sexta-feira, 21 de julho de 2023

a desinformação


 

Vivemos num multiverso digital : um mundo infestado de informações enganosas incrustadas em sofisticadas redes de desinformação. Milhões de pessoas são submetidas a uma dieta sistemática de mentiras e teorias da conspiração.. São “notícias”falsas que circulam pelas redes sociais, distorcendo a realidade, sequestrando evidências, inventando fatos e semeando sentimentos de ódio, medo e desconfiança na população. Espalham-se como um vírus altamente contagioso aproveitando-se da maneira como a maioria das pessoas consome e retransmite informações atualmente: pela tela de um telefone celular, via aplicativos de mensagens e redes sociais, repetidas vezes ao dia.

O problema não é novo. Informações falsas ou distorcidas são empregadas para influenciar a opinião pública sobre os mais diferentes temas desde os primórdios da sociedade, seja na forma de propaganda enganosa ou de notícias enviesadas por interesses políticos, econômicos e ideológicos. O surgimento das mídias digitais, porém, ampliou imensamente o poder de fogo e o alcance dessas “armas de desinformação em massa”, tornando-as muito mais perigosas. O que era um revólver virou uma metralhadora multimídia, de longo alcance e sem limite de munição.

Segundo o Instituto Igarapé, que analisa o impacto da desinformação nas últimas eleições presidenciais no Brasil, desde 2014 o país se transformou num “verdadeiro laboratório de desinformação”, com processos eleitorais marcados, cada vez mais, pela “disseminação maciça de notícias falsas e formas mais amplas de desinformação online”.

Muito além dos factoides de campanha, gerados para manchar a reputação ou enaltecer as virtudes de um determinado candidato no horário da propaganda eleitoral, a desinformação  circula por todos os nichos do ecossistema global de comunicação, desde os calabouços mais escuros da deep web até as torres mais opulentas da mídia corporativa. Uma diferença fundamental, segundo especialistas, é que as mentiras não buscam mais apenas atingir a reputação de uma pessoa em particular (um adversário político, por exemplo), mas manipular o comportamento e a opinião da população sobre temas diversos que atendam aos interesses (políticos, econômicos e/ou ideológicos) de determinados grupos que produzem e financiam essa desinformação. Estamos imersos numa guerra de informações, que permeia todas as esferas da sociedade. E o mais frustrante é que a maioria das pessoas não sabe que isso está acontecendo. É uma guerra travada no ambiente digital, mas com consequências drásticas no mundo real. A desinformação pode matar pessoas; e matar democracias, também : a mortalidade elevada da pandemia de covid-19 e os recentes ataques às instituições democráticas no Brasil e nos Estados Unidos são exemplos disso.

Jamais poderemos quantificar isso precisamente, mas não existe nenhuma dúvida sobre a relação de causa e efeito entre desinformação e a morte de pessoas por covid-19 no Brasil. A disseminação de informações falsas sobre vacinas, máscaras e outras medidas de proteção dificultou o controle da pandemia e expôs milhões de pessoas a um risco aumentado de infecção, adoecimento e morte por covid-19. A comunicação é central no gerenciamento de uma crise que depende do comportamento das pessoas para ser solucionada : se a comunicação aponta na direção errada, no campo da saúde pública, o resultado pode ser fatal. A mortalidade da pandemia no Brasil foi uma das mais altas do mundo, quatro vezes maior do que a média mundial, com cerca de 3.300 mortes por milhão de habitantes registradas no País, ante 870 mortes por milhão de habitantes na média global, segundo números compilados pela Organização Mundial da Saúde e visualizados por meio da plataforma Our World in Data.

Assim como numa pandemia biológica, muitas pessoas carregam e transmitem o vírus da desinformação sem saber que estão infectadas (ou sendo influenciadas) por ele. Em última instância, a desinformação busca manipular a percepção pública da realidade como um todo; por isso ela contamina todas as áreas do debate público e não apenas o noticiário político . Essa manipulação é feita por pessoas “que se colocam de fora do processo democrático” e que sabem usar o maquinário das mídias digitais para construir cenários fictícios — mas de aparência extremamente realista — dentro dessa maquete social. Todo esse aparato tecnológico que foi construído dentro da internet nos últimos 20 anos nos colocou, de certa forma, como espectadores, voluntários e involuntários, de um espetáculo no qual não temos acesso aos bastidores nem sabemos quem está cumprindo qual papel. É improvável esperar que as pessoas sejam capazes de identificar todas as formas de desinformação por conta própria, porque elas são construídas de uma forma muito crível, quase sempre usando uma pitada de realidade para conferir um verniz de veracidade a alguma narrativa mentirosa.

Um exemplo foi a mensagem falsa em que a Polícia Militar supostamente recomenda às pessoas não sair de casa após as 22 horas : muito bem redigida, ela se aproveita de uma preocupação legítima com a questão da criminalidade urbana para propagar uma sensação de medo na sociedade, com o objetivo de torná-la mais permeável à aceitação de políticas armamentistas e intervencionistas. A mensagem circula amplamente desde 2018 e já foi desmentida pela Polícia Militar de vários Estados. O texto não pede voto em ninguém, mas busca construir uma realidade adulterada, na qual as pessoas, sentindo-se ameaçadas, se tornam mais inclinadas a apoiar políticas e políticos que defendem intervenções radicais na segurança pública, como armar a população ou ampliar o conceito de excludente de ilicitude para policiais.

A desinformação é uma forma desonesta de propaganda, que não diz que é propaganda. É uma mentira disfarçada de verdade, construída para alterar o comportamento das pessoas. Os disfarces são muitos e variam de acordo com o objetivo da desinformação e o meio pelo qual ela vai ser disseminada. Não precisa nem ser uma notícia falsa, propriamente dita. Pode ser uma notícia verdadeira, porém tirada de contexto ou manipulada de alguma forma para inflar sua relevância ou lhe conferir algum significado espúrio. Pode ser um boato espalhado por aplicativos de mensagens; às vezes na forma de texto, às vezes como arquivo de áudio, gravado por alguém que se apresenta como testemunha ou delator de alguma informação secreta. Pode ser um vídeo de alguém de jaleco distorcendo evidências científicas, oferecendo curas milagrosas ou propagando teorias conspiratórias de que o homem nunca pisou na Lua, que as vacinas alteram o seu DNA, que as universidades públicas no Brasil são centros de doutrinação comunista ou que o desmatamento na Amazônia não passa de uma mentira inventada por ONGs internacionais para destruir o agronegócio brasileiro. A ficção, diferentemente da verdade, não é limitada por fatos, mas pela criatividade de seu criador.

A guerra está no seu bolso”, resumiu a jornalista filipina Maria Ressa, em uma conferência de três dias sobre desinformação, promovida em maio pela Fundação Nobel e a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Mais especificamente, a guerra está embutida naquele aparelho eletrônico retangular que vive dentro dos nossos bolsos: o adorado e famigerado smartphone; principal vetor usado pelo vírus da desinformação para se espalhar na sociedade e infectar a mente das pessoas. A internet e as redes sociais, segundo ela, estão sendo usadas por agentes maliciosos em diversos países — incluindo o Brasil — como “um sistema de modificação comportamental” da sociedade, com consequências potencialmente desastrosas para a democracia (por meio da radicalização política e da interferência em processos eleitorais), para a saúde pública (pela disseminação de notícias falsas sobre vacinas, por exemplo), e até mesmo para o futuro da espécie humana no planeta (pelo negacionismo da crise climática e de outras ameaças de caráter global).

“Uma bomba atômica invisível foi lançada sobre o nosso ecossistema de informações”, discursou Ressa, em 2021, após receber o Prêmio Nobel. O primeiro passo para reconstruir o que já foi destruído e desarmar outras bombas que estão por vir (com poder de destruição ainda maior, amplificado pelos avanços da inteligência artificial) é a “restauração dos fatos”, segundo ela. “Sem fatos não pode haver verdade. Sem verdade não pode haver confiança. Sem confiança, não temos uma realidade compartilhada, não temos democracia, e torna-se impossível lidar com os problemas existenciais do nosso tempo”.

A perda dessa “realidade compartilhada” é uma peça-chave do problema. Ela se dá pela fragmentação da sociedade em grupos culturalmente fechados, e frequentemente antagônicos, nos quais as pessoas só se relacionam com aquelas que pensam igual a elas e consomem informações que confirmam suas próprias convicções. São as chamadas bolhas ou câmaras de eco digitais, nas quais a desinformação encontra campo fértil para crescer raízes sem ser contestada.

Essa fragmentação é impulsionada em grande parte pelos algoritmos das redes sociais, que são programados para customizar a visualização de conteúdo aos interesses e preferências de cada usuário. Um sistema excelente para vender anúncios e produtos via microtargeting (propaganda customizada), mas péssimo para a manutenção de uma realidade compartilhada e, consequentemente, de uma democracia saudável. Isso porque a customização não se aplica apenas aos anúncios, mas também às notícias (falsas e verdadeiras), artigos de opinião, comentários, postagens, sugestões de leitura, recomendações de amizade, resultados de busca e tudo mais que qualquer pessoa visualiza na internet.

O que você vê não é o que eu vejo. As notícias que aparecem para você são diferentes das que aparecem para mim. Assim, fica difícil compartilharmos uma visão de mundo. As bolhas digitais têm o atrativo de serem ambientes confortáveis, onde as pessoas têm seus desejos de consumo atendidos, só recebem notícias que confirmam suas opiniões, interagem com pessoas que pensam igual a elas e, portanto, não precisam responder perguntas incômodas nem se dar ao trabalho de questionar suas convicções. Os algoritmos nos enxergam não como indivíduos autônomos, mas como indivíduos que se agregam em clusters que eles mesmos formam.

É nesses espaços digitais herméticos e recheados de viés de confirmação que os arquitetos da desinformação constróem seus cenários fictícios, isolando as pessoas da realidade coletiva e dificultando o debate democrático sobre desafios compartilhados da sociedade. Uma das comorbidades associadas a essa fragmentação é o aumento da polarização e da radicalização política. Nesse cenário incendiário, desinformação e polarização caminham de mãos dadas, numa relação simbiótica em que uma se beneficia do desenvolvimento da outra: a desinformação alimenta a polarização, e quanto mais polarizada a sociedade, mais suscetível as pessoas de cada lado se tornam a aceitar e propagar conteúdos que reafirmam suas convicções — em contraponto à convicção dos outros.

Os arquitetos da desinformação tendem a empacotar suas mensagens da forma mais sensacionalista, ameaçadora e conspiratória possível, com o intuito de maximizar o engajamento e a disseminação delas nas mídias digitais. Debates sobre políticas públicas e disputas eleitorais são apresentados como guerras entre o bem e o mal, frequentemente permeadas por discurso de ódio, teorias conspiratórias, demonização de inimigos e pregação religiosa. O propósito da desinformação não é só fazer com que você acredite numa mentira; é fazer com que você odeie as outras pessoas que não acreditam nela.

A ciência não fica ilesa nesse processo; nem os cientistas nem as instituições nas quais eles trabalham. O cientista é um inimigo natural da desinformação, por isso ele precisa ser combatido. E como é que você faz isso? Minando a credibilidade das universidades e dos cientistas. A mesma lógica se aplica à estratégia de sabotar a confiança da sociedade nos veículos tradicionais de imprensa e redirecioná-la para canais alternativos que, na verdade, são pouco confiáveis.

 

Regulamentação das redes

Reconhecida a ameaça, falta organizar a defesa. Como baixar a fervura e reduzir a formação de bolhas que propagam desinformação quando todos os botões do comportamento humano e das redes sociais parecem pré-dispostos a aumentá-la?

Entre as várias ações defendidas por especialistas, duas que costumam encabeçar a lista de prioridades são a educação midiática e a regulamentação do funcionamento das plataformas digitais (redes sociais e aplicativos de mensagens). A primeira se aplica aos usuários e a segunda, às grandes empresas que operam essas plataformas e, consequentemente, controlam grande parte do ecossistema global de informações. O problema não está apenas na má-fé dos operadores das mídias hiperpartidárias, mas em todos nós que colaboramos para a degradação da esfera pública ao transformar o debate político numa guerra de informação pouco reflexiva, na qual compartilhar matérias noticiosas de baixa qualidade é um expediente socialmente aceito. A regulamentação das mídias digitais é hoje prerrogativa básica para a construção de uma solução sistêmica para a crise global de desinformação. A ideia de que podemos solucionar esse problema apelando para a capacidade de pensamento crítico das pessoas é ingênua. É errado olhar apenas para o indivíduo. Precisamos olhar também para o cenário mais amplo da mídia e pensar na responsabilidade das plataformas.


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