Na cidade de Livermore, Califórnia, uma lâmpada vem
iluminando a sede do corpo de bombeiros local há 120 anos. O fato é considerado
tão impressionante, num mundo de lâmpadas que se queimam em menos de um ano de
uso, que o lugar virou até ponto turístico. Existe um site dedicado ao curioso
objeto onde é possível acompanhar sua trajetória em tempo real. Quando será que
ela vai se apagar ?
Mais interessado na regra que na exceção, o jornalista
escritor e crítico social canadense Giles Slade publicou em 2006 o premiado
livro “Made to Break” (feito para quebrar), um dos principais relatos
contemporâneos sobre o fenômeno da obsolescência programada. Em linhas gerais,
trata-se da estratégia usada por diversas indústrias — mas que é mais latente
na área de tecnologia — de criar produtos com um prazo de validade planejado,
como forma de garantir que o consumidor terá que retornar para comprar
novamente,uma fidelização compulsória.
Em sua obra, Giles explora desde as raízes bem americanas
desse projeto de mercado, que nasceu em produtos como tampas de garrafa,
aparelhos de barbear e carros da GM, até seu desenvolvimento ao longo do século
20, desembocando em questões diversas, como a produção de lixo eletrônico em
massa e o esfriamento das relações humanas.
Numa sociedade feita para o consumo rápido e imediato, em
que a durabilidade não é do interesse de ninguém, não espanta a curiosidade
despertada por uma simples lâmpada incandescente. Além do fascínio pelo objeto
em si, ela demonstra que outros produtos também poderiam ser feitos para durar
uma vida inteira. Giles fala sobre como empresas como a Apple têm usado a
estratégia para ampliar seus negócios e seus lucros. Também aborda o direito de
consertar um produto, algo que vem sendo tirado dos consumidores, além da
crescente produção de lixo no mundo e o distanciamento causado pela tecnologia.
Nossos relacionamentos interpessoais têm refletido essa
relação com as coisas. As próprias pessoas se tornaram mais descartáveis.
Vivemos um modelo de capitalismo baseado no consumo
repetitivo. Movemos as engrenagens da indústria ao continuamente produzirmos
coisas novas. Os fabricantes enxergam isso como uma forma de ficar muito ricos,
fazendo crescer seu poder, influência e seus recursos econômicos e fiscais.
Obviamente, é muito fácil criar uma máquina que perdure. O Mars Rover [veículo
explorador de Marte], por exemplo, foi pensado para durar três anos. Mas, como
não sabiam quais seriam as condições da superfície de Marte, estenderam esse
período de forma tremenda. Ele já existe há 20 anos e continua andando.
Na antiga União Soviética, o problema não era produção nem
consumo, porque todo mundo queria o que a indústria estatal produzisse. Eles
não tinham como ampliar suas fábricas para competir com o capitalismo. Um
refrigerador soviético vai durar para sempre. No Ocidente, a marca registrada
de um produto de luxo é que dura muito tempo. Coisas como relógios Rolex e
carros da Mercedes.A Apple , de forma muito inteligente, vai lá e limita seu
aparelho para que seja forçado a comprar um novo. É uma política deliberada e
está presente em todos os aspectos da empresa. É como um vício. Eles não vão dizer
como parar de comprar, não faria sentido. E é exatamente assim que a indústria
funciona, especialmente a de tecnologia.
Essa estratégia econômica ganhou importância na virada do
século 19 para o 20, com produtos como tampas de garrafas de Coca-Cola e
aparelhos de barbear descartáveis. A ideia era criar produtos que precisassem
ser eternamente substituídos. Essa mudança foi possível porque aconteceu uma
revolução no tipo de materiais que eram usados. De repente, papel, estanho e
aço se tornaram muito mais baratos, porque ficaram mais fáceis de processar.
Cuba oferece uma perspectiva bem interessante do problema, porque o embargo
americano bloqueou o país para a maioria dos mercados do mundo. Não existem
novos materiais, carros ou celulares. As pessoas precisam se virar com o que já
têm. Os cubanos são muito resilientes e inteligentes ao reciclar tudo.. Na
América qualquer um se sente sobrecarregado com todas as opções de consumo. O
mercado tem tantos celulares que fica dificil diferenciar um do outro.
Nosso fascínio por
tecnologia pessoal tem raízes no período em que as pessoas deixaram a Europa e
outras partes do planeta e vieram para o Novo Mundo. Cartas, cartões-postais,
telefones, gravações, fotografias são coisas que foram permitindo que as
pessoas mantivessem contato com seus parentes e entes queridos que moram longe.
Só que acabamos desenvolvendo um fascínio e uma dependência desses objetos, a
ponto de usá-los como substitutos para interações humanas reais. Como
descobrimos neste último ano, com a covid-19, são substitutos vazios.É provável
que isso tenha nos tornado mais solitários. Ainda que sejamos consumidores que
deveriam ser respeitados por grandes corporações, elas podem formar monopólios
e influenciar até a legislação que precisamos obedecer. Isso desgastou nossa
liberdade e também nossas interações sociais. Hoje, as pessoas preferem mandar
um texto ou ligar, porque encontros físicos são vistos como mais frágeis e
perigosos do que eram no passado.
O próprio sistema
operacional impede interferências. Por isso, uma das principais reivindicações
do movimento pelo direito de consertar é o acesso aos manuais e códigos do
sistema, assim como aos componentes. A empresa pode argumentar que qualquer
provedor de serviço independente é capaz de consertar seu telefone. Mas,
infelizmente, só um técnico treinado pela Apple pode realmente efetuar o reparo
necessário. Eles obstruem esse movimento porque querem toda a receita pelo
conserto de seus aparelhos que, após um certo ponto, são programados para
funcionar de forma piorada. Em 2017, houve um processo nos EUA contra a Apple
por seu novo sistema iOS. O iPhone 6 deliberadamente ficava mais devagar para
encorajar as pessoas a comprarem novos produtos. Essa estratégia obscura
acontece em toda a indústria.
Programas de fidelidade, obsolescência programada de moda e
tecnologia, todas essas coisas incentivam o consumidor a não manter seus
produtos, mas sim comprar novos. E nossos relacionamentos interpessoais têm
refletido essa relação com as coisas. As próprias pessoas se tornaram mais
descartáveis por causa disso.. Não é algo que acontecia no passado. Nós
mudamos, nos tornamos muito mais temporais e temporários. A perda das
preocupações sociais nos deixou com uma cultura vazia, materialista, na qual
substituímos a felicidade genuína por objetos.
Se pretendemos continuar sendo humanos, precisamos alterar
radicalmente nosso sistema de valores. Senão, empresas como o Facebook vão
intensificar essa estratégia, nos induzindo a comprar coisas sem que saibamos.
A visão que a indústria tem sobre a humanidade é muito superficial, como se
fôssemos um rebanho de ovelhas que precisa ser tosado periodicamente, mas não
muito bem alimentado ou cuidado. O modelo de capitalismo que desenvolvemos é
essencialmente desumano. Ele está nos destruindo, por causa de todo o lixo que
despejamos sobre o planeta, mas também por razões espirituais difíceis de
quantificar.
Não vivemos na natureza, mas da natureza. Para mudar, teria
de haver uma revolução de valores. Nós nos dissolvemos em tecnologia de forma
injustificável. Olhamos para novas tecnologias como uma forma de salvar o
futuro de problemas que a própria tecnologia criou. Pensamos que seremos
capazes de limpar a atmosfera, produzir menos carbono ou retirar plástico do
oceano, porque os investimentos aumentam a cada ano. Só que isso simplesmente
não é verdade. Essa realidade está nos danificando e nos mudando. Nossa
confiança nela é uma evidência profunda da nossa incapacidade de confiarmos uns
nos outros. Preocupações fundamentalmente humanas foram despedaçadas. É uma
sociedade muito ampla, com pessoas demais, e não é possível responder por todo
mundo, mas também não somos encorajados a fazê-lo. Nosso capital social está
sendo destruído.
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