bélicas não possuem qualquer resultado que não medo e o terror. 

O terror é o uso deliberado de violência, ou ameaça de seu uso, contra pessoas inocentes, com o objetivo de intimidar algumas outras pessoas em um curso de ação que de outra forma não seria necessário.É a morte deliberada de pessoas inocentes, de forma aleatória, a fim de espalhar o medo através de toda uma população e forçar a mão dos seus líderes políticos.O rec recurso ao terror é ideologicamente o último, mas não é o último numa série real de ações, é apenas o último em termos de desculpa. Ou seja, a desculpa é o conceito chave, para ambos os lados, na manutenção do terror. Isso se dá na medida da negação do outro. Impossibilitados de falar abertamente de genocídios, aplicam o terror na tentativa da dupla eliminação.

Albert Camus manifesta suas preocupações ético-políticas a partir de um determinado evento histórico, o nazismo. Todavia, seu olhar, apesar de partir desse evento particular, não se atém a ele. De fato, há um deslocamento em vista da preocupação com a legitimação do terror e com ruptura da liberdade. Estes dois conceitos são advindos de uma necessidade de se dizer “quem é humano ou não”, inerente a um pensamento que emerge no século XX. Se há algo que a Filosofia possa fazer valer numa situação de Guerra, na qual o terror e a negação de humanos emergem, será a problematização diante do contexto da falta do diálogo, da falta de uma política de liberdade, no melhor sentido filosófico; daí ser fundamental compreender conceitos e perceber a impossibilidade da paz.

A paz, na amplitude entre violência e terror, tem se perpetuado como guerra. A base dessa paz só se dá na relação de inimizade, pois o inimigo é sempre passível de eliminação. Enquanto as questões conceituais se mantiverem como mero aparato de justificativa de horrores , e a Filosofia não for ouvida , o cenário de degradação moral da humanidade resultará na inviabilidade civilizacional.

domingo, 22 de outubro de 2023

não é só a ocupação - artigo do filósofo David Benatar

 


Não é só a ocupação

 

 

É raro que toda a culpa por um conflito recaia sobre um lado. Mas isso não significa que a culpa deva ser dividida igualmente.

A culpabilização das vítimas é geralmente considerada inaceitável. Mas quando o crime é um ato extremo de violênciae as vítimas são israelitas, muitas pessoas instruídas parecem pensar o contrário . Após os acontecimentos devastadores de 7 de Outubro, quando os jihadistas do Hamas provenientes de Gaza invadiram o sul de Israel e conduziram uma campanha impiedosa de tortura e assassinato em massa, muitos apressaram-se a colocar a responsabilidade pelo caos diretamente sobre os ombros de Israel. Mesmo quando os horrores da mutilação, da violação e da tomada de reféns são reconhecidos, somos informados de que estes acontecimentos devem ser entendidos no seu “contexto histórico” adequado.

O problema com este argumento é que o contexto histórico proposto é escolhido seletivamente. O ataque do Hamas custou a vida a pelo menos 1.300 israelitas, mas a sua “causa raiz” foi quase imediatamente atribuída à “ocupação”, e não às doutrinas dos seus participantes. De acordo com esta narrativa , o Hamas está apenas reagindo às condições de vida na panela de pressão de uma Faixa de Gaza sitiada. Ou seja , colocar o terrorismo no contexto histórico da “ocupação” não explica nada a menos que “a ocupação” também seja explicada no seu contexto histórico. Nem a resposta israelita está devidamente contextualizada nesta explicação. Não se pensa nas prováveis ​​consequências de Israel não atacar (ou atacar inadequadamente) o Hamas em resposta ao massacre.

Em ciclos de violência, qualquer ato de beligerância pode ser visto como uma resposta ao que o precedeu. O problema é agravado porque a história e o comportamento humano são complicados. Muitas vezes há mal-entendidos, desinformação e respostas desproporcionais, combinados com uma tendência humana de não perceber isso. Portanto, raramente acontece que toda a culpa recaia sobre um lado. Mas isso não significa que a culpa deva ser dividida igualmente. Muitas vezes, um lado é muito pior que o outro, mesmo que o lado melhor esteja longe de ser perfeito.

Identificar a origem do conflito árabe-judaico não é fácil, mas olhar para os motins na Palestina de 1929 e as suas origens é instrutivo. Nesses tumultos, 133 judeus foram mortos e outros 339 foram feridos por árabes. Tal como em 2023, as vítimas foram torturadas e mutiladas. Como resultado da violência de 1929, os judeus foram evacuados de muitas áreas, incluindo a cidade de Hebron, onde mantiveram uma presença quase ininterrupta desde a destruição da segunda Comunidade Judaica em 70 d.C.

É claro que esses distúrbios em si precisam ser explicados. Surgiram dos receios árabes de uma crescente imigração judaica para a Palestina, no contexto da Declaração Balfour de 1917, na qual os britânicos declararam o seu apoio à criação de um Estado judeu na (parte da) Palestina. Mais imediatamente, os árabes ficaram alarmados quando os judeus trouxeram assentos e bancos (para os enfermos) para o Muro das Lamentações, juntamente com uma divisória para separar os sexos, em violação de uma decisão de 1925. Os Árabes consideraram este movimento como parte do “projeto Sionista”, razão pela qual provocou a violência Árabe. Isto, por sua vez, provocou manifestações judaicas no Muro, e essas manifestações estiveram entre os precipitadores dos motins de 1929.

Alguns árabes abrigaram judeus , e árabes também foram mortos durante os motins de 1929. Quase todos estes últimos foram mortos pelas forças britânicas que tentavam controlar a violência, mas em alguns casos, os judeus assassinaram árabes inocentes em ataques de represália. Mas nada disto teve nada a ver com ocupação, pela simples razão de que não houve ocupação judaica na Palestina em 1929. É claro que haviam judeus vivendo lá. Muitos nasceram lá. Outros eram refugiados ou imigrantes. Quaisquer que fossem os sentimentos sobre a imigração, esta não era certamente uma situação para a qual os massacres fossem uma resposta justificável.

O problema em 1929 não era “a ocupação”, mas sim a recusa em aceitar qualquer Estado judeu na Palestina. Esta recusa contrasta com a repetida (embora nem sempre sincera) aceitação judaica de uma solução de dois Estados, incluindo a aceitação pelos judeus da Comissão Peel em 1937 e do Plano de Partição da ONU em 1947. A rejeição árabe da partição então e a rejeição do Hamas a um Estado Judeu está agora enraizada na mesma afirmação de que o Estado Judeu é um empreendimento colonial de colonização. Mas esta caracterização é simplesmente falsa.

Primeiro, Israel não é uma colónia de nenhum país, nem foi estabelecido como tal. Não é como as colónias britânicas na América e na Austrália, nem como as colónias belgas ou alemãs no Congo e no Sudoeste de África. Os judeus não foram enviados por ninguém, nem migraram de um único país ou mesmo de uma única região. Em outras palavras, eles não tinham metrópole. Além disso, possuem laços ancestrais com a terra. É o lugar de onde vieram e de onde foram exilados. Isto não significa negar que os palestinos tenham laços com a mesma terra, mas não é colonização quando aqueles que são expulsos das suas terras regressam a elas. Os exilados palestinos que negam isto poderão perguntar-se se as suas próprias reivindicações sobre alguma parte da Palestina irão evaporar-se com o tempo e, em caso afirmativo, quando?

Em segundo lugar, uma grande proporção da população judaica israelita é descendente de refugiados. Estes incluem também cerca de 650 mil judeus que fugiram da perseguição nos países árabes e no Irã. Outros judeus israelitas são migrantes que se mudaram para Israel porque, por uma série de razões, é onde preferem estar. Refugiados e migrantes não são colonialistas. Aqueles que rejeitam esta distinção serão forçados a reconhecer que existe agora uma substancial colonização muçulmana na Europa, na América e noutros países ocidentais. Esta não é uma caracterização razoável, nem é uma caracterização que os apoiantes ocidentais dos palestinos estarão ansiosos por defender.

Então, e quanto à “ocupação” em 2023? A Faixa de Gaza não está ocupada, e não tem estado desde que Israel se retirou unilateralmente do território em 2005 . É verdade que Israel – juntamente com o Egito – controla as fronteiras de Gaza, mas isso não é o mesmo que ocupação. Também é verdade que o bloqueio parcial (convertido num cerco total após o massacre de 7 de Outubro) trouxe dificuldades aos habitantes de Gaza, mas não é uma imposição gratuita. O bloqueio foi imposto numa tentativa de controlar o fluxo de armas para Gaza, que os israelitas sabiam que o Hamas usaria então para atacar Israel.

Israel continua a ocupar a Cisjordânia, mas a responsabilidade por esse enigma também não pode ser atribuída apenas a Israel. São necessários dois lados para fazer a paz. Qualquer pessoa que sugira que Israel poderia resolver o conflito simplesmente retirando-se da Cisjordânia deveria tentar compreender que os resultados da retirada de Gaza demonstram que isso é impossível. Essa experiência proporcionou uma lição dolorosa sobre os perigos de desocupar terras disputadas na ausência de (e possivelmente mesmo com) um acordo de paz. Desde a retirada israelita de Gaza, aquela área tem sido regularmente usada como campo de lançamento de milhares de foguetes contra Israel (apesar do bloqueio), e agora para o pior massacre de judeus desde os nazis.

Nada disto torna Israel inocente. Há surtos de violência de vigilantes judeus e outros casos de terror contra os palestinos na Cisjordânia. Isto é indesculpável e o Estado de Israel deve garantir que os perpetradores sintam toda a força da lei. E embora o muro de segurança e os postos de controlo em torno da Cisjordânia sejam uma resposta necessária ao terror que levou à sua construção, o processamento do povo palestino através destes últimos deve ser feito com maior respeito pela sua dignidade. Tais críticas são razoáveis.

Mas aqueles que atribuem toda (ou quase toda) a culpa pelo conflito em curso  pela “ocupação” demonstram má-fé ou ingenuidade. O levantamento do bloqueio a Gaza e a retirada unilateral da Cisjordânia equivaleria ao suicídio dos judeus de Israel. O mesmo se aplica à sugestão de que poderia haver um estado unificado de cidadãos judeus e árabes desde o Rio Jordão até ao Mar Mediterrâneo. Aqueles que propõem tal Estado precisam de explicar com que país da região este Estado se assemelharia mais. Nem um único Estado no Médio Oriente se classifica, nem remotamente, tão bem como Israel ainda o faz em termos de liberdades liberais e democráticas. Que razões temos para pensar que uma Palestina unificada seria diferente, especialmente com rejeicionistas anti-semitas como o Hamas no sistema político?

Quando perguntamos o que cada lado do conflito Hamas-Israel poderia fazer de diferente, é muito mais fácil dizer o que o Hamas poderia fazer. Poderia parar de atacar Israel. Se deixasse de se comportar como o regime fundamentalista, repressivo e terrorista que é, e utilizasse os seus recursos para construir um Estado palestino nascente, traria maior prosperidade aos seus cidadãos, aliviaria gradualmente as restrições nas suas fronteiras e demonstraria que a Palestina poderia existir pacificamente. ao lado de Israel. Mas é claro que não é isso que o Hamas quer.


quinta-feira, 19 de outubro de 2023

o não compromisso

 

É preciso união para desobedecer à lógica das guerras e do militarismo.

A guerra é um crime contra a humanidade. O meu compromisso é não apoiar qualquer tipo de guerra e a lutar pela eliminação de todas as suas causas. Leio,com tristeza, as tristes notícias que aparecem em todos os meios de comunicação sobre o que tem sido chamado de “a nova guerra de Israel”.

Fica uma pergunta repleta de indignação : o que tem sido feito , quais iniciativas que buscam construir um mundo em paz com justiça na Palestina, nos territórios ocupados e no Estado de Israel ? O mundo assiste passivamente  à violência do Estado de Israel, que desenvolve políticas genocidas desde 1947. Seu processo de militarização social é uma engrenagem perfeita que prepara as mentes e os corpos de todas as pessoas para a guerra e coloca todos os recursos que dispõe para desenvolver políticas contra a população palestina.

O recrutamento que obriga todos os homens e mulheres judeus (os palestinos com cidadania israelense e mulheres judias religiosas estão isentos) a passar três e dois anos, respectivamente, no exército israelense, socializa a maioria da população na preparação para a guerra, no treinamento com as armas. Por outro lado, há décadas, milhares de jovens palestinos, quase crianças, são presos – quando não gravemente feridos ou assassinados – em cada protesto, em retaliação às ações armadas do Hamas ou simplesmente porque incomodam no processo de usurpação e colonização de sua terra. Centenas de mulheres, centenas de ativistas, de pessoas comuns. Combustível de desespero para incendiar o ódio e a violência.

Entender não significa justificar. Comprometer-se com a paz baseada na justiça e na dignidade não é justificar. Apontar a barbárie cometida pelo Hamas e o restante de facções armadas não é se posicionar ao lado do Estado de Israel, mas, sim, do lado mais humano que nos leva à compaixão. Contabilizar as mortes de todas as pessoas que compõem a sociedade civil,é se posicionar contra um conceito de defesa que se fundamenta na vingança e na violência como único recurso. A linguagem, nesses dias, continua sendo estar ao lado de uns ou de outros e eu proponho sair desta espiral e seguir reafirmando o sólido compromisso de não apoiar as guerras, qualquer guerra.

Quando a violência aumenta, podemos sentir que temos de ‘escolher um lado’, e haverá muitas vozes exigindo que façamos isso. No entanto, também rejeitamos essa forma binária de ver o mundo, que nos faz pensar nos outros como inimigos a serem oprimidos ou mortos e a eliminar a diferença. Não importa o quanto essas demandas sejam fortes, sabemos que existem, existiram e sempre existirão pessoas e comunidades que rejeitam a falsa escolha que a violência exige.

Em vez disso,é preciso se alinhar com aqueles que optam por construir a segurança não com armas e bombas, mas gerando confiança e cooperação de forma não violenta, apoiando aqueles que se negam a matar, mesmo quando estão sob imensa pressão, e talvez até ousar imaginar uma situação mais justa e um mundo pacífico.


domingo, 8 de outubro de 2023

palestinos e judeus


 

Diante do que acontece em Israel , muito se teria que analisar .Porém,existem pessoas justificando a ação do Hamas e da Jihad Islâmica,achando justo e natural o que fizeram ontem (07-10-23), pois Israel os submete a um regime de ocupação colonialista, e é responsável por atrocidades muito maiores.

Analisando um pouco a história : o Hamas e a Jihad Islâmica não existiam antes da ocupação israelense, portanto é um fato que eles são resultado dessa ocupação.Podemos inferir que a opressão ajudou a fomentar a criação destes grupos.Seria uma reação natural e esperada. Uma ação de guerra e domínio historicamente dá surgimento a grupos extremistas e , dependendo das condições incrementadas pelo tempo, ao seu fortalecimento.

Os últimos governos de Israel fizeram de tudo para enfraquecer os grupos mais moderados e seculares, e minou a esperança do povo palestino. Desde 1967, com construção de assentamentos, afrontas aos direitos humanos, humilhações, vergonhas e violência com episódios constantes de mortes e prisões arbitrárias a tensão vem se acumulando.

Explicar não é semelhante a justificar.

O Hamas e a Jihad Islâmica usam de meios terroristas: ataque indiscriminado contra civis,se mesclando a eles,e os colocando em risco. A carnificina era uma questão de tempo. Centenas , por enquanto,de mortos,na maioria das vezes indefesos.Invadiram pequenas cidades e executaram quem viam pela frente.Incendiaram casas com pessoas dentro. O alvo não eram as forças do Estado. O alvo não eram os soldados, o exército de ocupação, as autoridades. O alvo era o que viesse a ser encontrado. Não houve uma dimensão maior porque não tiveram o controle por mais tempo.

Isso é uma reação razoável e justificada? Alguns argumentam que o exército de Israel também mata civis. É verdade, e isso é abominavelmente terrível.Mas nem nos piores bombardeios das mais cruentas operações em Gaza ou nas intifadas, o poderoso exército de Israel causou tantas mortes num só dia.O argumento ainda poderia ser :  "mas Israel matou mais”. Sim, e dessa vez vai matar mais também. Bem mais. E isso é o que é inaceitável.

A essência assustadora é que foi possível ter uma ter uma noção do que o Hamas faria se houvesse igualdade de forças. O objetivo deles não é combater a ocupação e os seus meios não legítimos. O objetivo deles (declaradamente) é exterminar os judeus.

O conflito não é simétrico e não é só entre Israel e o Hamas, envolve em muito as populações civis. A ocupação acaba reprimindo os palestinos dia após dia, enquanto os israelenses vivem próximo à normalidade.O que o Hamas fez não coloca os dois lados em igualdade de condições. A ocupação e a opressão precisam acabar, um Estado palestino independente e soberano precisa ser criado urgente. E isso é responsabilidade de Israel.

Quem está morrendo, são, em geral, habitantes pobres do sul do país. E todos nós sabemos o que acontece quando se incentiva o ódio nacionalista. Acaba a solidariedade entre os povos, a consciência de classe desaparece, e o fascismo floresce.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

o mal que nos habita

Adolf Eichmann , nazista responsável pela logistica do assassinato em massa dos judeus na segunda grande guerra, ao ser julgado pelos crimes cometidos disse em sua defesa: “Essas eram as instruções, se elas [as pessoas] seriam mortas ou não, as ordens tinham que ser executadas”, sem esboçar nenhuma emoção. Um ano depois foi condenado e enforcado.

Todo o julgamento foi amplamente divulgado e gerou diversas repercussões importantes. A mais famosa talvez seja a da expressão “banalidade do mal”, cunhada por Hannah Arendt, que esteve presente no julgament e resultou num livro com o mesmo título. Acompanhando o contexto, Günther Anders, filósofo judeu alemão, resolveu escrever uma carta para Klaus Eichmann, filho mais velho do conhecido nazista.

Destinatário e remetente com trajetórias cruzadas: o filho de um nazista e um judeu alemão, que sobreviveu por ter escapado aos planos do pai do primeiro. Apesar disso, Anders se dirige ao destinatário com respeito, negando que a desumanidade do pai  implique em qualquer responsabilidade do filho, ao mesmo tempo em que lhe cobra uma atitude: “O fato de descender do seu pai não lhe dá o direito de se solidarizar com ele ­— ao contrário, você é obrigado a se desligar de sua origem, e renegá-lo”.

O tom cordial só vai se transformar no post scriptum da carta, quando Anders, um tempo depois de tê-la escrito, conta ter se deparado com uma declaração de Klaus Eichmann a favor do pai. Ao longo do texto, Anders denomina a eliminação industrial de milhões de seres humanos como “monstruosa” e diz recorrer ao passado para “transformá-lo em outra coisa”. Argumenta que os pressupostos que permitiram o extermínio não foram transformados e, portanto, o “monstruoso” não foi uma exceção, logo há um dever de lutar contra possíveis — e prováveis — repetições.

A partir do apontamento de que o “monstruoso” foi possível pelas mãos de vários “Eichmanns”, Anders desenvolve dois pontos que considera as raízes do genocídio. O primeiro é o de que “nós nos tornamos criaturas de um mundo técnico”, o que leva ao grau máximo de mediação dos processos de trabalho e impede as pessoas de perceberem e sequer imaginarem os efeitos de cada ação tomada. O sentimento de responsabilidade por tais consequências se anula, na medida em que o efeito da ação é elevado demais para tal grandeza ser compreendida. Tornamo-nos “analfabetos emocionais”.

O autor deixa claro que este não era o caso de Eichmann, que participou da elaboração minuciosa da estratégia e, portanto, seria absurdo supor que agia sem saber das consequências de suas ações. Anders afirma que não estamos submetidos a essa dinâmica de forma servil: ao tentar imaginar o resultado de uma ação e fracassar nesta tentativa, acende-se um alerta, uma chance de que tal ato seja revisado.

A segunda raiz do monstruoidade reside “no caráter maquinal do nosso mundo atual”. Para que o “fracasso” seja frutífero e usado como alerta, a tentativa de imaginar deve ser feita de maneira real, ação que é geralmente impedida ou dificultada pela corrente moral do trabalho, dividido e especializado, cujo princípio é o desempenho e o objetivo de acumulação máximos.

Günther Anders é um pessimista convicto. Tenta nos convencer de que a ameaça monstruosa do “reino por vir” é muito pior do que o Reich do passado — o que se explica pelo contexto em que escreve sobre a Guerra Fria e a ameaça do armamento atômico, para a qual muitos trabalham sem questionar, como peças de uma máquina. . Nisso se baseia o título do livro: somos todos “filhos de Eichmann” por não questionarmos a destruição que se origina na ação de cada um

O autor acredita na agência humana contra o destino monstruoso, e este é o objetivo final da primeira carta: “Em quase todos os países da Terra há um movimento de pessoas que lutam contra o princípio de Eichmann”, diz, referindo-se aos grupos contrários ao armamento nuclear. Aderir a esse movimento seria a grande chance de redenção possível a Klaus Eichmann.

Vinte e cinco anos depois, outras questões o levam a escrever novamente a Klaus, em tom bem diferente do da primeira carta. Há em 1988, segundo Anders, uma intensificação da “situação Eichmaniana”. Mas não é só isso que o motiva a escrever, mesmo diante da não resposta da primeira. Sua preocupação agora seria a mudança na mentalidade político-moral percebida na Alemanha e na Áustria, que teria regredido nesse intervalo de tempo, com o fortalecimento não dos “velhos nazistas” mas de “novos nazistas”, que minimizam, relativizam e negam Auschwitz, e instrumentalizam as discussões acerca da culpa coletiva. Nesse segundo momento, ele se nutre de discursos contemporâneos, como a crescente problemática em torno da comparação entre Hitler e Stálin. E mais uma vez argumenta que Klaus tem a chance de deixar de ser filho de seu pai — na medida em que se posicione.

A leitura das duas cartas, separadas por mais de duas décadas, é complementada pelo posfácio “De onde vêm os monstros”, escrito pelo tradutor Felipe Catalani, pesquisador da obra de Anders. O texto contextualiza as duas mensagens em relação à trajetória do autor e de outros autores que desenvolveram ideias relacionadas, como a já citada Arendt e Adorno. Assim, potencializa a atualidade da mensagem contida nos escritos de Anders, de que há um alerta trazido pela reflexão a partir do passado. Para este debate, o público do Brasil de 2023 tem mais esse ponto de partida.

domingo, 17 de setembro de 2023

um futuro promissor para as doenças autoimunes


 

Um novo tipo de vacina demonstrou em laboratório que pode reverter completamente doenças autoimunes como a esclerose múltipla e a diabetes tipo 1 –sem comprometer o resto do sistema imunológico. São as vacinas tolerogênicas.

Elas são o oposto das vacinas convencionais que aceleram nosso sistema imunológico contra um patógeno. Em vez disso,são capazes de suprimir ou bloquear a nossa resposta imunológica. Exatamente o que precisamos em pessoas em risco ou que sofrem de doenças autoimunes

O conceito tolerogênico não é novo e tem sido intensamente perseguido há pelo menos 15 anos. Os tratamentos atuais para as 80 doenças autoimunes (esclerose múltipla, artrite reumatóide, doença celíaca, lúpus, artrite psoriática, para citar algumas) que afetam mais de 5% da população envolvem o bloqueio do sistema imunológico com medicamentos que carecem de especificidade e deixam as pessoas vulneráveis para infecções oportunistas, malignidades e efeitos colaterais. Além disso, a sua eficácia é muitas vezes limitada, como se observa nos casos refratários, e não são de forma alguma preventivas ou curativas. Além disso, a duração da terapia é normalmente para a vida toda.

A complexidade do desenvolvimento de melhores abordagens envolve uma interação da genética, epigenética, gatilhos ambientais e diferentes e múltiplos autoantígenos (autodirigidos).

Em 2021, o grupo BioNTech publicou na Science uma vacina de mRNA no modelo de esclerose múltipla em ratos, conhecida como encefalomielite autoimune. Neste modelo, um antígeno específico impulsiona a doença e induz danos progressivos ao tecido neural.Esse antígeno mais um adjuvante, o complexo de nanopartículas lipídicas de vacina baseada em mRNA , em comparação com controles adequados, diminuiu acentuadamente a resposta imune com estimulação de células T supressivas e menos mediadores de citocinas inflamatórias. A vacina preveniu doenças em camundongos quando administrada por 7 a 10 dias, e houve evidência tecidual de redução da desmielinização na medula espinhal e no cérebro.

Mas essa abordagem tem muitas limitações. A esclerose múltipla é impulsionada por muitos autoantígenos diferentes e um amplo repertório células T policlonais, variando de uma pessoa para outra. A supressão imunológica da vacinação com mRNA é geral e não específica. Em outro trabalho anterior de vacina, em um modelo de artrite reumatóide em camundongos . a administração de um autoantígeno ligado a um peptídeo glicosolado teve também um efeito potente de estimulação das células T e proteção contra a artrite.

A busca por maneiras ideais de alcançar tolerância imunológica e bloquear autoantígenos tem sido longa e difícil. Há uma década, um artigo intitulado “ O fígado funciona como uma escola para educar células imunológicas reguladoras” , prenunciava o que vem sendo desenvolvido agora. A ideia é que o fígado seja um ambiente tolerogênico único e possa ser a escola para o circuito das células imunológicas e suas células fornadoras de antígenos.

Em 2019,outro artigo foi publicado sobre antígenos glicosilados sinteticamente (moléculas de açúcar adicionadas) para prevenir diabetes tipo 1 (autoimune) em camundongos. Mas isto, tal como a abordagem da vacina de mRNA analisada acima, destinava-se a prevenir a doença autoimune, e não a tratá-la ou curá-la.

Mas agora, dois modelos diferentes foram avaliados com esta abordagem de glicosilação, incluindo a esclerose múltipla (encefalomielite autoimune) e a supressão específica do antigénio da vacina contra o vírus da imunodeficiência símia em primatas não humanos. Eles apelidaram isso de “vacinas inversas” porque seu objetivo é o oposto das vacinas convencionais que estimulam a resposta imunológica.Ocorreria o seguinte : o fígado marca naturalmente as moléculas das células marcadas com bandeiras “não atacar” para evitar reações auto-imunes às células que morrem por processos naturais.

O avanço aqui foi a demonstração como um tratamento eficaz, e não apenas uma prevenção. A equipe mostrou no modelo de esclerose múltipla que as proteínas da mielina glicosilada pararam o dano neural e reverteram os sintomas. Além disso, havia indicadores de uma resposta imune celular intacta, em vez de uma supressão global induzida por terapias medicamentosas.

Resumindo

A abordagem de alavancar o fígado para induzir tolerância imunológica é intrigante e o novo trabalho publicado dá um passo adiante como um tratamento potencial no futuro. Ainda existem muitas incertezas, como conhecer os autoantígenos de um determinado indivíduo ou compreender totalmente o mecanismo de indução de tolerância. Uma vacina tolerogênica é um enorme desafio e muito mais complexo do que estimular o sistema imunológico contra um patógeno específico.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

bioética e o fim da vida


 


Na medida em que a medicina moderna prolonga a vida humana, a qualidade de vida não acompanha o ritmo, o que acarreta em novos dilemas éticos.

Todo mundo morre algum dia. Mas quando e como? Essas questões tornam-se mais evidentes à medida que os aniversários passam. Tem sido dito que onde quer que os idosos se reúnam, há um queixar constante , relatos de órgãos e partes do corpo com mau funcionamento.

Os biofísicos calculam que, com a melhoria máxima nos cuidados de saúde, o relógio biológico dos seres humanos deve parar entre 120-150 anos . Empresas de biotecnologia estão a pôr isto à prova, esforçando-se por prolongar a nossa vida útil normal tanto quanto possível. Contudo, um problema básico, pelo menos até agora, é que uma qualidade de vida sustentada não foi prolongada para acompanhar a nossa longevidade alargada.

Que valor existe em existir se a capacidade de fazer o que você mais valoriza se torna indisponível?

À medida que as pessoas envelhecem, não ganham segurança económica, podem ir perdendo o seu nível habitual de independência, diminuem as suas relações sociais e lutam para tratar ou evitar doenças crónicas. Por exemplo, cerca de 85 por cento dos adultos mais velhos nos Estados Unidos têm pelo menos uma doença crónica comum, como diabetes, doenças cardíacas, artrite ou algum tipo de demência. Assim, muitas tarefas rotineiras como tomar banho, arrumar a cama, fazer compras, pegar itens do chão ou caminhar sem cair não podem ser realizadas sem ajuda. Em suma, à medida que vivemos mais, também ficamos doentes por mais tempo.

A depressão psicológica, causada por doenças físicas e despesas médicas associadas, muitas vezes contribui para um declínio ainda maior. Quase todos os dias uma nova dor surge e se soma às doenças contínuas. Compromissos médicos indesejáveis, mas necessários, gradualmente sugam a vitalidade de uma pessoa com doença crónica. Na maioria dos casos, a morte não é um acontecimento súbito no final da vida (exceto como um estado físico legalmente definido). Pelo contrário, é um longo processo de declínio funcional progressivo.

O personagem Zaratustra do filósofo Friedrich Nietzsche comentou que: muitos morrem tarde demais e alguns morrem cedo demais. Ainda assim, a doutrina parece estranha: 'Morra na hora certa.' Nietzsche provavelmente teria aprovado o filme cult de comédia dramática Harold e Maude (1971), mostrando uma morte oportuna e comovente. Harold, de 20 anos, entediado e obcecado por pensamentos suicidas, conhece Maude, de 79 anos, no funeral de um estranho. Maude, que quebra muitos tabus sociais, ensina Harold a tornar a vida divertida. Um ano depois, ela organiza calmamente sua própria morte. Harold fica chocado ao perceber o valor da consciência do momento presente.

Uma exceção notável ao tabu da discussão sobre a morte foi uma noticia no KFF Health News em junho de 2019 que relatou sobre uma mulher de 86 anos organizando uma reunião secreta  com outros nove idosos (que escaparam de sua sofisticada comunidade de aposentados perto da Filadélfia) para discutir o “suicídio racional”. Os idosos são atualmente responsáveis ​​por cerca de 18 % dos suicídios nos EUA. Uma tentativa de suicídio malsucedida pode deixar a pessoa em situação ainda pior. Como afirmou um dos participantes na reunião de Filadélfia: “Só temos uma oportunidade. Todo mundo quer saber o que fazer.

A assistência médica na morte e outras práticas pertinentes aos cuidados de fim de vida estão rodeadas de questões enigmáticas e controversas que envolvem crenças religiosas e direitos civis. Muitas pessoas acreditam que a vida é sagrada e, portanto, o início e o fim devem ser deixados à intervenção divina. A doutrina da 'santidade da vida', comumente baseada em uma metafísica teísta, sustenta que matar a si mesmo ou a outros destrói o valor intrínseco da vida dado por Deus. Em contraste, uma visão utilitarista secular sustenta que existe um dever de “maximizar a felicidade” e, portanto, existe uma obrigação moral de pôr fim a uma vida quando esta é caracterizada por indignidade e sofrimento. Alguns filósofos morais argumentam que, tal como é errado obrigar as pessoas a morrer, também é errado obrigar as pessoas a viver em condições que consideram intoleráveis.

Nesse processo se debruça a bioética sempre ponderando os 4 princípios que permeiam sua desenvoltura : a beneficência , a não-maleficiência , a justiça e por fim o mais decisivo : a autonomia.


sexta-feira, 21 de julho de 2023

a desinformação


 

Vivemos num multiverso digital : um mundo infestado de informações enganosas incrustadas em sofisticadas redes de desinformação. Milhões de pessoas são submetidas a uma dieta sistemática de mentiras e teorias da conspiração.. São “notícias”falsas que circulam pelas redes sociais, distorcendo a realidade, sequestrando evidências, inventando fatos e semeando sentimentos de ódio, medo e desconfiança na população. Espalham-se como um vírus altamente contagioso aproveitando-se da maneira como a maioria das pessoas consome e retransmite informações atualmente: pela tela de um telefone celular, via aplicativos de mensagens e redes sociais, repetidas vezes ao dia.

O problema não é novo. Informações falsas ou distorcidas são empregadas para influenciar a opinião pública sobre os mais diferentes temas desde os primórdios da sociedade, seja na forma de propaganda enganosa ou de notícias enviesadas por interesses políticos, econômicos e ideológicos. O surgimento das mídias digitais, porém, ampliou imensamente o poder de fogo e o alcance dessas “armas de desinformação em massa”, tornando-as muito mais perigosas. O que era um revólver virou uma metralhadora multimídia, de longo alcance e sem limite de munição.

Segundo o Instituto Igarapé, que analisa o impacto da desinformação nas últimas eleições presidenciais no Brasil, desde 2014 o país se transformou num “verdadeiro laboratório de desinformação”, com processos eleitorais marcados, cada vez mais, pela “disseminação maciça de notícias falsas e formas mais amplas de desinformação online”.

Muito além dos factoides de campanha, gerados para manchar a reputação ou enaltecer as virtudes de um determinado candidato no horário da propaganda eleitoral, a desinformação  circula por todos os nichos do ecossistema global de comunicação, desde os calabouços mais escuros da deep web até as torres mais opulentas da mídia corporativa. Uma diferença fundamental, segundo especialistas, é que as mentiras não buscam mais apenas atingir a reputação de uma pessoa em particular (um adversário político, por exemplo), mas manipular o comportamento e a opinião da população sobre temas diversos que atendam aos interesses (políticos, econômicos e/ou ideológicos) de determinados grupos que produzem e financiam essa desinformação. Estamos imersos numa guerra de informações, que permeia todas as esferas da sociedade. E o mais frustrante é que a maioria das pessoas não sabe que isso está acontecendo. É uma guerra travada no ambiente digital, mas com consequências drásticas no mundo real. A desinformação pode matar pessoas; e matar democracias, também : a mortalidade elevada da pandemia de covid-19 e os recentes ataques às instituições democráticas no Brasil e nos Estados Unidos são exemplos disso.

Jamais poderemos quantificar isso precisamente, mas não existe nenhuma dúvida sobre a relação de causa e efeito entre desinformação e a morte de pessoas por covid-19 no Brasil. A disseminação de informações falsas sobre vacinas, máscaras e outras medidas de proteção dificultou o controle da pandemia e expôs milhões de pessoas a um risco aumentado de infecção, adoecimento e morte por covid-19. A comunicação é central no gerenciamento de uma crise que depende do comportamento das pessoas para ser solucionada : se a comunicação aponta na direção errada, no campo da saúde pública, o resultado pode ser fatal. A mortalidade da pandemia no Brasil foi uma das mais altas do mundo, quatro vezes maior do que a média mundial, com cerca de 3.300 mortes por milhão de habitantes registradas no País, ante 870 mortes por milhão de habitantes na média global, segundo números compilados pela Organização Mundial da Saúde e visualizados por meio da plataforma Our World in Data.

Assim como numa pandemia biológica, muitas pessoas carregam e transmitem o vírus da desinformação sem saber que estão infectadas (ou sendo influenciadas) por ele. Em última instância, a desinformação busca manipular a percepção pública da realidade como um todo; por isso ela contamina todas as áreas do debate público e não apenas o noticiário político . Essa manipulação é feita por pessoas “que se colocam de fora do processo democrático” e que sabem usar o maquinário das mídias digitais para construir cenários fictícios — mas de aparência extremamente realista — dentro dessa maquete social. Todo esse aparato tecnológico que foi construído dentro da internet nos últimos 20 anos nos colocou, de certa forma, como espectadores, voluntários e involuntários, de um espetáculo no qual não temos acesso aos bastidores nem sabemos quem está cumprindo qual papel. É improvável esperar que as pessoas sejam capazes de identificar todas as formas de desinformação por conta própria, porque elas são construídas de uma forma muito crível, quase sempre usando uma pitada de realidade para conferir um verniz de veracidade a alguma narrativa mentirosa.

Um exemplo foi a mensagem falsa em que a Polícia Militar supostamente recomenda às pessoas não sair de casa após as 22 horas : muito bem redigida, ela se aproveita de uma preocupação legítima com a questão da criminalidade urbana para propagar uma sensação de medo na sociedade, com o objetivo de torná-la mais permeável à aceitação de políticas armamentistas e intervencionistas. A mensagem circula amplamente desde 2018 e já foi desmentida pela Polícia Militar de vários Estados. O texto não pede voto em ninguém, mas busca construir uma realidade adulterada, na qual as pessoas, sentindo-se ameaçadas, se tornam mais inclinadas a apoiar políticas e políticos que defendem intervenções radicais na segurança pública, como armar a população ou ampliar o conceito de excludente de ilicitude para policiais.

A desinformação é uma forma desonesta de propaganda, que não diz que é propaganda. É uma mentira disfarçada de verdade, construída para alterar o comportamento das pessoas. Os disfarces são muitos e variam de acordo com o objetivo da desinformação e o meio pelo qual ela vai ser disseminada. Não precisa nem ser uma notícia falsa, propriamente dita. Pode ser uma notícia verdadeira, porém tirada de contexto ou manipulada de alguma forma para inflar sua relevância ou lhe conferir algum significado espúrio. Pode ser um boato espalhado por aplicativos de mensagens; às vezes na forma de texto, às vezes como arquivo de áudio, gravado por alguém que se apresenta como testemunha ou delator de alguma informação secreta. Pode ser um vídeo de alguém de jaleco distorcendo evidências científicas, oferecendo curas milagrosas ou propagando teorias conspiratórias de que o homem nunca pisou na Lua, que as vacinas alteram o seu DNA, que as universidades públicas no Brasil são centros de doutrinação comunista ou que o desmatamento na Amazônia não passa de uma mentira inventada por ONGs internacionais para destruir o agronegócio brasileiro. A ficção, diferentemente da verdade, não é limitada por fatos, mas pela criatividade de seu criador.

A guerra está no seu bolso”, resumiu a jornalista filipina Maria Ressa, em uma conferência de três dias sobre desinformação, promovida em maio pela Fundação Nobel e a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Mais especificamente, a guerra está embutida naquele aparelho eletrônico retangular que vive dentro dos nossos bolsos: o adorado e famigerado smartphone; principal vetor usado pelo vírus da desinformação para se espalhar na sociedade e infectar a mente das pessoas. A internet e as redes sociais, segundo ela, estão sendo usadas por agentes maliciosos em diversos países — incluindo o Brasil — como “um sistema de modificação comportamental” da sociedade, com consequências potencialmente desastrosas para a democracia (por meio da radicalização política e da interferência em processos eleitorais), para a saúde pública (pela disseminação de notícias falsas sobre vacinas, por exemplo), e até mesmo para o futuro da espécie humana no planeta (pelo negacionismo da crise climática e de outras ameaças de caráter global).

“Uma bomba atômica invisível foi lançada sobre o nosso ecossistema de informações”, discursou Ressa, em 2021, após receber o Prêmio Nobel. O primeiro passo para reconstruir o que já foi destruído e desarmar outras bombas que estão por vir (com poder de destruição ainda maior, amplificado pelos avanços da inteligência artificial) é a “restauração dos fatos”, segundo ela. “Sem fatos não pode haver verdade. Sem verdade não pode haver confiança. Sem confiança, não temos uma realidade compartilhada, não temos democracia, e torna-se impossível lidar com os problemas existenciais do nosso tempo”.

A perda dessa “realidade compartilhada” é uma peça-chave do problema. Ela se dá pela fragmentação da sociedade em grupos culturalmente fechados, e frequentemente antagônicos, nos quais as pessoas só se relacionam com aquelas que pensam igual a elas e consomem informações que confirmam suas próprias convicções. São as chamadas bolhas ou câmaras de eco digitais, nas quais a desinformação encontra campo fértil para crescer raízes sem ser contestada.

Essa fragmentação é impulsionada em grande parte pelos algoritmos das redes sociais, que são programados para customizar a visualização de conteúdo aos interesses e preferências de cada usuário. Um sistema excelente para vender anúncios e produtos via microtargeting (propaganda customizada), mas péssimo para a manutenção de uma realidade compartilhada e, consequentemente, de uma democracia saudável. Isso porque a customização não se aplica apenas aos anúncios, mas também às notícias (falsas e verdadeiras), artigos de opinião, comentários, postagens, sugestões de leitura, recomendações de amizade, resultados de busca e tudo mais que qualquer pessoa visualiza na internet.

O que você vê não é o que eu vejo. As notícias que aparecem para você são diferentes das que aparecem para mim. Assim, fica difícil compartilharmos uma visão de mundo. As bolhas digitais têm o atrativo de serem ambientes confortáveis, onde as pessoas têm seus desejos de consumo atendidos, só recebem notícias que confirmam suas opiniões, interagem com pessoas que pensam igual a elas e, portanto, não precisam responder perguntas incômodas nem se dar ao trabalho de questionar suas convicções. Os algoritmos nos enxergam não como indivíduos autônomos, mas como indivíduos que se agregam em clusters que eles mesmos formam.

É nesses espaços digitais herméticos e recheados de viés de confirmação que os arquitetos da desinformação constróem seus cenários fictícios, isolando as pessoas da realidade coletiva e dificultando o debate democrático sobre desafios compartilhados da sociedade. Uma das comorbidades associadas a essa fragmentação é o aumento da polarização e da radicalização política. Nesse cenário incendiário, desinformação e polarização caminham de mãos dadas, numa relação simbiótica em que uma se beneficia do desenvolvimento da outra: a desinformação alimenta a polarização, e quanto mais polarizada a sociedade, mais suscetível as pessoas de cada lado se tornam a aceitar e propagar conteúdos que reafirmam suas convicções — em contraponto à convicção dos outros.

Os arquitetos da desinformação tendem a empacotar suas mensagens da forma mais sensacionalista, ameaçadora e conspiratória possível, com o intuito de maximizar o engajamento e a disseminação delas nas mídias digitais. Debates sobre políticas públicas e disputas eleitorais são apresentados como guerras entre o bem e o mal, frequentemente permeadas por discurso de ódio, teorias conspiratórias, demonização de inimigos e pregação religiosa. O propósito da desinformação não é só fazer com que você acredite numa mentira; é fazer com que você odeie as outras pessoas que não acreditam nela.

A ciência não fica ilesa nesse processo; nem os cientistas nem as instituições nas quais eles trabalham. O cientista é um inimigo natural da desinformação, por isso ele precisa ser combatido. E como é que você faz isso? Minando a credibilidade das universidades e dos cientistas. A mesma lógica se aplica à estratégia de sabotar a confiança da sociedade nos veículos tradicionais de imprensa e redirecioná-la para canais alternativos que, na verdade, são pouco confiáveis.

 

Regulamentação das redes

Reconhecida a ameaça, falta organizar a defesa. Como baixar a fervura e reduzir a formação de bolhas que propagam desinformação quando todos os botões do comportamento humano e das redes sociais parecem pré-dispostos a aumentá-la?

Entre as várias ações defendidas por especialistas, duas que costumam encabeçar a lista de prioridades são a educação midiática e a regulamentação do funcionamento das plataformas digitais (redes sociais e aplicativos de mensagens). A primeira se aplica aos usuários e a segunda, às grandes empresas que operam essas plataformas e, consequentemente, controlam grande parte do ecossistema global de informações. O problema não está apenas na má-fé dos operadores das mídias hiperpartidárias, mas em todos nós que colaboramos para a degradação da esfera pública ao transformar o debate político numa guerra de informação pouco reflexiva, na qual compartilhar matérias noticiosas de baixa qualidade é um expediente socialmente aceito. A regulamentação das mídias digitais é hoje prerrogativa básica para a construção de uma solução sistêmica para a crise global de desinformação. A ideia de que podemos solucionar esse problema apelando para a capacidade de pensamento crítico das pessoas é ingênua. É errado olhar apenas para o indivíduo. Precisamos olhar também para o cenário mais amplo da mídia e pensar na responsabilidade das plataformas.


quarta-feira, 19 de julho de 2023

a explicação genética para as pessoas que não manifestam sintomas de covid

 




O vírus SARS cov 2 se espalhou , nos primórdios da pandemia , de forma rápida e silenciosa principalmente através de pessoas contagiosas mas que não apresentavam sintomas .

O SARS original, só era transmitido quando uma pessoa apresentava sintomas. Outros, como a influenza, podem se espalhar um ou dois dias antes do aparecimento do quadro clínico. Estudos do primeiro ano (sem vacina) da pandemia sugeriram que mais da metade dos casos de Covid-19 foram causados ​​por pessoas infectadas que não apresentaram nenhum sintoma.

O que torna as pessoas capazes de eliminar o SARS-cov-2 sem apresentarem qualquer suspeita sintomática tem sido um dos mistérios da pandemia. Agora, um grupo de cientistas da Universidade da Califórnia, em San Francisco, acredita ter encontrado uma resposta: está nos nossos genes !

Em um estudo publicado na revista Nature, a equipe identificou uma mutação que aumenta em quase dez vezes a chance de uma pessoa ser assintomática. Ela concentra-se no antígeno leucocitário humano, ou HLA - uma molécula que ajuda o sistema imunológico a vigiar todas as células do corpo humano e é crítica durante os primeiros estágios da infecção. As proteínas HLA estão constantemente pegando pedaços de proteínas que encontram dentro ou ao redor de suas células e trazendo-as à superfície para exibi-las às células imunes que passam.

Na maioria das vezes, essas proteínas são apenas pedaços inofensivos de células saudáveis.Mas, , as moléculas HLA podem conter algo irreconhecível – um pedaço de uma proteína bacteriana ou parte de um vírus. Isso deve disparar alarmes no sistema imunológico, mobilizando a produção de anticorpos e enviando tropas de células T para invadir a área.Nem todas as moléculas de HLA são criadas iguais – algumas são melhores em capturar diferentes tipos de proteínas do que outras. E os genes HLA são alguns dos mais diversos do genoma humano.

Os pesquisadores tiveram um palpite de que parte da variedade nas respostas imunes das pessoas ao SARS-cov-2 poderia vir de seu HLA específico. Para saber se isso era verdade, ela recorreu ao Programa Nacional de Doadores de Medula, o maior banco de dados de pessoas que tiveram seus genes HLA decodificados, totalizando cerca de 13 milhões de indivíduos. (Os genes HLA são aqueles que devem ser combinados para que as pessoas que recebem um transplante de órgão ou medula óssea não rejeitem o tecido estranho.) A equipe conseguiu recrutar cerca de 30.000 pessoas desse registro para fazer parte do The Covid-19 Citizen Science Study, um projeto lançado para rastrear as exposições, infecções e sintomas por meio de um aplicativo de smartphone. Desde o momento em que começaram a rastrear esses dados até abril de 2021 – quando as vacinas se tornaram amplamente disponíveis – mais de 13.000 testaram positivo. Nesse grupo, 10% permaneceram completamente livres de sintomas.

Quando o estudo analisou o que esses indivíduos tinham em comum, descobriu que cerca de 1 em cada 5 compartilhava uma mutação comum em seu gene HLA, conhecida como HLA-B*15:01. Isso sugeriu que esta versão do HLA era especialmente potente na eliminação do SARS-CoV-2. Para entender o porquê, eles rastrearam amostras congeladas de células T de indivíduos portadores da mutação B*15:01 – células T que haviam sido colhidas muito antes da pandemia de Covid-19 – e as expuseram ao SARS-CoV-2. Eles viram que a maioria dessas células T reconheceu o vírus imediatamente.

Outros experimentos descobriram a provável razão para isso: esta versão do HLA é boa para capturar os pedaços de outros coronavírus – aqueles que causam resfriados sazonais – que mais se parecem com o SARS-CoV-2. Portanto, se você tem esse HLA e foi exposto a esses vírus (que a maioria das pessoas tem), quando o SARS-Cov-2 aparece, seu corpo não precisa de tempo para produzir células T especificamente direcionadas para combatê-lo . Eles já estão lá.

Indivíduos com esta mutação B * 15:01 que têm essas células T de reação cruzada parecem ser particularmente eficazes, muito cedo na infecção, em destruir o vírus antes que essas pessoas apresentem qualquer sintoma.

Essa descoberta pode ajudar nos esforços para projetar vacinas ainda mais eficazes no futuro. 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

pandemia da patologização


 

Em todo o Ocidente, a saúde mental dos jovens está se deteriorando. Mais do que qualquer geração anterior, eles expressam sentimentos de desespero e desesperança, e estão sendo diagnosticados com transtornos mentais em um ritmo sem precedentes. Uma análise dos dados sugere que esta crise de saúde mental é um sintoma de uma sociedade com mau funcionamento, que está deixando as pessoas doentes ao ensiná-las a se sentirem doentes.

No dados da pandemia de Covid, existem sinais de uma pandemia muito mais estranha. Sabemos que a Covid pode levar a uma série de complicações de longo prazo, conhecidas coletivamente como Covid longa, e como homens e idosos sofrem mais complicações da Covid, esperamos que os sobreviventes da Covid com maior probabilidade de relatar Covid longa sejam homens mais velhos. Mas não é assim.

De acordo com uma pesquisa do US Census Bureau , as mulheres têm quase duas vezes mais chances do que os homens de relatar ter Covid longo, enquanto os transgêneros têm significativamente mais chances de fazê-lo do que todos os outros. Enquanto isso, um estudo alemão concluiu que “há evidências acumuladas de que meninas adolescentes correm um risco particular de sintomas prolongados” .

Dado que a Covid tende a afetar mais os homens do que as mulheres, por que a Covid longa afetaria mais as mulheres do que os homens? E dado que as complicações da Covid são extremamente raras nos jovens , por que as adolescentes seriam desproporcionalmente afetadas pela longa Covid? Por fim, por que o longo Covid afetaria mais as pessoas transgênero?

A resposta está no fato de que a Covid não é um fenômeno estritamente físico. Um estudo com quase dois milhões de pessoas publicado na Nature descobriu que as pessoas que relataram três ou mais sintomas de Covid longa incluíam 4,9% das pessoas confirmadas como tendo Covid e 4% das pessoas sem evidência de ter tido Covid. Portanto, relatórios de Covid longo não são indicadores confiáveis ​​​​de uma infecção anterior por Covid.

Na verdade, o problema se correlaciona tanto com transtornos de humor quanto com a própria Covid. Um estudo descobriu que pessoas propensas a ansiedade e depressão antes da infecção tinham 45% mais chances de desenvolver Covid longa, e o estudo da Nature descobriu que ter ansiedade e depressão antes da infecção quase dobrou a chance de relatar Covid longa após a infecção. Isso ajudaria a explicar por que mulheres e pessoas trans estão relatando sintomas de forma desproporcional: esses dois dados demográficos têm taxas particularmente altas de ansiedade e depressão.

Mas por que exatamente os transtornos de humor aumentariam a probabilidade de ocasionar os sintomas pós Covid ? Alguns especialistas especularam que o estresse pode afetar a resposta inflamatória do sistema imunológico levando a infecções mais graves. No entanto, um estudo da Turquia não encontrou correlação entre ansiedade ou depressão e resposta inflamatória ao Covid. Uma explicação muito mais provável é que, como os sintomas dos transtornos de humor se sobrepõem aos da Covid longa, as pessoas confundem angústia com os efeitos colaterais da infecção viral.

A tendência das pessoas de diagnosticar erroneamente seu desespero como um distúrbio médico pode ser observada muito além desta situação clínica. Considere o aumento de relatos de disforia de gênero. Entre 2012 e 2022, o número de adolescentes encaminhados ao Gender Identity Development Service (GIDS) do NHS por disforia de gênero aumentou em mais de 2.000% . Se o aumento fosse simplesmente devido à diminuição do estigma em torno de ser trans, esperaríamos que um número proporcional de ambos os sexos e todas as idades se declarasse trans, mas o aumento foi impulsionado quase exclusivamente por jovens e mulheres natas .

O grupo que está relatando desproporcionalmente disforia de gênero - meninas adolescentes - é o mesmo grupo demográfico considerado no estudo alemão como desproporcionalmente em risco de Covid longa. É também o grupo, além das pessoas trans, considerado de maior risco para transtornos de humor. Então, novamente, parece que muitos jovens, especialmente meninas, estão confundindo a angústia geral com outra doença.

E não são apenas os relatos de disforia de gênero que se multiplicam entre os jovens. Aumentos ocorreram para transtorno depressivo maior , transtorno de déficit de atenção , transtorno obsessivo-compulsivo , transtorno de ansiedade social , transtorno de ansiedade generalizada , transtorno do espectro do autismo e vários transtornos alimentares . Parece que os jovens e seus médicos estão cada vez mais vendo problemas pessoais como distúrbios médicos – estamos enfrentando uma “pandemia de patologização”.

Mas por que tantas pessoas confundem tristeza com doença? Para começar, é da natureza humana procurar causas únicas para problemas complexos. O hábito do médico de atribuir todos os sintomas de um paciente a apenas um diagnóstico levou à formulação da máxima de Hickam, que afirma: “Um homem pode ter quantas doenças quiser.” Da mesma forma, é tentador procurar uma razão clara e simples para as pessoas culparem seus problemas por um único distúrbio, mas fazer isso seria cometer o mesmo erro que elas. A patologização pode ter quantas causas quiser.

Uma causa pode ser a cibercondria, o fenômeno pelo qual as pessoas pesquisam ansiosamente sintomas no Google e, devido ao viés de confirmação, ignoram aqueles que não se aplicam a elas enquanto se concentram naqueles que se aplicam, até que se convençam de que têm o distúrbio sobre o qual estão lendo. . Outra causa pode ser o contágio social, pelo qual o pânico se espalha pelo poder da sugestão. De acordo com um estudo do Reino Unido , adolescentes que relataram pais sofrendo de Covid longa tinham quase duas vezes mais chances de relatar sintomas prolongados de Covid, independentemente de terem realmente tido Covid.

Sabe-se que os contágios sociais tendem a afetar mais as meninas do que os meninos, uma disparidade que provavelmente é exacerbada pelo fato de as meninas usarem mais as redes sociais do que os meninos. Mas o problema com o contágio social como explicação é que é um como, não um porquê; oferece um meio sem motivo.

Alguns tentaram discernir um motivo. Uma delas é que as meninas estão tentando escapar de ideais inatingíveis de feminilidade. A corrida armamentista de cirurgia plástica e filtros de beleza do Instagram faz com que os corpos naturais pareçam feios em comparação, e essa “dismorfia de selfie” pode levar à ansiedade e à depressão, bem como a sintomas de disforia de gênero, já que as meninas púberes ficam desesperadas para desafiar a metamorfose de seus corpos em objetos sexuais. Mas essa explicação não lança muita luz sobre o surgimento de condições como Covid longa, autismo e transtorno obsessivo-compulsivo. No entanto, um mergulho mais profundo nos dados sim.

Quando incluímos a política nos dados de saúde mental, fica claro que não se trata apenas de gênero. Uma pesquisa Pew de 2020 com mais de 10.000 americanos descobriu que os autodenominados liberais de 18 a 29 anos eram mais propensos do que os autodeclarados conservadores da mesma idade a relatar problemas psicológicos. Eles também tinham duas vezes mais chances de dizer que já haviam sido diagnosticados com um distúrbio de saúde mental. Além disso, aqueles que eram “muito liberais” eram mais propensos do que aqueles que eram apenas “liberais” a relatar problemas de saúde mental. O grupo com maior probabilidade de relatar problemas de saúde mental foi o das mulheres liberais brancas, alarmantes 56% das quais relataram ter recebido um diagnóstico de doença mental.

Crucialmente, o controle da visão de mundo reduziu consideravelmente a diferença de gênero: homens liberais eram mais propensos a relatar problemas de saúde mental do que mulheres conservadoras. Parece, então, que a epidemia de saúde mental entre meninas e mulheres jovens está associada à tendência de terem uma mentalidade mais liberal de esquerda do que meninos e homens jovens – uma diferença que está se tornando mais pronunciada com o tempo.

A cultura liberal de esquerda de hoje ensina aos jovens que seus problemas não são culpa deles, mas o produto de vários problemas além de seu controle. Esses problemas podem ser sociológicos – capitalismo tardio, racismo sistêmico, patriarcado – mas cada vez mais são médicos. Um exemplo comum é “trauma”, um termo psiquiátrico que se tornou uma justificativa instintiva para tudo, desde crimes de rua até o silenciamento de opiniões opostas no campus. É uma palavra tão usada que até os médicos temem que tenha perdido o significado. A maioria das pessoas, no entanto, fica feliz em ter suas falhas pessoais atribuídas a questões médicas, porque isso as isenta de responsabilidade. Não é sua culpa que você tenha atacado violentamente, você tem um trauma. Não é sua culpa que falta energia, você tem muito Covid. Não é sua culpa se você odeia sua aparência, você tem disforia de gênero.

A patologização também é uma forma eficaz de fabricar simpatia.

Nas redes sociais, os jovens liberais agora se envolvem em “pesca triste”, uma espécie de Síndrome de Munchausen digital, em que as pessoas fabricam doenças por pena e influência; alguns fingem múltiplas personalidades. O poder dos transtornos de saúde mental para atrair a atenção online os transformou em acessórios de moda, peculiaridades para ajudar as crianças a se destacarem da multidão e até aumentar seu apelo de namoro .

Infelizmente, esses distúrbios não são apenas rótulos inofensivos; a patologização intencional por influenciadores está causando patologização não intencional entre os espectadores. Relatórios falam de meninas adolescentes desenvolvendo repentinamente “tiques TikTok” depois de assistir a vídeos. Outros falam de adolescentes apresentando múltiplas personalidades depois de assistir a vídeos de pessoas que afirmam ter transtorno dissociativo de identidade. Como a atomização torna as pessoas mais desesperadas por simpatia e a competição as torna mais desesperadas por atenção, é provável que a pesca triste e suas consequências só piorem.

Mas, por mais perturbador que tudo isso seja, a cultura de vitimização não é a única força por trás da pandemia de patologização. Foi auxiliado por uma indústria médica que tem seus próprios incentivos para exagerar a prevalência de transtornos mentais. Em seu livro Medical Nemesis , de 1974, o filósofo austríaco Ivan Illich descreveu o processo de “medicalização”, a tendência dos médicos de recategorizar os problemas cotidianos como questões médicas. Illich explicou que os médicos se concentram em procurar a doença, não a saúde, e essa busca obsessiva, mediada pelo viés de confirmação, os leva a ver gradualmente cada vez mais coisas como doentes.

A capacidade dos médicos de ver com precisão os sintomas que procuram é facilitada pelo aumento do conceito , a tendência de as definições de distúrbios se expandirem gradualmente para abranger mais pessoas. O aumento nos diagnósticos de autismo, por exemplo, pode ser amplamente atribuído a uma ampliação diagnóstica do espectro do autismo. A fluência do conceito é uma instância do princípio Shirky, que afirma: “As instituições tentarão preservar os problemas para os quais são a solução”. O motivo geralmente é financeiro; o número de gestações que requerem cesarianas aumentou gradualmente porque esse método de parto é mais lucrativo. Da mesma forma, se você está simplesmente triste, as empresas médicas não podem monetizá-lo, mas se sua angústia for reclassificada como, digamos, disforia de gênero, essas empresas podem vender bloqueadores de puberdade ou procedimentos cirúrgicos

Portanto, temos uma indústria médica que é financeira e ideologicamente motivada a exagerar a prevalência da doença, e temos uma cultura de vitimização que encoraja as pessoas a se verem oprimidas por coisas que não podem controlar. No meio disso, temos pessoas comuns tentadas a colocar a culpa de seus problemas em questões médicas em prol de respostas fáceis. Essas três entidades juntas formam um sistema que se reforça mutuamente.

O falecido filósofo Ian Hacking, em seu livro Rewriting the Soul, detalha como no século 20, a imprensa, o público e a indústria médica operaram em conjunto para criar novas formas de loucura a partir de meras fofocas. Antes de 1970, quase não havia casos de transtorno de personalidade múltipla (agora conhecido como transtorno dissociativo de identidade), mas depois que um caso foi bem divulgado pela mídia, muitas pessoas começaram a usar o conceito de personalidades múltiplas para entender seus próprios problemas. , conformando-se - intencionalmente ou não - aos sintomas oficiais do distúrbio. Quando os médicos especularam que as pessoas podem inventar múltiplas personalidades para lidar com o abuso sexual infantil, as pessoas começaram a inventar múltiplas personalidades para lidar com o abuso sexual infantil. Alguns até se "lembraram" de repente de terem sido abusados ​​sexualmente, embora o conceito de memórias reprimidas não tenha base de fato.. Inicialmente, os pacientes relataram ter duas ou três personalidades. Dentro de uma década, o número médio foi de 17 .

Assim, os relatos dos pacientes influenciaram os diagnósticos dos médicos, e os diagnósticos dos médicos, por sua vez, influenciaram os relatos dos pacientes. Os critérios diagnósticos tornaram-se prescritivos e também descritivos; eles diziam aos pacientes como eles deveriam se sentir e agir. Hacking chamou esse ciclo de reforço mútuo de “efeito de loop”, e provou ser tão poderoso que transformou alguns casos isolados em uma epidemia. Um efeito de loop semelhante, facilitado pelas mídias sociais, parece estar impulsionando o aumento de relatos de doenças mentais hoje. Isso é um problema porque uma doença imaginária pode causar uma doença real.

Parece, então, que a rápida liberalização e medicalização dos jovens, possibilitada pelas mídias sociais, prejudicou sua autoconfiança e resiliência a contratempos. Muitos adolescentes subsequentemente ficam presos em um ciclo em que sentem angústia, patologizam-na, causando mais angústia, levando a mais patologização e angústia, que eventualmente se transformam em ansiedade e depressão. O aumento dos diagnósticos, portanto, não é apenas uma ilusão causada pela medicalização; a sociedade está ensinando as crianças a se sentirem impotentes e sem valor, o que está causando disfunções reais. Este é o maior perigo da pandemia de patologização: a crença na própria doença é autorrealizável. É uma doença não de qualquer órgão do corpo, mas da própria esperança, e prejudica sua vítima ao incapacitar seu potencial de se recuperar de tudo o mais.

domingo, 2 de julho de 2023

o maior erro da pandemia

 

Durante boa parte da pandemia as mortes foram notificadas por idade e “condições de saúde subjacentes”. Para muitos que não viveram a realidade “ de dentro” foi uma espécie de doutrinação acreditar que essas mortes aconteciam não com jovens saudáveis ​​– os membros economicamente produtivos, importantes e “valiosos” da sociedade – mas sim com os velhos, os fracos, os enfermos.

Desta forma, em outras palavras, a fim de não comprometer o sucesso da economia, ou mesmo interromper a busca do prazer das pessoas, o real problema foi sendo minimizado. Bom , de qualquer maneira, a morte dos idosos ou pessoas com comorbidades aconteceriam : com ou sem COVID.

Os escandinavos, vivendo de metáforas da floresta, classificam essas pessoas como “mechas secas”, aquela frágil vegetação rasteira acumulada no chão da floresta e pronta para entrar em combustão, esperando apenas a inevitável faísca.

Mas quem, realmente, somos “nós”? Por exemplo : um em cada dois australianos tem pelo menos uma condição crônica e mais de um em cada cinco tem mais de sessenta anos. Não deixa de ser absurdo tentar mostrar que essas pessoas são de alguma forma “outras”. Eles não são e todos temos um valor inestimável.

É mais uma ficção cínica que o resto de “nós” será capaz de circular como super-seres vacinados, imunes ao vírus que ceifa os fracos, os enfermos, os velhos.  A prioridade da economia adotada nos tempos mais sombrios da pandemia é uma posição factualmente incorreta, já que os países com melhor desempenho contra o vírus foram uniformemente aqueles que optaram por eliminar a transmissão. Ainda nos resta perguntar “o que exatamente é a economia” e “exatamente de quem é o benefício”?.

De certa forma, “a economia” é realmente um código para movimento, o deslocamento contínuo de pessoas e coisas com o objetivo de gerar lucro. Restringir o movimento – a arma mais poderosa contra qualquer novo patógeno – impede a criação eficiente de lucro. Ao convencer a maior parte do rebanho de que apenas os animais mais fracos na borda serão apanhados pelos predadores, a maior parte continua. Não importa que isso não seja verdade e que seja uma faixa do próprio volume que é eliminada: o crescimento populacional logo corrigirá isso em alguns anos. O essencial é manter o rebanho em movimento.