Adolf Eichmann , nazista responsável pela logistica do assassinato em massa dos judeus na segunda grande guerra, ao ser julgado pelos crimes cometidos disse em sua defesa: “Essas eram as instruções, se elas [as pessoas] seriam mortas ou não, as ordens tinham que ser executadas”, sem esboçar nenhuma emoção. Um ano depois foi condenado e enforcado.
Todo o julgamento foi amplamente divulgado e gerou diversas repercussões importantes. A mais famosa talvez seja a da expressão “banalidade do mal”, cunhada por Hannah Arendt, que esteve presente no julgament e resultou num livro com o mesmo título. Acompanhando o contexto, Günther Anders, filósofo judeu alemão, resolveu escrever uma carta para Klaus Eichmann, filho mais velho do conhecido nazista.
Destinatário e remetente com trajetórias cruzadas: o filho de um nazista e um judeu alemão, que sobreviveu por ter escapado aos planos do pai do primeiro. Apesar disso, Anders se dirige ao destinatário com respeito, negando que a desumanidade do pai implique em qualquer responsabilidade do filho, ao mesmo tempo em que lhe cobra uma atitude: “O fato de descender do seu pai não lhe dá o direito de se solidarizar com ele — ao contrário, você é obrigado a se desligar de sua origem, e renegá-lo”.
O tom cordial só vai se transformar no post scriptum da carta, quando Anders, um tempo depois de tê-la escrito, conta ter se deparado com uma declaração de Klaus Eichmann a favor do pai. Ao longo do texto, Anders denomina a eliminação industrial de milhões de seres humanos como “monstruosa” e diz recorrer ao passado para “transformá-lo em outra coisa”. Argumenta que os pressupostos que permitiram o extermínio não foram transformados e, portanto, o “monstruoso” não foi uma exceção, logo há um dever de lutar contra possíveis — e prováveis — repetições.
A partir do apontamento de que o “monstruoso” foi possível pelas mãos de vários “Eichmanns”, Anders desenvolve dois pontos que considera as raízes do genocídio. O primeiro é o de que “nós nos tornamos criaturas de um mundo técnico”, o que leva ao grau máximo de mediação dos processos de trabalho e impede as pessoas de perceberem e sequer imaginarem os efeitos de cada ação tomada. O sentimento de responsabilidade por tais consequências se anula, na medida em que o efeito da ação é elevado demais para tal grandeza ser compreendida. Tornamo-nos “analfabetos emocionais”.
O autor deixa claro que este não era o caso de Eichmann, que participou da elaboração minuciosa da estratégia e, portanto, seria absurdo supor que agia sem saber das consequências de suas ações. Anders afirma que não estamos submetidos a essa dinâmica de forma servil: ao tentar imaginar o resultado de uma ação e fracassar nesta tentativa, acende-se um alerta, uma chance de que tal ato seja revisado.
A segunda raiz do monstruoidade reside “no caráter maquinal do nosso mundo atual”. Para que o “fracasso” seja frutífero e usado como alerta, a tentativa de imaginar deve ser feita de maneira real, ação que é geralmente impedida ou dificultada pela corrente moral do trabalho, dividido e especializado, cujo princípio é o desempenho e o objetivo de acumulação máximos.
Günther Anders é um pessimista convicto. Tenta nos convencer de que a ameaça monstruosa do “reino por vir” é muito pior do que o Reich do passado — o que se explica pelo contexto em que escreve sobre a Guerra Fria e a ameaça do armamento atômico, para a qual muitos trabalham sem questionar, como peças de uma máquina. . Nisso se baseia o título do livro: somos todos “filhos de Eichmann” por não questionarmos a destruição que se origina na ação de cada um
O autor acredita na agência humana contra o destino monstruoso, e este é o objetivo final da primeira carta: “Em quase todos os países da Terra há um movimento de pessoas que lutam contra o princípio de Eichmann”, diz, referindo-se aos grupos contrários ao armamento nuclear. Aderir a esse movimento seria a grande chance de redenção possível a Klaus Eichmann.
Vinte e cinco anos depois, outras questões o levam a escrever novamente a Klaus, em tom bem diferente do da primeira carta. Há em 1988, segundo Anders, uma intensificação da “situação Eichmaniana”. Mas não é só isso que o motiva a escrever, mesmo diante da não resposta da primeira. Sua preocupação agora seria a mudança na mentalidade político-moral percebida na Alemanha e na Áustria, que teria regredido nesse intervalo de tempo, com o fortalecimento não dos “velhos nazistas” mas de “novos nazistas”, que minimizam, relativizam e negam Auschwitz, e instrumentalizam as discussões acerca da culpa coletiva. Nesse segundo momento, ele se nutre de discursos contemporâneos, como a crescente problemática em torno da comparação entre Hitler e Stálin. E mais uma vez argumenta que Klaus tem a chance de deixar de ser filho de seu pai — na medida em que se posicione.
A leitura das duas cartas, separadas por mais de duas décadas, é complementada pelo posfácio “De onde vêm os monstros”, escrito pelo tradutor Felipe Catalani, pesquisador da obra de Anders. O texto contextualiza as duas mensagens em relação à trajetória do autor e de outros autores que desenvolveram ideias relacionadas, como a já citada Arendt e Adorno. Assim, potencializa a atualidade da mensagem contida nos escritos de Anders, de que há um alerta trazido pela reflexão a partir do passado. Para este debate, o público do Brasil de 2023 tem mais esse ponto de partida.
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