quinta-feira, 27 de novembro de 2025

intimidade

 





A verdadeira intimidade não é conforto, é exposição.

Amar alguém profundamente significa permitir que outro olhar acesse zonas do ser que nem sempre suportamos ver.

A intimidade começa quando a imagem que sustentamos de nós mesmos começa a rachar sob o olhar do outro. Por isso ela assusta.

O medo de se deixar afetar é, em grande parte, medo de perder o controle sobre quem acreditamos ser.

O filósofo Winnicott via o encontro humano como um espaço de potencialidade, mas também de ameaça. O bebê, ao ser olhado pela mãe, descobre-se como sujeito, mas só porque foi primeiro um espelho do outro.

Essa matriz se repete na vida adulta: é no olhar amoroso que o eu se confirma, mas também se arrisca. O vínculo é sempre ambivalente; ele alimenta e expõe.

Amar é aceitar ser visto num ponto em que as defesas ainda não chegaram. A confiança, nesse sentido, não é ausência de medo, mas coragem de sustentar o desamparo.

Essa vulnerabilidade pode ser a essência da ética. O rosto do outro é convocação. Ele me obriga a responder, mesmo antes de entender. Na intimidade, o rosto do outro não é metáfora: é presença que desarma.

Ser visto por dentro é reconhecer que o eu não é autossuficiente, que depende do acolhimento alheio para continuar existindo. A alteridade rasga o narcisismo; ela desmonta o mito do sujeito isolado e mostra que a identidade é sempre coabitada.

Amar é aceitar o risco de não ser correspondido, de ser mal compreendido, de perder-se um pouco. Toda relação profunda ameaça desmontar a identidade porque ela introduz o imprevisível no centro do eu.

A intimidade é o espaço onde a liberdade encontra o vínculo; e é dessa colisão que nasce a experiência mais humana do existir.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

o apagamento cultural da morte






A morte, que um dia foi o centro simbólico das culturas, tornou-se um ruído incômodo no

fundo da modernidade. Vivemos como se ela não existisse — e quando surge, é tratada 

como erro, não como estrutura.

A civilização que promete juventude eterna e produtividade infinita não sabe mais morrer.

O fim foi terceirizado: escondido em hospitais, estetizado em redes sociais, domesticado em

discursos de superação. Em vez de elaborar a perda, a cultura contemporânea a disfarça —

transformando o luto em distração e a mortalidade em falha técnica.

Freud via na morte a base da vida psíquica: Eros e Tânatos são forças inseparáveis. O impulso de vida só se define pela presença do fim. Mas a sociedade atual, regida pela lógica do desempenho e da transparência, reprimiu Tânatos. A morte foi recalcada — e o recalcado retorna em ansiedade, pânico, colapsos. A negação do fim cria sujeitos incapazes de luto, que prolongam experiências, amores e identidades como se nada pudesse se encerrar. O resultado é uma existência sem encerramentos, feita de continuidades forçadas.

A infantalização diante do fim nasce da recusa em aceitar o limite. O adulto, dizia Winnicott, é aquele que suporta a perda sem desmoronar; a criança, ao contrário, acredita na reversibilidade de tudo. Nossa cultura, obcecada por juventude e performance, regrediu a essa posição infantil: quer viver sem consequências, amar sem risco, envelhecer sem declínio. A morte, que deveria dar forma à existência, foi substituída por uma promessa de continuidade sem profundidade. O resultado é uma vida que não termina, mas também nunca se cumpre.

Heidegger via na consciência da finitude a condição da autenticidade. Só quem encara a morte pode realmente viver, pois é no limite que o ser se revela. Negar a morte é negar a própria liberdade. Ao eliminar o fim da experiência humana, a cultura elimina também a gravidade do viver. Tudo se torna reversível, descartável, substituível. A imortalidade imaginária produz não coragem, mas superficialidade: se nada acaba, nada importa.

A morte precisa ser reintegrada ao simbólico — não como tragédia, mas como horizonte. Ela é o ponto de tensão que dá sentido à narrativa. A cultura que aprende a morrer recupera também a arte de viver.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

compulsão por aprovação

 







A busca por aprovação é a nova forma de laço social

Tudo o que fazemos — postar, performar, justificar — está secretamente atravessado por uma pergunta que nunca se cala: “Estou sendo visto?” O reconhecimento tornou-se necessidade vital, e sua ausência, quase uma forma de morte simbólica.

Vivemos sob o império do olhar, e o olhar dos outros passou a mediar o próprio valor do eu. A solidão, antes experiência ontológica, tornou-se falha de engajamento.

Lacan descreveu o desejo humano como desejo do desejo do outro. Não se deseja o objeto, mas o lugar que ele ocupa na economia do olhar. O “eu” só se reconhece quando refletido. É por isso que a validação é mais que vaidade: é o combustível do sujeito dividido. O problema surge quando o outro se multiplica e se despersonaliza — o “Grande Outro” do século XXI é o algoritmo. Ele não responde com palavra, mas com curtida. O sujeito não é mais olhado por alguém, mas por uma máquina que mede a intensidade de sua visibilidade. O desejo, antes articulado pela linguagem, é agora regulado por métricas.

Eva Illouz chama isso de capitalismo emocional: a economia contemporânea transformou sentimentos em valor de troca. A validação deixou de ser gesto simbólico e passou a ser capital afetivo. O “like” é moeda, e o sujeito, para sobreviver, precisa mantê-la circulando. O amor, o trabalho, a amizade — tudo se inscreve nessa lógica de prestígio e performance. O inconsciente digital transforma o desejo em dado e o afeto em número. A aprovação, que um dia era confirmação de pertencimento, tornou-se índice de relevância.

Honneth, ao falar da luta por reconhecimento, via nela a base da dignidade humana: ser reconhecido é existir socialmente. Mas o que acontece quando essa luta perde mediação simbólica e se torna compulsão? A aprovação passa a ser vício, e o sujeito se converte em personagem de si. A cada post, a cada exposição, o mesmo movimento: busca-se o olhar que garante ser. A falta de resposta é vivida como aniquilamento. O sujeito, incapaz de sustentar o vazio, preenche-o com performance.

Sherry Turkle mostra que o narcisismo digital não é amor a si, mas medo do apagamento. O sujeito hiperexposto vive sob tensão permanente entre exibir-se e preservar-se. Ele cria uma imagem para ser amado e, ao mesmo tempo, é devorado por ela. As redes produzem um espelho deformante: o que se vê ali é um eu editado, que se retroalimenta de aplauso. O prazer da validação é químico, quase pulsional — mas como todo prazer imediato, traz o sabor amargo da repetição.

O vício em validação é, portanto, sintoma: revela o fracasso da mediação simbólica. Se o olhar do outro se torna instável, o sujeito se fragmenta em busca de novos olhares. Por isso a saturação de confissões, exposições e transparências — não é excesso de sinceridade, é desespero de ser reconhecido. A cultura do engajamento não cria vínculos, cria dependência. Cada notificação é uma microdose de existência.

Mas talvez haja saída: transformar a validação em diálogo, não em consumo. Reconhecer que o desejo de ser visto é legítimo, mas que ele precisa encontrar o olhar de um outro real, e não apenas o reflexo luminoso de uma tela.

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

o inconsciente coletivo

 








As redes sociais se tornaram o novo inconsciente coletivo: um espaço onde o desejo circula disfarçado de escolha. Cada curtida, cada busca, cada imagem compartilhada é uma confissão involuntária. O sujeito acredita estar comunicando, mas está, antes, se revelando — e o algoritmo, como um analista sem ética, escuta tudo. A diferença é que, aqui, a escuta não visa elaboração, mas consumo. O inconsciente digital não interpreta: ele captura.

Freud dizia que o inconsciente é atemporal, feito de repetições e deslocamentos

As redes funcionam da mesma maneira: tudo retorna, nada se encerra. O feed é o sonho contemporâneo — um fluxo de imagens, restos de desejo e fragmentos de identidade. As publicações se repetem como lapsos, os stories funcionam como atos falhos visuais. O sujeito, tentando controlar a própria narrativa, acaba revelando aquilo que não sabe sobre si. O “conteúdo” é apenas o disfarce de uma pulsão exibicionista que busca reconhecimento e gozo.

Lacan veria nas redes a materialização do olhar do Outro

O algoritmo é o novo grande Outro: onipresente, invisível e avaliador. Ele sabe o que o sujeito deseja antes que o sujeito deseje — e, ao antecipar o desejo, o fabrica. A timeline é estruturada como o inconsciente: um campo de associações livres onde nada é casual, mas tudo parece ser. Curtir, comentar, postar: cada gesto é um modo de sustentar o desejo no circuito do olhar alheio. Não se quer tanto ver, mas ser visto.

Foucault ajudaria a entender o poder que emerge desse dispositivo: o controle não se impõe mais pela repressão, mas pela exposição voluntária.

O sujeito vigia a si mesmo em nome da autenticidade. O “ser verdadeiro” virou forma de governo. A intimidade, tornada pública, perde densidade simbólica e se converte em mercadoria afetiva.

O inconsciente digital produz sintomas: ansiedade por visibilidade, medo de irrelevância, fetiche pelo engajamento. O sujeito confunde atenção com amor, aprovação com pertencimento. A rede transforma o desejo em dado e o sintoma em métrica. E, como no inconsciente freudiano, o que é reprimido retorna — mas agora em forma de notificação.

As redes não apenas refletem o inconsciente, mas o reconfiguram. O desejo, antes mediado pela linguagem, é hoje mediado por interfaces. O que era metáfora virou algoritmo. E o sujeito, acreditando ser livre, apenas repete — clica, posta, consome — movido pela mesma lógica do sintoma: tentar preencher o que não se preenche..

terça-feira, 18 de novembro de 2025

uma forma de negação da morte





A produtividade moderna é a nova forma de negação da morte.

Trabalhar sem parar, planejar o futuro, otimizar o tempo, controlar o corpo — tudo isso esconde uma angústia ancestral: a de desaparecer. O medo de morrer não se manifesta como pavor explícito, mas como pressa. A aceleração é a tentativa inconsciente de escapar do limite. Se o tempo é finito, então cada minuto precisa justificar a própria existência. O sujeito moderno não teme o fracasso — teme o vazio que o fim revela.

Freud já intuía que a pulsão de vida (Eros) e a pulsão de morte (Tânatos) coexistem em tensão permanente. O trabalho incessante, o culto à produtividade e a necessidade de deixar legado são formas sublimadas de enfrentar a morte: se o corpo vai desaparecer, que pelo menos reste a marca. A criação, nesse sentido, é uma defesa contra o esquecimento. Mas quando a pulsão de morte é recalcada, Eros perde sua leveza e se converte em compulsão: o sujeito trabalha não por desejo, mas por medo.

O filósofo coreano Chul Han observa que a sociedade do desempenho é, no fundo, uma sociedade da negação da mortalidade. O cansaço, a lentidão, o descanso — todos são lembranças de que o corpo tem limite. Por isso o sujeito os combate como inimigos. Ele se otimiza para afastar o envelhecimento, controla o corpo como se ele fosse máquina, administra a agenda como se pudesse evitar o colapso. A produtividade vira ritual de imortalidade.

Michel Foucault descreveu o modo como o poder moderno se exerce sobre a vida: biopolítica (é o nome dessa gestão do corpo e do tempo)

 A cultura do controle é a tradução técnica do medo da morte. Viver, hoje, significa prevenir — medir, vigiar, monitorar. Os aplicativos de saúde, os métodos de longevidade, o fetiche da performance cognitiva — tudo revela o mesmo pânico civilizado: a recusa do acaso biológico, a tentativa de transformar o corpo em sistema administrável. Mas controlar a vida é o mesmo que transformá-la em coisa, e coisas não vivem, apenas funcionam.

A obsessão moderna por eficiência é, no fundo, um luto mal elaborado. O homem contemporâneo, incapaz de aceitar a transitoriedade, tenta compensar o incontrolável com hiperatividade. Quer deixar marcas, mas só consegue deixar rastros. A produtividade é a máscara de um desespero metafísico: fazer algo, qualquer coisa, para não encarar o silêncio que vem depois.

No entanto, é o limite que dá forma à existência. A consciência da morte poderia libertar, não aprisionar. Saber que tudo termina deveria reduzir a pressa, não aumentá-la. O verdadeiro ato de resistência talvez seja parar — não por preguiça, mas por reverência. Controlar menos é morrer melhor: deixar que o tempo aja, que o corpo respire, que a vida aconteça sem gestão.

domingo, 16 de novembro de 2025

desejo ilógico

 

É desafiador como, muitas vezes, as coisas que nos destroem parecem mais familiares do que as coisas que nos salvam.

As pessoas gostam de fingir que o desejo é lógico, terapêutico, mas a verdade é muito mais perigosa: somos criaturas que confundem perigo com destino com uma fluência que deveria alarmar biólogos evolucionistas. Antes de aprendermos a falar, já sabemos como nos inclinar em direção à chama. Antes de aprendermos a nomear o anseio, já sabemos como confundir intensidade com importância. E antes mesmo de aprendermos o que é "bom para nós", já memorizamos a assinatura daquilo que nos destruirá.

Comecemos por Eva; Caminhamos diretamente para aquilo que juramos evitar porque a tentação que enfrentamos, como aquela fruta brilhante e impossível de ignorar, não é sedutora apesar de ser proibida, mas sim porque expõe a fragilidade dos limites que fingimos respeitar. E, na verdade, se formos honestos, a maçã não era deliciosa porque estava marcada como proibida; era proibida precisamente porque era deliciosa, porque prometia uma experiência, uma ruptura, uma revelação tão potente que qualquer deus que se preze saberia que não poderia ser oferecida sem consequências.

As pessoas se esquecem dessa inversão, ou talvez prefiram esquecê-la, porque reconhecê-la significa admitir que nossos sistemas morais muitas vezes visam menos nos manter bons e mais nos manter controláveis. A serpente, coitada, foi caluniada por milênios como a padroeira da corrupção, quando na verdade ela não estava tentando Eva com o pecado, uma categoria inventada posteriormente para fins contábeis, mas com algo muito mais insidioso, quase terno em sua intimidade: a sugestão de que o conhecimento pode custar tudo o que você pensa que é, mas a ignorância custará tudo o que você poderia se tornar .

E quem de nós, à beira de uma vida que parece pequena demais, não ouviu alguma versão desse sussurro e se inclinou um pouco mais para frente, fingindo que o risco já não está em movimento?....o desejo começa onde a segurança termina.

E a parte sobre a qual ninguém escreve...é o simples e profundamente inconveniente fato de que, se Eva não tivesse mordido o fruto, se ela tivesse se comportado com a submissão esperada dela, não teríamos consciência, tensão narrativa, histórias de amor trágicas, filosofia, desgosto amoroso ou o luxo moderno de sentar em um café fingindo trabalhar enquanto secretamente mergulha em um monólogo existencial sobre a falta de sentido da produtividade.

O mundo que as pessoas chamam de "Paraíso" não seria nada mais do que uma estufa celestial, um jardim botânico impecavelmente cuidado onde até as árvores deveriam se comportar, onde o desejo não tinha textura porque não tinha oposição, e onde a inocência funcionava menos como uma virtude e mais como um uniforme... engomado, obrigatório e policiado por um código de vestimenta invisível que exigia que todos permanecessem emocionalmente descalços e intelectualmente imperturbáveis.

E, na verdade, quem seríamos nós nesse mundo?! Certamente não leitores, escritores, pensadores ou pessoas que complicam a própria vida por diversão. Sem a mordida desobediente, aquele pequeno e traiçoeiro ato de revolta epistemológica, seríamos manequins da correção moral.

 

Se o paraíso é a ausência de anseio, então é também a ausência de devir. E talvez esse seja o escândalo original: a primeira mulher escolheu a evolução em vez da perfeição, a experiência em vez da submissão, e ao fazê-lo, inventou as próprias condições que nos tornam dolorosamente, belamente humanos.

Ícaro, é claro, fez o mesmo, embora o reduzamos a uma parábola sobre "voar perto demais do sol", porque é mais fácil moralizar a ambição do que admitir que a transcendência sempre foi o narcótico mais inebriante da humanidade. E Pandora seguiu a mesma trajetória, embora os homens consistentemente se esqueçam, ou omitam estrategicamente, o fato de que ela foi criada deliberadamente como uma armadilha, arquitetada com o tipo de malícia elegante que só os deuses olímpicos poderiam conceber, e então dotada de uma curiosidade tão volátil que poderia muito bem ter vindo com uma ampulheta acoplada. Ela não falhou em um teste; ela cumpriu um propósito. A curiosidade era seu destino, não sua falha!

Essas figuras míticas, literárias e históricas não são contos de advertência. São retratos da mesma força gravitacional: o desejo de tocar aquilo que promete reconhecimento, transformação, liberdade ou verdade, mesmo que isso queime a mão que o alcança.

Porque quando desejamos aquilo que nos destruirá, muitas vezes buscamos algo que nos dê a sensação de reconhecimento, mesmo que as consequências nos pareçam ruína. Afinal, a ruína às vezes é um rito de passagem. A maioria das pessoas passa a vida inteira negociando uma espécie de cessar-fogo entre o que realmente desejam e o que convenceram a todos, inclusive a si mesmas (e essa é a parte mais trágica), de que deveriam desejar . É um esforço diplomático silencioso e contínuo que, visto de fora, parece "boa tomada de decisão", mas que, na verdade, se assemelha mais à contrainteligência emocional: censurar este anseio, reprimir aquele impulso, garantir que ninguém perceba os desejos perigosos e inviáveis ​​que fervilham sob a fachada respeitável. E como todo tratado tem uma cláusula oculta, um adendo tácito escrito em uma língua que fingimos não ler, a verdadeira questão que paira sob toda essa civilidade autogerida é:

Por que desejamos aquilo que nos despedaçará?

Por que desejamos a pessoa, o emprego, a ideia, o risco, a tentação que ameaça desmantelar a versão de nós mesmos que tanto nos esforçamos para construir? Por que continuamos a nos aproximar da periferia, mesmo quando sabemos que o centro é mais seguro, mais limpo, mais aplaudido?

Porque, e esta é a parte que soa dramática até você reconhecer isso na sua própria vida, às vezes a rachadura é a única entrada. Às vezes, o eu que você passou décadas representando está tão reforçado, tão diplomaticamente polido, tão costurado com instintos de sobrevivência, regras herdadas e medo disfarçado de maturidade, que nada além de uma ruptura pode fazer você ouvir sua própria voz novamente.

E, pragmaticamente,muitos de nós só nos deparamos com a nossa verdade quando algo se quebra. E não, a dor não é nobre nem o trauma é educativo (isso é coisa de terapia do Instagram), mas a estrutura da nossa vida diária é muitas vezes estável demais, repetitiva demais, anestesiante demais para nos convidar a uma autoanálise honesta. Não questionamos a gaiola até que a porta caia das dobradiças. Não examinamos o roteiro até que um único momento catastrófico revele o fato de que nunca o escrevemos.

 

Assim, aquilo que nos "desvenda" raramente é algo que escolhemos conscientemente. É aquilo que ignora nossa diplomacia. É o desejo que se recusa a permanecer reprimido. É a única força em nossa vida que é ingovernável... e, portanto, paradoxalmente, a única capaz de nos forçar a retomar o contato conosco mesmos.

sábado, 15 de novembro de 2025

auto estima

 








A autoestima se tornou um mercado.

O valor de si, que antes pertencia ao campo do íntimo, foi capturado pela lógica da performance. O sujeito contemporâneo não apenas vive, mas se avalia. Mede-se em produtividade, relevância, beleza, engajamento, competência — e cada uma dessas métricas funciona como um espelho fragmentado. O que antes era experiência afetiva tornou-se capital simbólico. Amar a si mesmo deixou de ser um exercício ético e virou obrigação econômica.

Pierre Bourdieu já advertia que todo campo social produz suas próprias formas de valor e distinção. O corpo, a aparência, o modo de falar, o estilo de vida — tudo pode ser convertido em capital. No capitalismo emocional, até a subjetividade se torna investimento. O sujeito aprende a gerir a própria imagem como ativo: seu valor não está no que é, mas no quanto consegue se tornar desejável. A autoestima, nesse contexto, é função da visibilidade. Quanto mais visto, mais válido.

Axel Honneth, ao pensar o reconhecimento como necessidade humana, propõe que a identidade se constrói no espelho social — precisamos ser reconhecidos para existir. Mas o que acontece quando o reconhecimento é mediado por métricas digitais e performativas? A autoestima deixa de ser relação simbólica e passa a ser contábil. O outro deixa de ser espelho e se torna audiência,ou pior,seguidor. O sujeito se confunde com a própria vitrine, alimentando uma economia afetiva que mede amor em curtidas e valor em produtividade emocional.

Erich Fromm via no capitalismo tardio uma inversão perigosa: o “ser” substituído pelo “ter”, e agora, pelo “parecer”. A autoestima, transformada em produto, alimenta um ciclo de dependência: o sujeito consome práticas de autoconhecimento e discursos de empoderamento, mas continua prisioneiro da comparação. A promessa de libertação vira mais uma forma de controle. A lógica do mercado infiltra-se até no amor-próprio, convertendo a busca por autenticidade em mais uma estratégia de venda.

A obsessão moderna por medir o próprio valor revela, paradoxalmente, uma crise de valor. O sujeito que precisa provar constantemente sua importância é aquele que perdeu o contato com o próprio eixo interno. A autoestima verdadeira não se funda em acreditar ser o melhor, mas em suportar ser apenas. Ela é prática, não crença; gesto, não conceito. É a capacidade de existir sem precisar transformar tudo em métrica.

Então nos cabe :

Rejeitar a comparação como critério. Nenhuma vida cabe em ranking.

Reaprender o prazer de fazer algo sem finalidade. O valor não precisa de prova.

Tratar o reconhecimento como eco, não como origem.

Cultivar vínculos que o vejam para além da performance.

Autoestima não é acreditar que vale muito — é não precisar medir o quanto.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

auto controle

 






A ideia de um sujeito racional, senhor de si e de seus impulsos, é uma ficção elegante criada para acalmar a civilização. Freud desmontou esse mito ao mostrar que o eu não comanda: apenas negocia. Entre o id e o superego, ele é um estagiário do inconsciente, tentando sobreviver à burocracia das pulsões. Controlar-se, nesse sentido, não é dominar, mas administrar forças que o ultrapassam. O autocontrole é a forma mais sofisticada de ilusão.

Spinoza já havia percebido que não somos livres, mas determinados pelos afetos que nos atravessam. Chamamos de “razão” apenas o instante em que uma paixão vence as outras. O que o pensamento moderno nomeou como domínio é, na verdade, uma hierarquia momentânea de desejos. A moral que exalta o controle ignora que os afetos são condição de existência; não inimigos dela. O homem que se diz disciplinado talvez apenas tenha conseguido uniformizar seus vícios.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

a IA está pensando ?

 








Dario Amodei, CEO da empresa de inteligência artificial Anthropic, prevê que uma IA “mais inteligente que um ganhador do Prêmio Nobel” em áreas como biologia, matemática, engenharia e escrita poderá entrar em operação até 2027. Ele imagina milhões de cópias de um modelo funcionando incessantemente, cada uma conduzindo sua própria pesquisa: um “país de gênios em um data center”.

Em junho, Sam Altman, da OpenAI, escreveu que a indústria estava prestes a construir uma “superinteligência digital”. “A década de 2030 provavelmente será muito diferente de qualquer época anterior”, afirmou.

A implementação apressada e desigual da IA ​​criou uma névoa que nos leva a concluir que não há nada de extraordinário nisso — que tudo não passa de propaganda. De fato, há muita propaganda: o cronograma de Amodei é ficção científica. (Os modelos de IA não estão melhorando tão rápido assim.) Mas é outro tipo de ilusão supor que grandes modelos de linguagem estejam apenas reorganizando palavras.A ideia de que a IA tem pouco a ver com inteligência ou compreensão reais não é um fato.

Diz-se que o autor de ficção científica William Gibson observou que o futuro já chegou, apenas não está distribuído igualmente — o que talvez explique por que a IA parece ter criado duas culturas distintas, uma que a rejeita e outra que a fascina.

O ChatGPT está simplesmente juntando palavras sem pensar, ou compreende o problema? A resposta pode nos ensinar algo importante sobre o próprio processo de compreensão. "Os neurocientistas precisam confrontar essa verdade humilhante", disse Doris Tsao, professora de neurociência da Universidade da Califórnia, Berkeley. "Os avanços na aprendizagem de máquina nos ensinaram mais sobre a essência da inteligência do que qualquer coisa que a neurociência tenha descoberto nos últimos cem anos."

A explicação mais básica de como chegamos até aqui é mais ou menos a seguinte: na década de 1980, uma pequena equipe de psicólogos cognitivos e cientistas da computação tentou simular o pensamento em uma máquina. Entre os mais famosos estavam David Rumelhart, Geoffrey Hinton e James McClelland, que posteriormente formaram um grupo de pesquisa na Universidade da Califórnia, em San Diego. Eles viam o cérebro como uma vasta rede na qual os neurônios disparam em padrões, fazendo com que outros conjuntos de neurônios disparem, e assim por diante; essa dança de padrões é o pensamento. O cérebro aprende alterando a força das conexões entre os neurônios. Fundamentalmente, os cientistas imitaram esse processo criando uma rede neural artificial e aplicando um algoritmo simples chamado descida de gradiente para aumentar a precisão de suas previsões. (O algoritmo pode ser comparado a um alpinista navegando do topo de uma montanha até um vale; uma estratégia simples para eventualmente encontrar o caminho é garantir que cada passo seja em direção à base da montanha.) O uso de tais algoritmos em grandes redes é conhecido como aprendizado profundo.

Os principais modelos de IA da atualidade são treinados em uma grande parte da internet, usando uma técnica chamada previsão do próximo token. Um modelo aprende fazendo suposições sobre o que lerá em seguida e, em seguida, comparando essas suposições com o que de fato aparece. Suposições erradas induzem mudanças na força da conexão entre os neurônios; isso é o que chamamos de descida de gradiente. Eventualmente, o modelo se torna tão bom em prever textos que parece saber as coisas e fazer sentido. Então, isso é algo para se pensar. Um grupo de pessoas buscava o segredo de como o cérebro funciona. À medida que seu modelo crescia em direção a um tamanho semelhante ao do cérebro, ele começou a fazer coisas que se acreditava exigirem inteligência semelhante à do cérebro. Será que eles encontraram

Pode parecer antinatural, até mesmo repulsivo, imaginar que um programa de computador realmente entenda, que realmente pense . Normalmente, concebemos o pensamento como algo consciente, como um monólogo interior joyceano ou o fluxo de memórias sensoriais em um devaneio proustiano. Ou podemos nos referir ao raciocínio: resolver um problema passo a passo. Em nossas conversas sobre IA, frequentemente confundimos esses diferentes tipos de pensamento, o que torna nossos julgamentos simplistas. O ChatGPT obviamente não está pensando, argumenta-se, porque obviamente não está tendo um devaneio proustiano; o ChatGPT claramente está pensando, argumenta-se outro, porque consegue resolver quebra-cabeças lógicos melhor do que você.

Algo mais sutil está acontecendo. Não acredito que o ChatGPT tenha uma vida interior, e ainda assim parece saber do que está falando. Compreender — ter uma noção do que está acontecendo — é um tipo de pensamento subestimado, porque é em grande parte inconsciente. Douglas Hofstadter, professor de ciência cognitiva e literatura comparada na Universidade de Indiana, gosta de dizer que cognição é reconhecimento. A teoria de Hofstadter, desenvolvida ao longo de décadas de pesquisa, é que "ver como" é a essência do pensamento. Você vê uma mancha de cor como um carro e outra como um chaveiro; você reconhece a letra "A" independentemente da fonte em que está escrita ou da caligrafia. Hofstadter argumentou que o mesmo processo está na base de tipos mais abstratos de percepção. Quando um grande mestre examina um tabuleiro de xadrez, anos de prática se canalizam em uma forma de enxergar: o bispo das brancas está fraco; aquele final de jogo provavelmente terminará em empate. Você vê uma correnteza em um rio como um sinal de que é perigoso atravessá-lo. Para Hofstadter, essa é a essência da inteligência.

Com a IA, nos encontramos mais uma vez em um momento de arrogância e confiança.Já se fala em arrecadar meio trilhão de dólares para construir o Stargate, um novo conjunto de centros de dados de IA, nos EUA. As pessoas discutem a corrida pela superinteligência com uma gravidade e uma urgência que podem parecer infundadas, até mesmo ridículas. Mas suspeito que a razão pela qual os cientistas da computação do mundo estão fazendo declarações messiânicas é que eles acreditam que o quadro básico da inteligência já foi definido; o resto são apenas detalhes.

 

domingo, 9 de novembro de 2025

o teatro do absurdo

 








Vivemos em um teatro do absurdo.

Todos estão atuando, ninguém está dirigindo, e o roteiro se reescreve sozinho no meio da cena. A cortina se abre diariamente para a mesma farsa: confusão generalizada com iluminação impecável. Os aplausos? Automatizados, é claro. Até os aplausos agora são terceirizados.

A vida moderna não é simplesmente teatral, é atuação metódica sem método, um ensaio perpétuo para uma estreia que nunca chega. Improvisamos em meio a notícias de última hora e jantares, munidos de adereços digitais e coreografias emocionais. A humanidade não evoluiu; apenas está mais bem iluminada. A razão do Iluminismo nos deu sistemas; a cenografia do nosso século nos dá assinaturas. Não vivemos, transmitimos. Não acreditamos, ensaiamos a crença enquanto secretamente esperamos que alguém, em algum lugar, ainda esteja assistindo.

Às vezes, imagino Martin Esslin,responsável pelo tema “teatro do absurdo”, navegando pelo Twitter, perplexo com um mundo onde todos se expressam por meio de slogans e a indignação tem seu próprio emoji. Nossas timelines estão repletas de sintaxe polida e convicção vazia, frases montadas, produzidas em massa e com garantia de desmoronar sob o peso do significado real. Não é conversa; é solilóquio competitivo. Todos falam, ninguém escuta, e os aplausos vêm na forma de notificações. Até Sócrates, o eterno provocador da razão, teria jogado seu celular no Mar Egeu e se dedicado à cerâmica. Não trocamos mais ideias, selecionamos reações, como exposições de museu de nossas melhores versões, rotuladas e aprovadas por algoritmos.

A cultura, nosso suposto espelho da transcendência, tornou-se um teatro de espelhos… brilhante, recursivo e levemente nauseante. O que antes servia como iniciação ao mistério agora se assemelha a um ensaio geral para o significado: os gestos permanecem, mas os deuses abandonaram o prédio. A arte, outrora um ato de insurreição metafísica, agora se apresenta como um substituto lendo de um teleprompter, ciente de que ninguém está realmente assistindo. A beleza foi domesticada; a vanguarda agora paga aluguel.

O artista, outrora um conspirador meio louco contra a banalidade, tornou-se um funcionário público da sensibilidade, preenchendo formulários, buscando financiamento, produzindo obras que devem tanto provocar quanto agradar, um paradoxo que só o absurdo poderia sustentar. Não visitamos exposições para sermos transformados, mas para confirmar nossa presença; os museus assemelham-se a aeroportos da alma, cheios de viajantes cansados ​​fingindo que sua escala tem um propósito. O que Pirandello vislumbrou como tragédia, personagens vagando em busca de um autor, tornou-se um estilo de vida: todos improvisando significados diante de uma plateia distraída demais para aplaudir. O palco cultural não desmoronou; simplesmente foi deixado funcionando durante a noite, atores e espectadores murmurando suas falas para ninguém em particular.

Até mesmo o amor, esse desafio mais ilógico à morte, agora se desenrola como uma cena de uma farsa absurda, dois protagonistas aguardando o sinal para sentir algo genuíno enquanto o cenário desmorona ao seu redor em perfeita sincronia. O erotismo foi domesticado em um ritual de gestos tão ensaiados que mal se qualificam como humanos: uma coreografia de gestos evasivos e negativas, onde a paixão é representada com distanciamento. O que antes exigia o risco da entrega agora parece burocracia. As pausas, os mal-entendidos requintados, a emoção ansiosa de não saber qual é a sua posição, tudo foi substituído por uma franqueza calculada, por uma burocracia emocional que insiste na “comunicação clara” em detrimento do mistério.

Talvez essa seja a comédia final: dominamos a arte de amar com serenidade, de terminar um relacionamento sem desmoronar. A cortina se fecha, a plateia boceja e nos curvamos, ainda sem saber ao certo se a peça foi uma tragédia, uma farsa ou simplesmente um ensaio.

Apaixonar-se hoje é como entrar numa peça absurda sem roteiro, ambos os amantes convencidos de que são os protagonistas, sem saber ao certo em que gênero se encontram. O afeto é improvisado, o compromisso, improvisado, as saídas prematuras. Tudo oscila entre a tragédia e a sátira, com todos demasiado autoconscientes para acreditarem nas suas próprias falas e demasiado solitários para deixarem de as representar. Talvez esse seja o absurdo moderno: ansiamos por autenticidade, mas a ensaiamos diariamente.

Nossas emoções foram achatadas pela própria publicidade, prensadas como flores entre as páginas da autoexpressão. Dizem-nos para “sentir profundamente”, mas apenas dentro do espectro aprovado: tristeza que fica bem em fotos, raiva que pode ser monetizada, desespero que se dissolve polidamente em afirmações em tons pastel. Até mesmo o luto agora precisa demonstrar boa postura. Selecionamos crises, as legendamos como “crescimento” e chamamos isso de autenticidade.

A tragicomédia reside na precisão com que representamos a sinceridade, cada tremor ensaiado, cada confissão iluminada para criar simetria. O sentimento genuíno tornou-se incenável, demasiado incontrolável para o algoritmo da empatia. Entramos no reino de um mundo onde o clamor por sentido se torna mais uma forma de conversa fiada.

E o teatro só fica mais barulhento. O palco expande-se das salas de conferência aos parlamentos, do PowerPoint à propaganda… a mesma coreografia, apenas com figurinos melhores. A política, entretanto, tornou-se totalmente vanguardista, embora sem o intelecto ou o perigo que outrora justificavam o termo. Não é mais governança, mas uma trupe itinerante do absurdo, um espetáculo imersivo onde os cenários mudam mais rápido do que as falas podem ser memorizadas. Cada ultraje é coreografado, cada pedido de desculpas pré-aprovado, cada gesto espontâneo, produto de dez ensaios e um grupo focal. O Teatro do Absurdo sonhava em expor a futilidade da linguagem; a política moderna o aperfeiçoou. As coletivas de imprensa se assemelham a uma farsa trágica: microfones se abrem como flores metálicas, todos falam, ninguém escuta, e o significado se dissolve em aplausos.  A multidão ainda se transforma em feras, só que agora o faz diante das câmeras, documentando orgulhosamente a metamorfose em tempo real. O absurdo não é que a crença tenha desaparecido, mas que a convicção se tornou fantasia.

E enquanto os atores mudam e os slogans se renovam, a peça em si se recusa a terminar. O absurdo da política se mistura ao absurdo do tempo, um bis interminável apresentado para uma plateia tão desorientada que nem percebe que a cortina nunca se fecha.

Assim, até o tempo perdeu sua dignidade linear, desmoronando em um ensaio geral interminável para um final que se recusa a chegar. Os dias não avançam mais; circulam como figurantes cansados ​​aguardando sua deixa em uma peça que já dura tempo demais. Cada ciclo de notícias parece um déjà vu repetido indefinidamente, o ontem reescrito nas manchetes de hoje, com apenas os adjetivos rearranjados. Vivemos não na história, mas no eco, suspensos em um presente beckettiano onde nada começa, nada termina, e todos continuam falando apenas para provar que ainda estão vivos. Pressentimos o colapso, mas o protocolo exige que prossigamos. O apocalipse já aconteceu, apenas se recusou a se despedir. Agora passamos nossas tardes arrumando as consequências, fingindo que o show deve continuar, embora ninguém consiga se lembrar exatamente por que começou.

E em meio a esse carrossel temporal, buscamos uns aos outros, não por conexão, mas para provar que o carrossel ainda gira. A amizade também se tornou parte do espetáculo. Antes, ela oferecia um refúgio da performance, um backstage onde se podia remover a máscara, falar sem roteiro e ser brevemente perdoado pela incoerência. Agora, a amizade se assemelha a um serviço de assinatura com níveis flexíveis de atenção. Mantemos nossos laços por meio de gestos que imitam intimidade (curtidas, emojis, corações de reação), como se o afeto pudesse sobreviver ao gotejar constante de aplausos pixelizados. O absurdo reside em nossa fé na tecnologia; agimos como se a proximidade pudesse ser sustentada sem presença, como se o reconhecimento pudesse substituir a compreensão.

E quando a cortina se fecha em nossos teatros particulares, buscamos significado nas instituições, apenas para encontrar o mesmo roteiro, reescrito em jargão acadêmico. Até mesmo a educação, outrora o ensaio da razão, tornou-se outra performance absurda, degenerando em um anfiteatro corporativo onde ideias são classificadas por seu valor de mercado e alunos ensaiam a certeza como se a ambiguidade fosse um crime. A sala de aula se tornou um palco para a exaustão mútua: professores representando uma autoridade na qual não acreditam mais, alunos representando um interesse que não sentem mais. O absurdo não é que o conhecimento tenha declinado, mas sim seu propósito. Antes, a educação prometia uma iniciação à complexidade; agora, oferece certificação em conformidade.

E o que resta do aprendizado quando as perguntas são padronizadas? Apenas a linguagem… e mesmo ela se juntou à farsa. As palavras, outrora instrumentos do pensamento, agora encenam sua própria paródia de significado. A linguagem sucumbiu à grande redução da era moderna… comprimida, simplificada, tornada obediente ao ritmo da conveniência. Outrora uma ferramenta para extrair significado do caos da experiência, agora funciona principalmente como um mecanismo para fabricar consenso, uma abreviação burocrática para o pensamento. Palavras que antes arriscavam a ambiguidade na busca pela verdade agora buscam segurança na uniformidade: “icônico”, “problemático”, “tóxico”, “desencadeador”… encantamentos recitados para sinalizar virtude, poupando-nos o trabalho da nuance.

E quando as palavras perdem seu peso, a fé irrompe para preencher o silêncio, mas até mesmo a crença, outrora um diálogo com o infinito, foi reduzida a mera composição sonora. O sagrado também aprendeu a se apresentar. Até mesmo a religião, nossa última defesa contra o absurdo, aprendeu a comercializar o vazio. Os deuses se digitalizaram, oferecendo iluminação por meio de assinaturas com tempo limitado e graça algorítmica. A fé se tornou um acessório de estilo de vida, seus rituais embalados em fontes minimalistas e lavanda difusa. O sagrado agora é acessível: entoamos afirmações em vez de orações, manifestamos abundância em vez de misericórdia, meditamos não para transcender o eu, mas para otimizá-lo.

E, em meio a toda essa coreografia de falta de sentido, algo teimoso em nós se recusa a sair de cena. A cortina ameaça cair, mas ninguém acredita que a peça deva terminar. Talvez a própria resistência tenha se tornado nosso último ato de fé. Apesar de tudo isso, resistimos. É quase cômico o quanto persistimos em comparecer a uma apresentação que já não entendemos. O mundo esqueceu o enredo, os técnicos de palco entraram em greve, o público foi embora para checar seus celulares… e ainda assim, os atores continuam recitando suas falas, determinados a acreditar que o próprio ensaio constitui um sentido. Há algo magnificamente tolo nisso, e magnificamente humano. Camus chamou isso de revolta; suspeito que esteja mais próximo do instinto. A recusa em abandonar o roteiro, mesmo quando ele deixa de fazer sentido, talvez seja nossa mais genuína expressão de graça.

Viver no absurdo é admitir que não há ato final, nenhuma grande revelação, nenhum aplauso que redima o caos. É continuar agindo mesmo assim, escolher a coerência em vez do cinismo, a curiosidade em vez do desespero astuto. Talvez seja isso que nos distingue das almas cansadas de Beckett: não que saibamos mais, mas que ainda esperemos que nossos gestos, por mais fúteis que sejam, possam iluminar brevemente a escuridão. O absurdo não é inimigo do significado; é seu berço. No vazio, encontramos o contorno de nossa persistência.

Que o teatro continue. Que nos atrapalhemos com nossas entradas, esqueçamos nossas falas, quebremos o personagem e ainda assim voltemos ao palco. O absurdo não se dissipará, mas nós também não. Em algum lugar entre o riso e o colapso, talvez ainda possamos improvisar algo que se assemelhe à verdade… não perfeita, não eterna, mas nossa.

Afinal, se o mundo insiste em permanecer absurdo, o mínimo que podemos fazer é nos recusar a desempenhar mal nossos papéis.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

a cerca

 








Existiu uma pequena aldeia cercada por uma alta cerca de madeira que estava ali desde que os moradores se lembravam.

Certo dia, um viajante chegou e entrou no bar. Ele perguntou aos moradores locais por que a cerca estava ali, já que bloqueava a bela vista da paisagem rural ao redor. Todos deram de ombros. Ninguém sabia. A cerca sempre estivera ali. E todos os anos, as pessoas trabalhavam para mantê-la e repará-la.

O viajante sorriu e disse: "Se ninguém sabe por que está aí, certamente vocês não precisam mais disso. Devemos demolir. Vocês terão uma vista melhor e isso atrairá mais viajantes e comércio para a sua aldeia. Todos na aldeia ficarão melhor!" Os moradores concordaram com o viajante. Na manhã seguinte, saíram e desmontaram a cerca que circundava a aldeia.

A vista era espetacular e todos os moradores locais se perguntavam por que haviam demorado tanto para fazer o que agora parecia tão óbvio. Mas naquela noite, enquanto todos dormiam, um grupo de lobos invadiu a aldeia e devastou o gado que alimentava os moradores.

Como se viu, a cerca estava ali por um motivo, afinal.

Um escritor inglês chamado G.K. Chesterton escreveu certa vez sobre esse fenômeno:

 

Nesse caso, existe uma certa instituição ou lei; digamos, para simplificar, uma cerca ou portão erguido em uma estrada. O tipo mais moderno de reformador se aproxima alegremente e diz: “Não vejo utilidade nisso; vamos removê-lo”.Ao que o tipo mais inteligente de reformador faria bem em responder: “Se você não vê utilidade nisso, certamente não permitirei que o remova. Vá embora e pense. Então, quando puder voltar e me dizer que vê utilidade nisso, talvez eu permita que o destrua”.

Essa ideia, agora conhecida como a Cerca de Chesterton , oferece uma lição poderosa:

Nunca remova uma cerca sem antes saber por que ela estava ali.

Na nossa pressa em criticar, é importante primeiro entender por que algo existe na sua forma atual. É importante entender a origem.As cercas geralmente não são construídas sem motivo. Se algo existe, geralmente há uma razão. Se você destruir algo sem entender essa razão, poderá se expor aos lobos que se escondem atrás da cerca.

A maioria das discussões sobre a Cerca de Chesterton se concentra na mudança dentro das sociedades, da cultura ou dos negócios. É um chamado à ação para refletir profundamente antes de implementar mudanças drásticas. Um lembrete de que, embora os sistemas, regras ou tradições possam não mais servir perfeitamente ao seu propósito original , isso não significa que não tenham propósito algum .

Mas acho ainda mais interessante considerar como essa estrutura se aplica à nossa  vida.

Todos nós temos "barreiras" que nosso eu presente herdou do passado:

 

Hábitos – Mentalidades -Ferramentas -Crenças-Rotinas

Todos os dias, essas cercas moldam nossa realidade e nossos resultados.

 

Uma verdade : é mais fácil subtrair do que somar. Derrubar uma cerca velha é mais fácil do que construir uma nova. Mas antes de fazer isso, pare e pergunte a si mesmo:

Por que isso estava aqui em primeiro lugar? Qual era a sua origem?

Às vezes, aquela rotina noturna da qual você já se cansou era justamente o que mantinha sua ansiedade sob controle. Às vezes, aquele ritual diário de relacionamento que parecia sem sentido era justamente o que fazia você se sentir conectado. Às vezes, aquela ferramenta de orçamento da qual você já se cansou era justamente o que mantinha suas economias e investimentos em dia.Às vezes, esse limite que parece ultrapassado era justamente o que impedia o esgotamento profissional.

A questão não é que todas as cercas devam permanecer para sempre. Algumas realmente já cumpriram seu propósito. Mas derrubá-las sem entender sua origem é perigoso.

A verdadeira sabedoria reside em distinguir entre as cercas que ainda protegem e as cercas que simplesmente restringem.

Antes de derrubar a cerca, certifique-se de saber quais lobos ela estava mantendo afastados.


quarta-feira, 5 de novembro de 2025

o fim da experiência

 








Você tinha que estar lá." É uma frase que todos já ouvimos, usada quando tentamos descrever a sensação específica de uma situação para outras pessoas que não a presenciaram diretamente. Muitas vezes, "você tinha que estar lá" é usado quando alguém desiste, reconhece que não há como transmitir a verdadeira essência de uma experiência para quem não estava presente, com um sentimento implícito de "que pena que você perdeu".

Essa expressão teve sua popularidade crescente desde a década de 1960 até 2012, mas depois caiu drasticamente. Por quê? Porque deixou de ser relevante.

Graças aos smartphones, todos têm a sensação de que podem estar em qualquer lugar. Ninguém perde nada, pois tudo é documentado online, transmitido ao vivo, publicado para ser revisto e comentado continuamente.

Segundo Christine Rosen, autora de " A Extinção da Experiência: Ser Humano em um Mundo Desencarnado" , hoje em dia passamos tanto tempo consumindo as experiências dos outros quanto vivenciando as nossas próprias. Rosen sugere que isso pode levar a um "desgaste da experiência". Diminuímos a qualidade de nossas vidas quando permitimos que a tecnologia medie grande parte ou a maior parte do que fazemos.

O livro de Rosen, lançado no outono de 2024, é uma bela defesa de uma vida ancorada na realidade. É de leitura agradável, repleto de histórias e estatísticas reveladoras, além de análises ponderadas. Sua abordagem se concentra menos no que Cal Newport denominou como os danos "primários" dos dispositivos digitais, como o efeito negativo direto na saúde mental ou o problema da distração crônica, e mais nos danos "secundários" — não menos importantes —, que são todas as coisas que os indivíduos perdem quando priorizam o tempo gasto em dispositivos em vez do tempo com outras pessoas ou realizando atividades significativas.

Rosen levanta questões difíceis como: “Que tipo de pessoa se forma em um mundo cada vez mais digitalizado, mediado, hiperconectado, vigiado e governado por algoritmos? O que ganhamos e o que perdemos quando deixamos de falar sobre a Condição Humana e passamos a falar sobre a Experiência do Usuário?”

Rosen está profundamente preocupada com os efeitos de uma "desqualificação emocional em massa", onde terceirizamos nossas memórias para o Facebook e Instagram, nossa curiosidade para o Google, nosso senso de direção para o GPS embutido em nossos celulares e carros, nossa generosidade para campanhas de financiamento coletivo com um clique. Agora consultamos nossos celulares para verificar nossa frequência cardíaca, quantos passos demos naquele dia, se dormimos o suficiente e quanto desse sono foi profundo versus leve. Há uma sensação de desconexão voluntária com nossos próprios corpos, uma surpreendente disposição em entregar a tomada de decisões a dispositivos que dependem de dados altamente pessoais para determinar nossos próximos passos.

No futuro, poderemos até permitir que dispositivos determinem quem são nossos amigos. As plataformas de mídia social já fazem fortes sugestões, mas Rosen relata um aplicativo particularmente alarmante chamado PPLKPR (abreviação de "people keeper", ou "guardião de pessoas") que promete "rastrear e 'gerenciar automaticamente' seus relacionamentos usando GPS e uma pulseira com monitor de frequência cardíaca que calcula 'quando você está se sentindo emotivo'". A ideia é que, se você demonstrar estresse ou ansiedade na presença de certas pessoas, o aplicativo use essa informação para "determinar quem deve ser adicionado automaticamente à sua vida e quem deve ser removido", ignorando o fato de que existem muitos motivos pelos quais uma pessoa pode fazer seu coração acelerar um pouco.

Quando transformamos nossos dispositivos em nossos "mercenários emocionais", no entanto, deixamos de preencher um vazio persistente. Permanecemos solitários e emocionalmente carentes, famintos pelo tipo de conexão real com os outros que estamos programados para desejar.

Rosen levanta a questão da "atenção civilizada", que se refere à forma como interagimos com estranhos em espaços públicos. Tornamo-nos muito mais rudes desde o surgimento dos smartphones, muitas vezes ignorando completamente caixas, vendedores e outros passageiros, raramente fazendo contato visual, sem sorrir, concentrando nossa atenção nas pequenas telas brilhantes em nossas mãos. Muitos trabalhadores do setor de serviços descrevem isso como doloroso, uma forma de objetificação onde sua humanidade não é reconhecida, onde muitas vezes são simplesmente ignorados, como se nem existissem.

Quando deixamos de prestar atenção a outros seres humanos em um espaço público comum, nos desvinculamos de nossas sociedades de forma mais ampla — e depois nos perguntamos por que nos sentimos tão desconectados, fora de sintonia e perplexos com os pontos de vista políticos ou religiosos dos outros. Talvez fosse útil começar a olhar para cima, dizer olá, praticar pequenos atos de atenção, resgatar a etiqueta básica que outrora formou (e ainda forma) a base da sociedade civil.

A conclusão de Rosen é ousada. Ela acredita que as soluções que defendem o "uso equilibrado" da tecnologia são insuficientes, que enfrentamos uma crise real. Conselhos como praticar um "sábado off", evitar multitarefas ou guardar o celular à mesa de jantar não bastam.

Precisamos ser mais como os Amish em nossa abordagem à tecnologia, cultivando um forte ceticismo em relação a cada novo dispositivo e aplicativo, mesmo que a maioria de nós não seja tão rigorosa quanto os Amish em rejeitá-los. Os Amish fazem as perguntas certas antes de adotar algo novo: Como isso impactará nossa comunidade? É bom para as famílias? Apoia ou mina nossos valores?

“Defender a realidade não é um privilégio”, escreve ela. “É crucial para garantir um futuro humano próspero.” Se você quer prosperar — e se quer que seus filhos prosperem — desconecte-se das telas e volte para a realidade.


segunda-feira, 3 de novembro de 2025

alçar vôo

 









Em outubro de 1903, um artigo publicado no The New York Times previa, com segurança, que os humanos levariam entre um e dez milhões de anos para desenvolverem aviões.

Embora pareça absurdo hoje em dia, é importante notar que, na época, quase todos, incluindo cientistas e jornalistas renomados, acreditavam que o voo humano era uma fantasia.

Objetos mais pesados ​​que o ar não podiam voar. Era impossível.

Isso havia se tornado mais do que uma crença. Para a maior parte da sociedade, era tratado como uma regra.

Mas a apenas algumas centenas de quilômetros da sede do jornal, dois irmãos trabalhavam arduamente em uma pequena oficina de bicicletas em Dayton, Ohio.

Eles estavam trabalhando para quebrar essa regra.

Eles não tinham dinheiro, credenciais sofisticadas ou notoriedade. Tinham apenas uma curiosidade insaciável e a recusa em aceitar essa "regra" sobre o voo humano como um fato.

Apenas nove semanas após a publicação do artigo, Orville e Wilbur Wright realizaram um voo de 12 segundos em sua máquina voadora criada pelo homem, em um campo aberto em Kitty Hawk, na Carolina do Norte.

Como se viu, a regra de que os humanos não podiam voar era apenas uma sugestão.

Esse mesmo fenômeno se repete todos os dias — não no céu, mas na sua mente.

Existe um conceito na ciência cognitiva chamado Efeito da Verdade Ilusória :

É a tendência de acreditar em informações falsas após exposições consistentes e repetidas. Em outras palavras, se você ouve algo repetidamente, isso se enraíza em sua mente como verdade.

É assim que as sugestões, lenta e silenciosamente, começam a parecer regras.

E essas sugestões vêm em diversas formas:

Às vezes, são as histórias que você conta a si mesmo sobre quem você é e do que é capaz. Às vezes, são as expectativas tácitas da sua família, dos seus amigos ou do seu ambiente. E às vezes, são as fontes padrão de significado e realização que lhe disseram que você deveria valorizar.

Se você não tomar cuidado, com o tempo, essas sugestões começarão a parecer regras.

Você deixará de questioná-las e começará a organizar toda a sua vida em torno delas.

Mas eis a verdade: a maioria das "regras" que moldam sua vida não são regras.

Então, pergunte a si mesmo:

Que regras estou seguindo que são, na verdade, apenas sugestões?

Porque, assim como para os irmãos Wright, quebrar as regras pode ser exatamente o que você precisa para alçar voo.

domingo, 2 de novembro de 2025

instagramável

 



Houve um tempo em que fotografar significava calar-se e ficar parado. Você esperava. Suava. Deixava o mundo se desenrolar no seu próprio ritmo e esperava que ele lhe desse algo que valesse a pena guardar. Era lento, obsessivo e um pouco neurótico.

Então o Instagram surgiu na sua busca por validação. O grande fornecedor de dopamina. O coliseu digital onde todos são ao mesmo tempo artistas e espectadores. De repente, a paciência ficou obsoleta.

O Instagram não matou a fotografia. Ele apenas a transformou em franquia. Transformou a arte silenciosa de observar em fast food emocional.Todos ganharam uma câmera, uma plataforma e uma sede insaciável por atenção. O que antes era uma arte de observação se tornou uma indústria de performance. O que antes era curiosidade, ver o mundo, tornou-se ser visto. A legenda virou confissão, as curtidas viraram aplausos, e a autenticidade teve que lutar para sobreviver entre as fotos prontas e a sinceridade performática.

Não se trata de romantizar o passado. Ele tinha suas próprias pretensões. O que interessa é o que acontece quando uma forma de arte construída sobre a paciência colide com uma plataforma construída sobre a velocidade. Quando a necessidade de observar em silêncio é sequestrada pela necessidade de se exibir ruidosamente.

Em algum lugar entre os filtros, as legendas e as xícaras de café cuidadosamente arrumadas, algo fundamental mudou. A fotografia deixou de ser uma forma de ver o mundo e se tornou uma forma de provar que você estava nele.


apenas dados

 



Somos uma mina de dados ou uma fábrica de dados? Os dados são extraídos de nós ou produzidos por nós?

Ambas as metáforas são repulsivas, mas a distinção entre elas é importante. A metáfora que escolhemos influencia nossa percepção do poder exercido por empresas de plataforma como Facebook, Google e Amazon, e molda a maneira como nós, como indivíduos e como sociedade, reagimos a esse poder.

Se somos uma mina de dados, então somos essencialmente um pedaço de terra, e o controle sobre nossos dados se torna uma questão de propriedade. Quem nos possui (como um local de dados valiosos) e o que acontece com o valor econômico dos dados extraídos de nós?.

Devemos ser nosso próprio dono — os únicos proprietários da nossa mina de dados e de sua riqueza? Ou os direitos de propriedade devem ser transferidos para um conjunto de corporações que possam agregar eficientemente a matéria-prima da minha mina e de todas as outras, transformando-a em produtos e serviços úteis? As questões levantadas aqui são questões de economia e política.

Os dados são uma forma de propriedade comum tanto quanto o petróleo, o solo ou o cobre. Criamos dados juntos e lhes damos significado juntos, mas seu valor está atualmente nas mãos das empresas que os detêm. Encontramo-nos na posição de um país colonizado, com nossos recursos extraídos para abastecer bolsos distantes. A riqueza que pertence a muitos — riqueza que poderia ajudar a alimentar, educar, abrigar e curar pessoas — é usada para enriquecer poucos.

A simplicidade da metáfora da mineração é sua força, mas também sua fraqueza. A metáfora da extração não captura suficientemente o que empresas como Facebook e Google fazem, e ao adotá-la, restringimos muito rapidamente a discussão sobre nossas possíveis respostas ao poder delas. Os dados não estão passivamente dentro de nós, como uma jazida de minério ou um reservatório de petróleo, esperando para serem extraídos. Pelo contrário, nós os produzimos ativamente. Quando dirijo ou caminho de um lugar para outro, produzo dados de localização. Quando compro algo, produzo dados de compra. Quando troco mensagens com alguém, produzo dados de afiliação. Quando leio, assisto ou compro algo online, produzo dados de preferência. Quando publico uma foto, produzo não apenas dados comportamentais, mas dados que são, em si, um produto. Em outras palavras, somos muito mais uma fábrica de dados do que uma mina de dados.

As empresas de plataforma, por sua vez, agem mais como gerentes de fábrica do que como donos de poços de petróleo ou minas de cobre. Além de controlar nossos dados, essas empresas buscam controlar nossas ações, que para elas são essencialmente processos de fabricação, a fim de otimizar a produção de dados (e, do lado da demanda da plataforma, nosso consumo de dados). Elas querem roteirizar e regular o funcionamento da nossa fábrica — ou seja, nossa vida. O controle exercido por essas empresas, em outras palavras, não é apenas o da propriedade, mas também o do comando. E elas exercem esse comando por meio do design de seus aplicativos e outros softwares, que regulam cada vez mais tudo o que fazemos durante nossas horas de vigília. Os aplicativos são, como rotinas de fábrica e máquinas industriais, ferramentas de modificação comportamental. Eles são projetados para maximizar a eficiência das pessoas na produção de dados valiosos.

A metáfora da fábrica deixa claro o que a metáfora da mineração obscurece: trabalhamos para os Facebooks e Googles do mundo, e o trabalho que fazemos é cada vez mais indistinguível das vidas que levamos. As questões que precisamos enfrentar são políticas e econômicas, sem dúvida. Mas também são éticas e filosóficas. A metáfora da extração sugere que nos falta responsabilidade e capacidade de agir individualmente. A metáfora da fábrica enfatiza nossa responsabilidade e capacidade de agir. Somos agentes, não meros reservatórios de recursos.