domingo, 20 de dezembro de 2020

a nova mutação do SARS Cov2

 O governo britânico anunciou, há poucos dias, um endurecimento das medidas restritivas de controle da pandemia, ou seja, um "quase " lockdown com um cancelamento simbólico do Natal.

A justificativa : o surgimento de uma linhagem mutante do vírus SARS-CoV-2 que, segundo dados a que aparentemente só o governo britânico teve acesso, é muito mais infecciosa (transmissível). Não temos dados ainda para correlacionar esta possível nova variante com o aumento sesível de novos casos no Reino Unido.

O termo “mutante” sempre desperta preocupações e especulações. A palavra mutação é geralmente associada a uma evolução prejudicial. Mas na verdade mutações são comuns a todos os organismos, e suas consequências variam muito. Elas podem ser benéficas ou prejudiciais.Na maioria das vezes não terão nenhuma repercussão 

Se uma mutação for vantajosa para o organismo, ela pode ser passada a futuras gerações e se tornar um bom fator de evolução adaptativo.

Durante a pandemia de COVID-19, alguns eventos relacionados a mutantes já foram reportados gerando as perguntas : o vírus está mais agressivo ? ou mais transmissivel?

O primeiro mutante que chamou atenção foi reportado em Julho. Uma mudança de aminoácido na região da proteína S. Os autores reportaram que esta mutação havia se tornado predominante, e que poderia indicar uma vantagem adaptativa, uma maior “aptidão viral”. Essa aptidão foi confirmada em ensaios de laboratório: o mutante parecia realmente ter maior capacidade de infectar células em cultura.

Resultado semelhante também foi observado em animais, mostrando predominância do mutante 614G no trato respiratório superior (nariz e garganta), mas não nos pulmões, sugerindo que realmente essa variante pode ser mais infecciosa. Não há nenhum indício, no entanto, de que a doença que causa seja mais grave, ou que a variedade possa escapar de vacinas.

Cientistas observaram que os pacientes infectados com esta variante apresentam maior carga viral no nariz, mas não desenvolvem casos mais graves da doença. Ensaios com anticorpos neutralizantes também verificaram que o mutante 614G é mais suscetível à neutralização, mostrando que as vacinas vão dar conta dele tranquilamente.

Recentemente tivemos a mutação da Espanha. Neste caso, havia diversos outros fatores epidemiológicos envolvidos que podiam explicar a maior prevalência deste vírus na Europa, entre eles as férias de verão, e o grande número de viagens de jovens pelo continente, ao mesmo tempo em que as medidas de prevenção foram relaxadas. Logo, chegou-se à conclusão de que a segunda onda na Europa era muito mais provavelmente causada por comportamento humano do que por uma mutação do vírus.

Agora temos a mutação do Reino Unido. Neste caso, não temos quase nenhum dado científico publicado, apenas a observação de um grande número de pessoas infectadas com ele, e a constatação de 17 mudanças em aminoácidos, em locais possivelmente relacionados com infectividade, como o sítio de ligação do vírus às células humanas, e uma proteína acessória. Não foi nem sequer feito um ensaio de competição in vitro, o experimento usado para detectar maior ou menor aptidão viral.

E mesmo que o experimento aconteça e se confirme que o novo mutante é capaz de, num vidro de laboratório, tomar o lugar do vírus comum, a questão de se ele consegue fazer o mesmo no mundo real segue em aberto. É preciso distinguir claramente dois conceitos: aptidão viral e aptidão epidemiológica.

Aptidão viral é a capacidade do vírus de se replicar em um determinado ambiente. Aptidão epidemiológica é a capacidade do vírus de se tornar dominante em uma determinada região ou população.

Estudos em laboratório, medindo a capacidade do parasita de se multiplicar em células,medem a aptidão viral. Apesar de na maioria das vezes, a aptidão viral se transformar em aptidão epidemiológica – isso já ocorreu no vírus Chicungunya,e aumentou a capacidade de replicação no mosquito em quase cem vezes e se disseminou pelo mundo –, um mutante pode ganhar a briga com outra versão do vírus no laboratório e isso não se traduzir automaticamente numa vantagem epidemiológica..

Em termos de população vários outros fatores pesam. Um deles é o acaso. Nem tudo que é selecionado tem vantagem evolutiva. Às vezes é só estar no lugar certo na hora certa. Um evento de super-espalhadores, uma festa com 500 pessoas, tudo isso pode fazer com que um mutante se dissemine mais do que outro.

Ainda é cedo para se dizer que esta linhagem encontrada no Reino Unido realmente tenha mais aptidão epidemiológica. Mas, no momento, nem estudos de aptidão viral foram feitos, e o que temos são correlações que sugerem uma prevalência desta linhagem na população, o que, como vimos aqui, pode ocorrer por diversos motivos. A nova linhagem parece estar atrapalhando um pouco os testes diagnósticos também, mas isso precisa ser mais investigado. 

E as vacinas?

Como para os outros mutantes, não temos dados suficientes para dizer se essa mutação vai afetar a efetividade de uma vacina. Mas é bem mais provável que não. Os outros mutantes não afetaram: um estudo conduzido pelo grupo da Pfizer mostrou a capacidade dos anticorpos gerados pela vacina de neutralizar diversos mutantes de proteína S. As vacinas foram desenhadas para gerar anticorpos para regiões grandes da proteína S, ou a proteína inteira, e algumas mudanças não devem ser problema..

Mesmo que ocorra e a mutação prejudicar o reconhecimento do vírus por anticorpos, cabe lembrar que esta não é nossa única resposta imune, talvez nem a mais importante, e que vacinas como a da Pfizer, da Moderna, e as vetorizadas, provocam uma boa resposta celular, que é outro braço do sistema imune, menos suscetível a esse tipo de engano.

Vacinas como a Coronavac, de vírus inativados, também dependem menos de detalhes muito específicos do vírus: não é uma mudança pontual numa proteína que vai esconder o SARS-CoV-2 delas.

O que a situação no Reino Unido mostra é a importância da vigilância epidemiológica para detectar rapidamente mutantes que possam ser causa de preocupação. O que não se deve fazer, no entanto, são afirmações para as quais ainda não temos dados, que podem assustar a população e causar um pânico desnecessário.

Enquanto estudamos a aptidão viral e epidemiológica deste mutante, e como ele pode afetar a população, convém lembrar que para qualquer linhagem do vírus, os cuidados de prevenção permanecem os mesmos. E que, quanto mais o vírus circula, mais linhagens surgem. A maneira de prevenir isso é com distanciamento social, uso de máscaras, evitando aglomerações – e vacinando-se.

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