Nestes tempos de discórdia, de desequilíbrio e insanidades,
talvez o debate público esteja precisando muito de um conceito que nos ajude a
decifrar a esfinge deste Brasil contemporâneo.
O termo é dissonância cognitiva coletiva.
Através dela, podemos compreender mais a fundo fenômenos como a recorrente noção das “bolhas” ou
“câmaras de eco” movidas pela internet, que integram o motor de nossa realidade
, onde cada vez mais os sujeitos agem como se a verdade importasse pouco ou
nada. Cria-se uma “realidade paralela” reforçada pelo espírito de seita e pelo
fanatismo que se sente à vontade na ambiência da pós-verdade.
Os sujeitos da pós-verdade vivem imersos em dissonância
cognitiva e buscam arduamente, como náufragos ansiosos por uma tábua de
salvação, crenças e dogmas mesmo que estes estejam colapsando com o influxo de
novas informações a serem de antemão refutadas (viés de confirmação).
O bolsonarismo, neste aspecto, não difere muito de uma seita
de terraplanistas que parece viver antes de Copérnico e Galileu, ou de uma
horda de apaixonados em ufologia que profetiza o iminente apocalipse causado
pela invasão alienígena.
Analisando a dissonância.
Na música, o elemento dissonante é aquele que perturba a
harmonia, que viola as leis da consonância. É dissonante a nota que não
participa da escala, que é estranha ao acorde. O músico erra ao tocá-la. É o
elemento que não concorda com o todo. Dissonante é sinônimo daquilo “que
destoa”, que é “desarmônico” e “discordante”. O acorde dissonante é aquele
cujos sons não se dão bem entre si, aquele que stressa o maestro que desejaria
sua orquestra plenamente ressonante com todos os instrumentos equilibrados e
harmônicos.
Ponto importante : dissonância tem a ver com desequilíbrio,
com uma incapacidade de estar em consonância com o conjunto. E boa parte da
arte humana, do nosso fazer coletivo, envolve um esforço de harmonização. Uma
ânsia de equilíbrio, é claro que frequentemente frustrada neste mundo altamente
desequilibrado pelas mudanças climáticas, pela injusta distribuição de capitais
e recursos, pelo caos informacional e pela sexta extinção em massa da
biodiversidade planetária – desta vez, causada pelo Antropoceno. Sonhamos em
habitar um paraíso de Harmonia e quase sempre e em quase todo lugar, hoje em
dia, só conseguimos habitar num inferno de Dissonância.
Na sociedade, dissonante pode ser chamada a conduta ou fala
que no espaço público ressoa como rebeldia, heresia, atentado às normas
vigentes ou ao status quo. Dissonantes são os sujeitos que não aceitam normas,
que contestam a sacralidade e liberdade religiosa, que des-mitificam
autoridades,negam a ciência etc. O dissidente dissonante é aquele que
desequilibra o corpo social que pretende equilibrar-se na solidez do uniforme.
Como a dissonância cognitiva explica a desordem brasileira.
No Brasil, “Ordem e Progresso” pode até estar estampado na
bandeira, como mote positivista amputado (Comte teria adicionado o Amor e
composto uma tríade…). Mas a desordem e o retrocesso reinam incontestes no
último período histórico que atravessa a pandemia sob o o governo que se
aproxima do fim.
Chegamos próximos a 2023 e tudo parece estar em desequilíbrio.
Há dissonância socioambiental profunda e muito disseminada. Para além dos
desânimos existenciais (depressões), o stress e o burnout estão cada vez mais
instalados – ou seja, a dissonância parece ser a substância social em que
estamos mergulhados. A dissonância como fenômeno concreto, coletivo, serve aqui
para emblematizar nossa fratura, nossa incapacidade de fazer coro em consenso. Falar
em dissonância é essencial para nossa compreensão de nosso tempo-espaço
contemporâneo.
A fonte originária do termo é de Leon Festinger (1919 –
1989). Ele e sua equipe quiseram compreender um culto de Chicago obcecado por
OVNIs e Apocalipse. Os psicólogos buscaram avaliar o que ocorreu após o grupo
ter profetizado o fim do mundo devido a uma hecatombe causada por aliens – o
que obviamente não aconteceu. Como eles se viam depois do fato não consumado
> O trabalho é descrito no livro When Prophecy Fails escrito por Leon
Festinger, Henry Riecken, e Stanley Schachter.
O fato de que as profecias falham coloca muitas vezes um
certo sistema de crenças em estado de pane. Um culto de ufólogos que espera uma
invasão alienígena que acarretará a aniquilação de toda a vida na Terra, com
data especifica para ocorrer, certamente se sentirá decepcionado ao constatar
que todo o processo era uma uma falsidade . O que decorre é que para muitos não
acontece necessariamente o abandono da crença prévia, alguma coisa cognitiva
tenta racionalizar o ocorrido.
A psicologia da dissonância cognitiva entra em cena para
analisar como agem, pensam e sentem os crentes nestas profecias, sobretudo como
lidaram com a decepção, com o” input” de uma nova informação que diz “você
estava errado”. É deste “caldo cultural” que emerge esta importante teoria da
psicologia social com a publicação do livro de Fastinger de 1957: A Theory of
Cognitive Dissonance (Ed. Stanford University).
A teoria da dissonância cognitiva parte de 3 premissas
: a cognição (crenças , atitudes) pode
estar relacionada com outra crenças. Crenças relacionadas podem ser
contraditórias (base para o surgimento da dissonância). O humano é motivado
para reduzir a dissonância e manter seu balanço cognitivo.
Quando o grau de dissonância for grande, e quando
importantes crenças estão envolvidas, o sujeito se torna altamente motivado
para reduzir a dissonância. Festinger sugeriu que nós fazemos isso por trocar
um dos credos dissonantes ou atitudes para que isto permita a consistência com
a cognição relacionada.
Ao conceito da dissonância cognitiva de Festinger pode ser
acrescentada a perspectiva coletiva, que está associada à capacidade da produção
de conteúdo das redes sociais. Dissonância cognitiva é um desconforto subjetivo
causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos, ocorre
sempre que há uma distância entre aquilo em que acreditamos e a maneira pela
qual nos comportamos. Não há ser humano que não viva com certo grau de
dissonância cognitiva.
Diz Festinger que, quando essa dissonância cognitiva começa
a incomodar, torna-se gritante e muito óbvia, há mecanismos para reduzir a
dissonância cognitiva. São dois mecanismos principais : o famoso exemplo do
médico que fuma, ninguém melhor do que ele saberá que o tabagismo faz mal à
saúde. Então, o que faz ele? Ou ele recusa fontes que demonstram
cientificamente que o tabagismo é maléfico, ou, pelo contrário, só busca fontes
que amenizam essa informação. Ou você recusa informação que contraria a sua
crença, ou você busca informação que reforça o que você já pensava.
Festinger diz que sempre agimos para reduzir a dissonância
cognitiva, não para aumentá-la ou cristalizá-la. Então, o que está acontecendo
com o bolsonarismo é a cristalização, a consolidação de um Brasil paralelo.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário