domingo, 4 de dezembro de 2022

dissonância cognitiva coletiva e o Brasil paralelo

 



Nestes tempos de discórdia, de desequilíbrio e insanidades, talvez o debate público esteja precisando muito de um conceito que nos ajude a decifrar a esfinge deste Brasil contemporâneo.

O termo é dissonância cognitiva coletiva.

Através dela, podemos compreender mais a fundo fenômenos  como a recorrente noção das “bolhas” ou “câmaras de eco” movidas pela internet, que integram o motor de nossa realidade , onde cada vez mais os sujeitos agem como se a verdade importasse pouco ou nada. Cria-se uma “realidade paralela” reforçada pelo espírito de seita e pelo fanatismo que se sente à vontade na ambiência da pós-verdade.

Os sujeitos da pós-verdade vivem imersos em dissonância cognitiva e buscam arduamente, como náufragos ansiosos por uma tábua de salvação, crenças e dogmas mesmo que estes estejam colapsando com o influxo de novas informações a serem de antemão refutadas (viés de confirmação).

O bolsonarismo, neste aspecto, não difere muito de uma seita de terraplanistas que parece viver antes de Copérnico e Galileu, ou de uma horda de apaixonados em ufologia que profetiza o iminente apocalipse causado pela invasão alienígena.

Analisando a dissonância.

Na música, o elemento dissonante é aquele que perturba a harmonia, que viola as leis da consonância. É dissonante a nota que não participa da escala, que é estranha ao acorde. O músico erra ao tocá-la. É o elemento que não concorda com o todo. Dissonante é sinônimo daquilo “que destoa”, que é “desarmônico” e “discordante”. O acorde dissonante é aquele cujos sons não se dão bem entre si, aquele que stressa o maestro que desejaria sua orquestra plenamente ressonante com todos os instrumentos equilibrados e harmônicos.

Ponto importante : dissonância tem a ver com desequilíbrio, com uma incapacidade de estar em consonância com o conjunto. E boa parte da arte humana, do nosso fazer coletivo, envolve um esforço de harmonização. Uma ânsia de equilíbrio, é claro que frequentemente frustrada neste mundo altamente desequilibrado pelas mudanças climáticas, pela injusta distribuição de capitais e recursos, pelo caos informacional e pela sexta extinção em massa da biodiversidade planetária – desta vez, causada pelo Antropoceno. Sonhamos em habitar um paraíso de Harmonia e quase sempre e em quase todo lugar, hoje em dia, só conseguimos habitar num inferno de Dissonância.

Na sociedade, dissonante pode ser chamada a conduta ou fala que no espaço público ressoa como rebeldia, heresia, atentado às normas vigentes ou ao status quo. Dissonantes são os sujeitos que não aceitam normas, que contestam a sacralidade e liberdade religiosa, que des-mitificam autoridades,negam a ciência etc. O dissidente dissonante é aquele que desequilibra o corpo social que pretende equilibrar-se na solidez do uniforme.

Como a dissonância cognitiva explica a desordem brasileira.

 

No Brasil, “Ordem e Progresso” pode até estar estampado na bandeira, como mote positivista amputado (Comte teria adicionado o Amor e composto uma tríade…). Mas a desordem e o retrocesso reinam incontestes no último período histórico que atravessa a pandemia sob o o governo que se aproxima do fim.

Chegamos próximos a 2023 e tudo parece estar em desequilíbrio. Há dissonância socioambiental profunda e muito disseminada. Para além dos desânimos existenciais (depressões), o stress e o burnout estão cada vez mais instalados – ou seja, a dissonância parece ser a substância social em que estamos mergulhados. A dissonância como fenômeno concreto, coletivo, serve aqui para emblematizar nossa fratura, nossa incapacidade de fazer coro em consenso. Falar em dissonância é essencial para nossa compreensão de nosso tempo-espaço contemporâneo.

A fonte originária do termo é de Leon Festinger (1919 – 1989). Ele e sua equipe quiseram compreender um culto de Chicago obcecado por OVNIs e Apocalipse. Os psicólogos buscaram avaliar o que ocorreu após o grupo ter profetizado o fim do mundo devido a uma hecatombe causada por aliens – o que obviamente não aconteceu. Como eles se viam depois do fato não consumado > O trabalho é descrito no livro When Prophecy Fails escrito por Leon Festinger, Henry Riecken, e Stanley Schachter.

O fato de que as profecias falham coloca muitas vezes um certo sistema de crenças em estado de pane. Um culto de ufólogos que espera uma invasão alienígena que acarretará a aniquilação de toda a vida na Terra, com data especifica para ocorrer, certamente se sentirá decepcionado ao constatar que todo o processo era uma uma falsidade . O que decorre é que para muitos não acontece necessariamente o abandono da crença prévia, alguma coisa cognitiva tenta racionalizar o ocorrido.

A psicologia da dissonância cognitiva entra em cena para analisar como agem, pensam e sentem os crentes nestas profecias, sobretudo como lidaram com a decepção, com o” input” de uma nova informação que diz “você estava errado”. É deste “caldo cultural” que emerge esta importante teoria da psicologia social com a publicação do livro de Fastinger de 1957: A Theory of Cognitive Dissonance (Ed. Stanford University).

A teoria da dissonância cognitiva parte de 3 premissas :   a cognição (crenças , atitudes) pode estar relacionada com outra crenças. Crenças relacionadas podem ser contraditórias (base para o surgimento da dissonância). O humano é motivado para reduzir a dissonância e manter seu balanço cognitivo.

Quando o grau de dissonância for grande, e quando importantes crenças estão envolvidas, o sujeito se torna altamente motivado para reduzir a dissonância. Festinger sugeriu que nós fazemos isso por trocar um dos credos dissonantes ou atitudes para que isto permita a consistência com a cognição relacionada.

Ao conceito da dissonância cognitiva de Festinger pode ser acrescentada a perspectiva coletiva, que está associada à capacidade da produção de conteúdo das redes sociais. Dissonância cognitiva é um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos, ocorre sempre que há uma distância entre aquilo em que acreditamos e a maneira pela qual nos comportamos. Não há ser humano que não viva com certo grau de dissonância cognitiva.

Diz Festinger que, quando essa dissonância cognitiva começa a incomodar, torna-se gritante e muito óbvia, há mecanismos para reduzir a dissonância cognitiva. São dois mecanismos principais : o famoso exemplo do médico que fuma, ninguém melhor do que ele saberá que o tabagismo faz mal à saúde. Então, o que faz ele? Ou ele recusa fontes que demonstram cientificamente que o tabagismo é maléfico, ou, pelo contrário, só busca fontes que amenizam essa informação. Ou você recusa informação que contraria a sua crença, ou você busca informação que reforça o que você já pensava.

Festinger diz que sempre agimos para reduzir a dissonância cognitiva, não para aumentá-la ou cristalizá-la. Então, o que está acontecendo com o bolsonarismo é a cristalização, a consolidação de um Brasil paralelo.”


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