terça-feira, 27 de dezembro de 2022

sobre a estupidez contemporânea


 

O escritor austríaco Robert Musil , em 1937 , deu uma palestra em Viena cujo título era  'On Stupidity' (1937). Sua idéia defendia que a estupidez não era mera 'burrice', não uma falta brutal de poder de processamento mental. A burrice, para Musil, era "simples", na verdade quase "honrosa". A estupidez era algo muito diferente e muito mais perigoso, precisamente porque algumas das pessoas mais inteligentes, as menos burras, muitas vezes eram as mais estúpidas.

A palestra de Musil nos deixa um importante conjunto de questões. O que exatamente é estupidez? Como isso se relaciona com a moralidade: você pode ser moralmente bom e estúpido, por exemplo? Como se relaciona com o vício: a estupidez é uma espécie de preconceito, talvez? Por que as pessoas costumam ser estúpidas em uma área e perspicazes em outra? 

A estupidez é uma falha cognitiva muito específica. Em termos simples, ocorre quando você não tem as ferramentas conceituais certas para o trabalho. O resultado é uma incapacidade de entender o que está acontecendo e uma tendência resultante de forçar os fenômenos a conclusões toscas e distorcidas.

Muitas vezes, a estupidez surge quando uma estrutura conceitual desatualizada é forçada a funcionar, mutilando o controle do usuário sobre algum novo fenômeno. É importante distinguir isso de um mero erro. Nós cometemos erros por todos os tipos de razões. A estupidez é antes uma causa específica e teimosa de erro. É uma falta dos meios necessários, uma falta do equipamento intelectual fundamental. Combatê-la normalmente não requer força de vontade bruta, mas a construção de uma nova maneira de ver nosso eu e nosso mundo.

A estupidez pode, perfeitamente,ser compatível com a inteligência. De fato, pelo menos em alguns casos, a inteligência ajuda ativamente a estupidez ao permitir uma racionalização perniciosa.Parte superior do formulário

 A estupidez também é compatível com um tipo de inovação equivocada. Ela tem duas características que a tornam particularmente perigosa quando comparada com outros vícios. Primeiro, ao contrário das falhas de caráter, a estupidez é principalmente uma propriedade de grupos ou tradições, não de indivíduos: afinal, obtemos a maior parte de nossos conceitos, nossas ferramentas mentais, da sociedade em que fomos criados. Uma vez que a estupidez se apodera de um grupo ou sociedade, é particularmente difícil erradicá-la – inventar, distribuir e normalizar novos conceitos.

Em segundo lugar, a estupidez gera mais estupidez devido a uma profunda ambigüidade em sua natureza.No caso da política, a estupidez é particularmente cativante: um slogan estúpido combina com um eleitor estúpido, reflete a maneira como eles veem o mundo. O resultado é que a estupidez pode, ironicamente, ser extremamente eficaz no ambiente certo: um tipo de incapacidade está sendo selecionado.

Agora podemos explicar por que a estupidez é tão específica, por que alguém pode ser tão inteligente em uma área e tão idiota em outra: os conceitos relevantes geralmente são específicos do domínio. Além disso, podemos ver que haverá muitos casos que não são estupidez de pleno direito, mas que imitam seus efeitos. Neste tipo de caso, os agentes possuem as ferramentas intelectuais necessárias, mas involuntariamente as trancam. Isso marca um contraste importante com a burrice – podemos nos tornar estúpidos, mas não nos tornamos burros.

Portanto, a estupidez é difícil de consertar. Isso é agravado pela forma como se relaciona com outros vícios: a teimosia impede de revisitar conceitos mesmo quando eles falham. Mas uma vez que entendemos a natureza da estupidez, as coisas são um pouco mais brilhantes do que podem parecer. Com um pouco de reflexão, podemos ter certeza de que não somos cínicos e, com as credenciais certas, podemos provar que não somos burros. Mas podemos muito bem, no entanto, ser pego na rede da estupidez. A julgar pela história, daqui a algumas centenas de anos, nossos descendentes acharão pelo menos uma parte da moralidade contemporânea quase ininteligível – 'Como pessoas decentes poderiam ter acreditado nisso?' Se eles não quiserem nos condenar como maus, podem muito bem concluir que fomos estúpidos.

 


domingo, 18 de dezembro de 2022

a manipulação da atenção

 



Em 1830 , o jornal New York Sun resolveu apostar em uma maneira de alavancar suas vendas.Uma espécie de inversão da lógica econômica para a época.Em lugar de vender conteúdos de qualidade o The Sun passou a vender conteúdos de baixa qualidade a preços irrisórios.Captou muito mais a atenção dos leitores com matérias sobre  crimes , fofocas , violência. Em 1835 chegou a publicar uma matéria anunciando que um potente telescópio havia observado humanóides com asas habitando a Lua. A mentira nunca foi retratada e o jornal continuou vendendo.

As atuais plataformas digitais seguem a mesma lógica invertida porém sem precisar produzir conteúdo : apenas circulam conteúdos gerados pelos usuários.O foco dessas empresas se foca num mecanismo de captura da atenção desses mesmos usuários.Na economia da atenção a relação entre plataformas e usuários aliena o controle destes sobre a própria atenção produzindo paralelamente " o sujeito liberal autopossuído , dono (!!) dos próprios pensamentos e da própria vontade.

Como as plataformas se tornam donas da atenção dos usuários ?

O ritmo imposto pelas midias sociais ao cotidiano propicia os efeitos cognitivos pretendidos pontuando o dia-a dia com eventos que demandam sua atenção e reação - uma curtida , um compartilhamento , um comentário. O conteúdo não importa. Para os algoritimos é indiferente se a expressão for de amor ou ódio.

Existe um conceito de uma camada cognitiva dos processos primários conhecida como "cérebro reptiliano ". Aquela responsável pela produção de hábitos,afetos e memória encorporada. A arquitetura das midias desvirtua hábito em adicção , um estado mental de dependência com relação a estímulos externos,destruindo a autonoia do sujeito.A adicção em sua forma moderada é um das bases da sociedade de consumo de massa onde estar satisfeito com o que se tem é estar fora de sincronia.Essas dependências movem a "sociedade em rede" e sua lógica de captura.

Daí a sensação estranha de estarmos sempre em dívida-sempre um passo atrás de onde deveríamos estar. Outro efeito da temporalidade de crise permanente é a experiência de "imediaticidade" : o usuário passa a entender como verdadeiro aquilo que chega a seu smartphone em tempo real. Seu acesso ao mundo passa a depender da entrega ininterrupta de eventos pelas suas redes.

Num regime social baseado na competição entre redes emergentes, verdade passa a ser "o que quer que se venda".Para cada segmento de mercado , uma verdade.

O sujeito vem sendo vitimado por mudanças na sua constituição. Quando o hábito degenera em adicção,instala-se uma dinâmica involutiva. Isso significa que ele deve estar sempre se atualizando "apenas" para conseguir continuar no mesmo lugar. Se não posta,não chama a atenção para si,não gera engajamento,seu perfil "some". Nunca emerge sozinho,mas junto com outros grandes agregados.

Os algoritimos agregam perfis com comportamentos que eles entendem como similares, o conteúdo importa pouco. Como a cognição humana vem se tornando incapaz de acessar a realidade a não ser através de mediações (midias), o resultado pode ser a sua segmentação em mundos personalizados que se conectam parcialmente em realidades paralelas.

As midias enfraquecem as formas de subjetivação e produção de verdades baseadas no reconhecimento universal. As mídias intermediam novas identidades com base em reconhecimento bifurcado , distorcido

sábado, 17 de dezembro de 2022

o humano como objeto : a influência das midias sociais


 

Nos vemos , como sujeitos , agentes ativos atuando em um ambiente que é objeto (passivo) de nossa ação e atenção.

A filosofia , sociologia e a antropologia têm mostrado como a contemporaniedade elevou o sujeito a uma condição de fetiche ideológico nas culturas humanas.É muito dificil , para nós , nos enxergarmos no papel de ambiente (objeto). Mas é isso que estamos aprendendo e constatando até mesmo antes da internet : uma inversão que sucumbe à atenção e se molda pela extração de dados comportamentais.

Essa incapacidade de nos vermos como ambiente passivo à influência de sistemas que operam em planos virtuais não é a única cegueira que nos impede uma análise lúcida dos fenômenos que nos prendem às telas. Ela é parte fundamental deles : a eficiência que sustenta a economia digital parte do pressuposto de que os usuários tenham a sensação de liberdade e livre arbitrio.

Para que esse infinito mercado de dados funcione,precisamos nos colocar à sua disposição.Estamos há tempos proporcionando uma emergência de conhecimentos e aparatos que coordenam a base de uma nova forma de comando e controle.Entender o atual processo das mídias e seus efeitos exige a atividade de pensar fora do contexto do senso comum.

Vivemos em um ambiente que emerge na relação com um organismo : o que propicia que o organismo faça ou não. Um exemplo : a agua. Um lago é um ambiente que permite condições para que organismos passem por ele das mais diversas formas : no ato de beber , nadar , mergulhar etc. O que elea propicia não está no organismo , nem no ambiente , mas na relação de coemergência entre eles.

A relação entre usuários humanos e a internet implica em pensar nesta como objeto inacabado,que só é completado diante de sua apropriação por atores concretos. As midias sociais não apenas ganham vida no mundo da internet mas ajudam a moldar este mundo,organizar seus limites , realizar novas conexões.

O problema não está naquilo que as plataformas dizem que conseguem fazer.Está , também , naqueles efeitos que não são previsíveis nem controlados diretamente. Os algoritmos aprendem a se atualizar a partir da relação com usuários reais.Dispositivos móveis como smartphones proporcionaram uma capilaridade inédita na relação com outros tantos usuários,permitiram o fluxo e compartilhamento de dados de uma forma incontrolável. Foi se criando uma reorganização e uma integração extensiva entre plataformas e intensiva entre usuários cada vez mais cotidiana e personalizada.

Gabriel Tarde , antropólogo , há mais de cem anos escreveu que a experiência de simultaniedade temporal via processos miméticos - o que experimentamos é compartilhado por muitos outros indivíduos - é uma das formas mais potentes de produção de sociabilidade e identidades..

No estado de multidão , a individualidade se atenua em proveito do coletivo. Esse "todo" é mais permeável a contágios , pois somadas as individualidades a informação passa com mais facilidade e rapidez : o individuo se torna mais suscetível à influências.

A formação de multidão nas midias não é fortuita. Cada vez mais existem incentivos para construir arquiteturas de redes capazes de capturar e colocar a consciência de cada um num estado de fluxo controlado por sistemas algoritimicos. Isso visa a maximização do tempo de conexão e a extração de dados. Assim se produz a sugestibilidade típica das multidôes.

Esses procedimentos algoritimicos não seguem critérios predefinidos mas recursivos e emergentes,oriundos dos próprios dados. Inverte-se a maneira de construir o laço social : em vez dos sujeitos serem socializados dentro de uma estrutura já existente,são os grupos que emergem a a partir das ligações algoritimicas.

Desta forma , os usuários vão perdendo o controle daquilo que aparece para si e de como eles mesmos aparecem para os outros.Essas decisões são delegadas para os algoritimos e os usuários passam a ter uma posição cada vez mais passiva. São entregues mundos personalizados que confirmam seus enquadramentos individuais. Os usuários sentem-se plenamente legitimados em suas opiniões e visões como pequenos soberanos em seus microfeudos digitais.

Poucos têm real consciência do modo como as arquiteturas das redes são construídas para produzir exatamente esse efeito , pois é a partir dele que os usuários serão mantidos e seus dados,extraídos e propagados de forma contínua.

Os usuários não são os clientes das plataformas. São o objeto a ser veiculado. Clientes são aqueles que pagam fortunas nas propagandas etc.

Em tempo : o termo usuário é utilizado em duas situações . Aquele que usa as  midias e o que usa drogas ilícitas.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

como eles sabem disso ?

 


O escritor HG Wells certa vez escreveu que “o pensamento estatístico um dia será tão necessário para uma cidadania eficiente quanto a capacidade de ler e escrever”. Foi um pouco exagerado, mas em uma era de “ big data” em que os governos se orgulham de serem “baseados em evidências” e “guiados pela ciência”, entender de onde vêm os fatos e números é importante se quisermos pensar com clareza .

 O livro “Bad Data” de Georgina Sturge é informativo, fundamentado e apolítico.Oferece uma série de exemplos para mostrar que as estatísticas nem sempre são o que parecem. Algumas  são manipuladas por razões políticas. Outras são inerentemente falhas. Algumas,mero exercício de adivinhação. Mesmo variáveis ​​cruciais, como PIB e expectativa de vida, estão envoltas em incertezas. Ela vive na Inglaterra e portanto faz várias referências à sua região. Não sabemos realmente quantas pessoas vivem na Grã-Bretanha legalmente, muito menos ilegalmente. O número de pessoas que vivem na pobreza varia enormemente dependendo de como você mede.

O crime e o desemprego são extremamente importantes para os eleitores e, portanto, suscetíveis à manipulação pelas autoridades. A Inglaterra e o País de Gales têm dados sobre crimes registrados que remontam a 1857, mas a maioria dos crimes não são denunciados à polícia e, mesmo quando são denunciados, não são necessariamente registrados por policiais. Definir as metas da polícia para reduzir o crime cria incentivos para que a polícia permita que possíveis crimes não sejam registrados.

Os números do desemprego são notoriamente vulneráveis ​​à manipulação política. Sob o governo conservador de Thatcher e Major, houve 31 mudanças na forma como o desemprego foi medido. Alguns desses ajustes foram triviais, mas muitos deles foram, diz Sturge, “não apenas ajustes, mas mudanças bastante importantes em quem foi incluído e, mais frequentemente, excluído da contagem”. Isso não apenas tornou extremamente difícil comparar as estatísticas de desemprego ao longo do tempo – em alguns casos, impediu que as pessoas reivindicassem benefícios de desemprego.

Dados incorretos são mais frequentemente o resultado de fragilidade humana e métodos falhos. Muitas estatísticas são baseadas em pesquisas, mas nem sempre as pessoas dizem a verdade. Eles subnotificam muito a quantidade de álcool que bebem, por exemplo.

O viés de amostragem também pode ser um problema.Por exemplo : a estimativa do governo de quantos poloneses se mudaram para o Reino Unido após a entrada da Polônia na UE estava entre 5.000 e 13.000 poloneses. Mais de 500.000 chegaram. O que mudou tudo era que as estimativas de migração do Reino Unido vêm da Pesquisa Internacional de Passageiros, que pergunta às pessoas que chegam à Grã-Bretanha, mais ou menos aleatoriamente, o que planejam fazer enquanto estiverem no Reino Unido.A pesquisa foi projetada para turistas, mas acabou identificando alguns migrantes ao longo do caminho e, portanto, tornou-se a principal fonte de estimativas de migração.

O maior problema, que o livro de Sturge procura abordar, é a má interpretação das estatísticas por pessoas que deveriam saber mais (e muitas vezes sabem). A esse respeito, é surpreendente que ela não escreva mais sobre a pandemia, quando uma quantidade impressionante de dados brutos ficou disponível para qualquer pessoa com conexão à Internet, mas foi amplamente deturpada por atores de má-fé e terrivelmente mal interpretada pelos ingênuos estatisticamente.

Uma das questões estatísticas que a COVID-19 mostrou foi a dificuldade de comparar o Reino Unido com outros países quando se medem as coisas de maneira diferente. Uma morte por COVID no Reino Unido não seria necessariamente registrada como uma morte por COVID na Bélgica e vice-versa

Uma conclusão do livro : a grande maioria das estatísticas são estimativas, algumas delas são estimativas muito aproximadas e os estatísticos são limitados por recursos limitados e conhecimento limitado.Quando nos for apresentada uma estatística impressionante, especialmente quando parece surpreendente, vale a pena perguntar: “Como eles sabem disso?” Muitas vezes, a resposta será que eles realmente não sabem disso.


niilismo


 

Em teoria, a busca por uma vida com significado é nobre. Conceitos fundamentais de comunidade, ética, lógica, moralidade, consciência e igualdade nasceram da investigação da busca por significado. De Aristóteles e Platão a toda a obra de John Hughes, esse desejo inspirou grandes obras de arte, literatura e cinema.

Mas, na contemporaniedade a busca pelo significado inspira mais angústia do que admiração. A busca mudou de um carater privado para um produto comercializável.

A fixação em tornar todas as áreas da existência genericamente significativas criou realidades exaustivas onde tudo de repente realmente parece importar . Boletins informativos diários inundam nossos e mails, vivemos prescrevendo tarefas e metas intermináveis ​​para meditar e marcar como concluídas.Na medida em que o significado passa de uma exploração de longo prazo para uma métrica diária, novos problemas são criados. Quando não somos imediatamente capazes de localizar significado em nossas ações, empregos, relacionamentos e produtos de consumo, ficamos nos sentindo ansiosos e vazios. A busca outrora nobre que construiu a cultura e nos ajudou a esculpir existências gratificantes torna-se apenas mais uma tarefa na lista interminável de uma 'boa vida' que nunca conseguimos cumprir .

Então, qual é a alternativa? A resposta é abraçar um estado de caos niilista e sem sentido? Vamos examinar essa possibilidade

Rejeitar o desejo de buscar e dar significado a todas as coisas muda a maneira valorizamos e gastamos o tempo. Pode clarificar o que deve ser focado ou desconsiderado.Uma espécie de niilismo otimista ou "ensolarado" destaca a delicada beleza da existência, o absurdo da vida e o excitante caos do cotidiano.

A explicação mais ampla do niilismo argumenta que a vida não tem sentido e os sistemas aos quais subscrevemos para nos dar um senso de propósito – como religião, política, estruturas familiares tradicionais ou mesmo a própria noção de verdade absoluta – são construções humanas fantásticas; invenções para tornar a aleatoriedade da existência um pouco mais ordenada. Ou, como disse Friedrich Nietzsche : "Toda crença, toda consideração de algo verdadeiro, é necessariamente falsa porque simplesmente não existe um mundo verdadeiro." :

Desdobrando-o ainda mais, o filósofo americano Donald Crosby divide o niilismo em quatro formas principais: moral, epistemológica, cósmica e, talvez a mais conhecida, existencial. O niilismo moral rejeita ideias fundamentais de certo e errado; o niilismo epistemológico questiona a verdade absoluta; o niilismo cósmico considera a natureza inerentemente indiferente e hostil; e finalmente chegamos ao niilismo existencial, em muitos aspectos o ápice de todas essas considerações: a ideia básica é que não há sentido para a vida, tudo é inútil.

Lendo tudo isso, é justo argumentar que o niilismo é exótico. Essas ideias representam o risco de se transformar em uma espécie de niilismo tóxico que deixa o indivíduo se sentindo desanimado e oprimido,ou então , dono da verdade. De que adianta fazer qualquer coisa se nada importa? Se não há compreensão inerente do bem e do mal, por que tentar levar uma vida moral? Se tudo é inútil, por que sair da cama?

Embora se sentir diminuído pelo escopo do tempo sem fim e apático, os menores elementos da vida começam a se expandir. Se nada importa a longo prazo, o foco deve mudar para este momento. Entender que o presente, por mais mundano que seja, é tão fugaz, temporal, frágil e esquecível quanto os maiores acontecimentos da história humana.

O niilismo nos faz pensar sobre o que se faz e não se presta atenção. O que outra pessoa pensa de nós está imbuído de maior significado (ou falta de significado) em comparação com uma folha de arvore caindo sobre a cerca do vizinho? Na verdade, não. Então, por que somos consumidos pela idéia?

Segundo sua própria descrição, Nietzsche 'filosofava com um martelo', abrindo grandes ideias e desafiando seus leitores a ver o que poderia ser reformado com as peças. Desta forma, o niilismo, como todas as filosofias, é uma ferramenta para explorar partes de nossas vidas. Como acontece com qualquer ferramenta, ela pode ser apanhada e usada para criar ou destruir; resultados e execuções dependem da intenção do usuário. Cabe a cada um decidir se vai cair nos sulcos destrutivos do niilismo tóxico, ou optar por algo um pouco mais leve. Podemos não ter um propósito, mas temos o arbítrio. É nessa leitura do niilismo que devemos pensar em uma vida sem sentido.

Os desafios colocados pelo niilismo não passaram despercebidos a Nietzsche, que tinha uma maneira elegante de explicar como a filosofia pode servir como uma força destrutiva ou construtiva. Segundo ele, os niilistas passivos absorvem as mensagens de falta de sentido e são ameaçados. Eles temem o vazio, então lutam para preenchê-lo entregando-se a qualquer oferta dele.Essa forma de autoproteção cega é uma 'forma perigosa de autodestruição'. Acreditar apenas por acreditar em algo pode levar a uma existência superficial, à aceitação complacente de acreditar em qualquer coisa acreditada por outros. É assim que acabamos caindo na armadilha do significado sem sentido.

Como uma alternativa mais construtiva, Nietzsche conduziu os indivíduos a se tornarem niilistas ativos . Ou seja, olhar para o abismo e ver a ausência de sentido não como uma tragédia, mas como uma oportunidade. Para considerá-lo um espaço para preencher com seus próprios valores, para definir como ser no mundo e o que acreditar ser verdade. Um niilista ativo não se intimida com o caos, ele o reconhece como uma chance de criar algo novo e melhor.

Enquanto o niilismo pode estimular a reflexão e ampliar sua visão sobre a existência, o sequestro comercial de significado joga com as vulnerabilidades do niilista passivo, contribuindo para a epidemia de egoísmo obcecado por nós mesmos. Isso não apenas encoraja a centrar todas as ações em torno de si mesmo, mas também apresenta isso enganosamente como um ato nobre. Quando se abraça esse tipo de mito pessoal, se permite passar muito tempo pensando sobre sua própria vida, ações e experiências.

A aceitação do niilismo demonstra que, quando paramos de nos concentrar em um ponto maior, seremos capazes de fazer perguntas mais simples, mas mais gratificantes: como é a felicidade agora? O que nos daria prazer hoje? Como podemos obter uma sensação de satisfação neste momento? Na maioria das vezes, as respostas não são complexas. São pequenas delícias já à mão – tempo passado com os entes queridos, uma refeição deliciosa, um passeio na natureza, uma xícara de café.

Nietzsche estava atento a alguns pontos problemáticos, escrevendo em Além do bem e do mal (1886): 'Aquele que luta com monstros deve tomar cuidado para não se tornar um monstro. E se você olhar por muito tempo para um abismo, o abismo também olhará para você.'

O niilismo nos pede para jogar fora o significado e olhar para o vazio que resta em seu lugar. Mas, em vez de ser um buraco negro simples e aterrorizante, um vazio pode levar à reflexão. É um espaço para ser preenchido com o que quiser.

É preciso coragem, mas também podemos descobrir que o abismo reformula nossa atenção para coisas que esperamos que durem um pouco mais. Arte, comunidade, as pessoas que amamos. No lugar da angústia existencial, aniquilação psicológica ou abandono egoísta, nós podemos encontrar alívio em causas maiores.

Aceitar a própria mortalidade e enfrentar a impermanência da vida, pode alinhar a maneira como vivemos com nossos valores mais verdadeiros. É a falta de interesse de muitos em contemplar a morte – e como tal, quão preciosa e fugaz é a nossa vida – que permite que tantos percam o seu tempo.  Epicuro disse certa vez: 'A morte não nos diz respeito, porque enquanto existirmos, a morte não está aqui. E quando chega, deixamos de existir.' Epicuro não acreditava na vida após a morte, nem como punição nem como recompensa. Ele ensinou que a vida e tudo o que ela pode oferecer está acontecendo conosco agora.Epicuro costuma ser sinônimo de hedonismo e de uma busca incessante de prazeres egoístas. Mas, na realidade, ele tinha certeza de que esse tipo de vida afastaria as pessoas do materialismo e da ganância. Seu 'princípio do prazer' defendia ser e fazer o bem, argumentando que, com uma vida preciosa para desfrutar, nenhum momento deveria ser desperdiçado em culpa ou ansiedade pela dor causada aos outros. A única maneira de se sentir verdadeiramente bem era tratar bem as pessoas.

Muitas vezes, na busca por um significado maior, apagamos não apenas a alegria de momentos triviais esquecidos, mas também seu poder coletivo. Sim, as trivialidades por si não alteram a vida - mas, tendo tempo para notá-las e apreciá-las, elas formam a soma de suas partes. Sem sentido, com certeza. Precioso, absolutamente.

 

 

 

nada é para sempre

 







Na cidade de Livermore, Califórnia, uma lâmpada vem iluminando a sede do corpo de bombeiros local há 120 anos. O fato é considerado tão impressionante, num mundo de lâmpadas que se queimam em menos de um ano de uso, que o lugar virou até ponto turístico. Existe um site dedicado ao curioso objeto onde é possível acompanhar sua trajetória em tempo real. Quando será que ela vai se apagar ?

Mais interessado na regra que na exceção, o jornalista escritor e crítico social canadense Giles Slade publicou em 2006 o premiado livro “Made to Break” (feito para quebrar), um dos principais relatos contemporâneos sobre o fenômeno da obsolescência programada. Em linhas gerais, trata-se da estratégia usada por diversas indústrias — mas que é mais latente na área de tecnologia — de criar produtos com um prazo de validade planejado, como forma de garantir que o consumidor terá que retornar para comprar novamente,uma fidelização compulsória.

Em sua obra, Giles explora desde as raízes bem americanas desse projeto de mercado, que nasceu em produtos como tampas de garrafa, aparelhos de barbear e carros da GM, até seu desenvolvimento ao longo do século 20, desembocando em questões diversas, como a produção de lixo eletrônico em massa e o esfriamento das relações humanas.

Numa sociedade feita para o consumo rápido e imediato, em que a durabilidade não é do interesse de ninguém, não espanta a curiosidade despertada por uma simples lâmpada incandescente. Além do fascínio pelo objeto em si, ela demonstra que outros produtos também poderiam ser feitos para durar uma vida inteira. Giles fala sobre como empresas como a Apple têm usado a estratégia para ampliar seus negócios e seus lucros. Também aborda o direito de consertar um produto, algo que vem sendo tirado dos consumidores, além da crescente produção de lixo no mundo e o distanciamento causado pela tecnologia.

Nossos relacionamentos interpessoais têm refletido essa relação com as coisas. As próprias pessoas se tornaram mais descartáveis.

Vivemos um modelo de capitalismo baseado no consumo repetitivo. Movemos as engrenagens da indústria ao continuamente produzirmos coisas novas. Os fabricantes enxergam isso como uma forma de ficar muito ricos, fazendo crescer seu poder, influência e seus recursos econômicos e fiscais. Obviamente, é muito fácil criar uma máquina que perdure. O Mars Rover [veículo explorador de Marte], por exemplo, foi pensado para durar três anos. Mas, como não sabiam quais seriam as condições da superfície de Marte, estenderam esse período de forma tremenda. Ele já existe há 20 anos e continua andando.

Na antiga União Soviética, o problema não era produção nem consumo, porque todo mundo queria o que a indústria estatal produzisse. Eles não tinham como ampliar suas fábricas para competir com o capitalismo. Um refrigerador soviético vai durar para sempre. No Ocidente, a marca registrada de um produto de luxo é que dura muito tempo. Coisas como relógios Rolex e carros da Mercedes.A Apple , de forma muito inteligente, vai lá e limita seu aparelho para que seja forçado a comprar um novo. É uma política deliberada e está presente em todos os aspectos da empresa. É como um vício. Eles não vão dizer como parar de comprar, não faria sentido. E é exatamente assim que a indústria funciona, especialmente a de tecnologia.

Essa estratégia econômica ganhou importância na virada do século 19 para o 20, com produtos como tampas de garrafas de Coca-Cola e aparelhos de barbear descartáveis. A ideia era criar produtos que precisassem ser eternamente substituídos. Essa mudança foi possível porque aconteceu uma revolução no tipo de materiais que eram usados. De repente, papel, estanho e aço se tornaram muito mais baratos, porque ficaram mais fáceis de processar. Cuba oferece uma perspectiva bem interessante do problema, porque o embargo americano bloqueou o país para a maioria dos mercados do mundo. Não existem novos materiais, carros ou celulares. As pessoas precisam se virar com o que já têm. Os cubanos são muito resilientes e inteligentes ao reciclar tudo.. Na América qualquer um se sente sobrecarregado com todas as opções de consumo. O mercado tem tantos celulares que fica dificil diferenciar um do outro.

 Nosso fascínio por tecnologia pessoal tem raízes no período em que as pessoas deixaram a Europa e outras partes do planeta e vieram para o Novo Mundo. Cartas, cartões-postais, telefones, gravações, fotografias são coisas que foram permitindo que as pessoas mantivessem contato com seus parentes e entes queridos que moram longe. Só que acabamos desenvolvendo um fascínio e uma dependência desses objetos, a ponto de usá-los como substitutos para interações humanas reais. Como descobrimos neste último ano, com a covid-19, são substitutos vazios.É provável que isso tenha nos tornado mais solitários. Ainda que sejamos consumidores que deveriam ser respeitados por grandes corporações, elas podem formar monopólios e influenciar até a legislação que precisamos obedecer. Isso desgastou nossa liberdade e também nossas interações sociais. Hoje, as pessoas preferem mandar um texto ou ligar, porque encontros físicos são vistos como mais frágeis e perigosos do que eram no passado.

 O próprio sistema operacional impede interferências. Por isso, uma das principais reivindicações do movimento pelo direito de consertar é o acesso aos manuais e códigos do sistema, assim como aos componentes. A empresa pode argumentar que qualquer provedor de serviço independente é capaz de consertar seu telefone. Mas, infelizmente, só um técnico treinado pela Apple pode realmente efetuar o reparo necessário. Eles obstruem esse movimento porque querem toda a receita pelo conserto de seus aparelhos que, após um certo ponto, são programados para funcionar de forma piorada. Em 2017, houve um processo nos EUA contra a Apple por seu novo sistema iOS. O iPhone 6 deliberadamente ficava mais devagar para encorajar as pessoas a comprarem novos produtos. Essa estratégia obscura acontece em toda a indústria.

Programas de fidelidade, obsolescência programada de moda e tecnologia, todas essas coisas incentivam o consumidor a não manter seus produtos, mas sim comprar novos. E nossos relacionamentos interpessoais têm refletido essa relação com as coisas. As próprias pessoas se tornaram mais descartáveis por causa disso.. Não é algo que acontecia no passado. Nós mudamos, nos tornamos muito mais temporais e temporários. A perda das preocupações sociais nos deixou com uma cultura vazia, materialista, na qual substituímos a felicidade genuína por objetos.

Se pretendemos continuar sendo humanos, precisamos alterar radicalmente nosso sistema de valores. Senão, empresas como o Facebook vão intensificar essa estratégia, nos induzindo a comprar coisas sem que saibamos. A visão que a indústria tem sobre a humanidade é muito superficial, como se fôssemos um rebanho de ovelhas que precisa ser tosado periodicamente, mas não muito bem alimentado ou cuidado. O modelo de capitalismo que desenvolvemos é essencialmente desumano. Ele está nos destruindo, por causa de todo o lixo que despejamos sobre o planeta, mas também por razões espirituais difíceis de quantificar.

Não vivemos na natureza, mas da natureza. Para mudar, teria de haver uma revolução de valores. Nós nos dissolvemos em tecnologia de forma injustificável. Olhamos para novas tecnologias como uma forma de salvar o futuro de problemas que a própria tecnologia criou. Pensamos que seremos capazes de limpar a atmosfera, produzir menos carbono ou retirar plástico do oceano, porque os investimentos aumentam a cada ano. Só que isso simplesmente não é verdade. Essa realidade está nos danificando e nos mudando. Nossa confiança nela é uma evidência profunda da nossa incapacidade de confiarmos uns nos outros. Preocupações fundamentalmente humanas foram despedaçadas. É uma sociedade muito ampla, com pessoas demais, e não é possível responder por todo mundo, mas também não somos encorajados a fazê-lo. Nosso capital social está sendo destruído.

domingo, 4 de dezembro de 2022

dissonância cognitiva coletiva e o Brasil paralelo

 



Nestes tempos de discórdia, de desequilíbrio e insanidades, talvez o debate público esteja precisando muito de um conceito que nos ajude a decifrar a esfinge deste Brasil contemporâneo.

O termo é dissonância cognitiva coletiva.

Através dela, podemos compreender mais a fundo fenômenos  como a recorrente noção das “bolhas” ou “câmaras de eco” movidas pela internet, que integram o motor de nossa realidade , onde cada vez mais os sujeitos agem como se a verdade importasse pouco ou nada. Cria-se uma “realidade paralela” reforçada pelo espírito de seita e pelo fanatismo que se sente à vontade na ambiência da pós-verdade.

Os sujeitos da pós-verdade vivem imersos em dissonância cognitiva e buscam arduamente, como náufragos ansiosos por uma tábua de salvação, crenças e dogmas mesmo que estes estejam colapsando com o influxo de novas informações a serem de antemão refutadas (viés de confirmação).

O bolsonarismo, neste aspecto, não difere muito de uma seita de terraplanistas que parece viver antes de Copérnico e Galileu, ou de uma horda de apaixonados em ufologia que profetiza o iminente apocalipse causado pela invasão alienígena.

Analisando a dissonância.

Na música, o elemento dissonante é aquele que perturba a harmonia, que viola as leis da consonância. É dissonante a nota que não participa da escala, que é estranha ao acorde. O músico erra ao tocá-la. É o elemento que não concorda com o todo. Dissonante é sinônimo daquilo “que destoa”, que é “desarmônico” e “discordante”. O acorde dissonante é aquele cujos sons não se dão bem entre si, aquele que stressa o maestro que desejaria sua orquestra plenamente ressonante com todos os instrumentos equilibrados e harmônicos.

Ponto importante : dissonância tem a ver com desequilíbrio, com uma incapacidade de estar em consonância com o conjunto. E boa parte da arte humana, do nosso fazer coletivo, envolve um esforço de harmonização. Uma ânsia de equilíbrio, é claro que frequentemente frustrada neste mundo altamente desequilibrado pelas mudanças climáticas, pela injusta distribuição de capitais e recursos, pelo caos informacional e pela sexta extinção em massa da biodiversidade planetária – desta vez, causada pelo Antropoceno. Sonhamos em habitar um paraíso de Harmonia e quase sempre e em quase todo lugar, hoje em dia, só conseguimos habitar num inferno de Dissonância.

Na sociedade, dissonante pode ser chamada a conduta ou fala que no espaço público ressoa como rebeldia, heresia, atentado às normas vigentes ou ao status quo. Dissonantes são os sujeitos que não aceitam normas, que contestam a sacralidade e liberdade religiosa, que des-mitificam autoridades,negam a ciência etc. O dissidente dissonante é aquele que desequilibra o corpo social que pretende equilibrar-se na solidez do uniforme.

Como a dissonância cognitiva explica a desordem brasileira.

 

No Brasil, “Ordem e Progresso” pode até estar estampado na bandeira, como mote positivista amputado (Comte teria adicionado o Amor e composto uma tríade…). Mas a desordem e o retrocesso reinam incontestes no último período histórico que atravessa a pandemia sob o o governo que se aproxima do fim.

Chegamos próximos a 2023 e tudo parece estar em desequilíbrio. Há dissonância socioambiental profunda e muito disseminada. Para além dos desânimos existenciais (depressões), o stress e o burnout estão cada vez mais instalados – ou seja, a dissonância parece ser a substância social em que estamos mergulhados. A dissonância como fenômeno concreto, coletivo, serve aqui para emblematizar nossa fratura, nossa incapacidade de fazer coro em consenso. Falar em dissonância é essencial para nossa compreensão de nosso tempo-espaço contemporâneo.

A fonte originária do termo é de Leon Festinger (1919 – 1989). Ele e sua equipe quiseram compreender um culto de Chicago obcecado por OVNIs e Apocalipse. Os psicólogos buscaram avaliar o que ocorreu após o grupo ter profetizado o fim do mundo devido a uma hecatombe causada por aliens – o que obviamente não aconteceu. Como eles se viam depois do fato não consumado > O trabalho é descrito no livro When Prophecy Fails escrito por Leon Festinger, Henry Riecken, e Stanley Schachter.

O fato de que as profecias falham coloca muitas vezes um certo sistema de crenças em estado de pane. Um culto de ufólogos que espera uma invasão alienígena que acarretará a aniquilação de toda a vida na Terra, com data especifica para ocorrer, certamente se sentirá decepcionado ao constatar que todo o processo era uma uma falsidade . O que decorre é que para muitos não acontece necessariamente o abandono da crença prévia, alguma coisa cognitiva tenta racionalizar o ocorrido.

A psicologia da dissonância cognitiva entra em cena para analisar como agem, pensam e sentem os crentes nestas profecias, sobretudo como lidaram com a decepção, com o” input” de uma nova informação que diz “você estava errado”. É deste “caldo cultural” que emerge esta importante teoria da psicologia social com a publicação do livro de Fastinger de 1957: A Theory of Cognitive Dissonance (Ed. Stanford University).

A teoria da dissonância cognitiva parte de 3 premissas :   a cognição (crenças , atitudes) pode estar relacionada com outra crenças. Crenças relacionadas podem ser contraditórias (base para o surgimento da dissonância). O humano é motivado para reduzir a dissonância e manter seu balanço cognitivo.

Quando o grau de dissonância for grande, e quando importantes crenças estão envolvidas, o sujeito se torna altamente motivado para reduzir a dissonância. Festinger sugeriu que nós fazemos isso por trocar um dos credos dissonantes ou atitudes para que isto permita a consistência com a cognição relacionada.

Ao conceito da dissonância cognitiva de Festinger pode ser acrescentada a perspectiva coletiva, que está associada à capacidade da produção de conteúdo das redes sociais. Dissonância cognitiva é um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos, ocorre sempre que há uma distância entre aquilo em que acreditamos e a maneira pela qual nos comportamos. Não há ser humano que não viva com certo grau de dissonância cognitiva.

Diz Festinger que, quando essa dissonância cognitiva começa a incomodar, torna-se gritante e muito óbvia, há mecanismos para reduzir a dissonância cognitiva. São dois mecanismos principais : o famoso exemplo do médico que fuma, ninguém melhor do que ele saberá que o tabagismo faz mal à saúde. Então, o que faz ele? Ou ele recusa fontes que demonstram cientificamente que o tabagismo é maléfico, ou, pelo contrário, só busca fontes que amenizam essa informação. Ou você recusa informação que contraria a sua crença, ou você busca informação que reforça o que você já pensava.

Festinger diz que sempre agimos para reduzir a dissonância cognitiva, não para aumentá-la ou cristalizá-la. Então, o que está acontecendo com o bolsonarismo é a cristalização, a consolidação de um Brasil paralelo.”


quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

idéias sobre a verdade

 

Suponha que você esteja conversando com alguns amigos sobre a vida após a morte.

Sua opinião é que os humanos são criaturas puramente físicas, o que significa que não há alma  ou qualquer outra parte de nós que seja capaz de sobreviver à morte de nossos corpos.

Seu amigo indiano tem uma visão diferente, que está enraizada no hinduísmo. Sua opinião é que, em última análise, cada ser humano é “atman” , um verdadeiro eu ou alma. Atman renasce em diferentes tipos de corpos físicos, dependendo do carma de uma pessoa durante sua vida. Eventualmente,” atman” pode ser liberado deste ciclo de renascimento. Se for, “atman” é realizado em brahman e atinge moksha , o estado final de iluminação e liberação.

Seu outro amigo é católico. Sua visão é que cada ser humano tem uma alma não física que sobrevive à morte de seu corpo físico e então se reúne com esse corpo no Dia do Julgamento. Ao contrário do indiano,ele não acha que as almas podem ser reencarnadas e, ao contrário de você, ele não acredita que a morte biológica seja o fim de nossa existência. Em vez disso, ele acredita que existe apenas um corpo que cada alma pode habitar e que, após a morte, a alma de uma pessoa acabará por habitar o mesmo corpo que habitou na Terra.

Alguem então pergunta : por que vocês acham que suas opiniões sobre sobreviver à morte são verdadeiras ?

Você diz que, com base nas evidências científicas atuais, acha que sua visão representa a maneira como o mundo é: os humanos são puramente físicos e isso significa que a morte é definitiva. O indiano explica que acha que sua visão é verdadeira porque se encaixa bem com as outras visões que ele tem: se ele desistisse de sua visão sobre a morte, sua visão de mundo geral seria menos coerente. O católico diz que acha que seu ponto de vista é verdadeiro porque manter esse ponto de vista ajudou gerações de católicos (bem como protestantes, judeus e muçulmanos) a viver uma vida espiritualmente satisfatória: uma visão que funciona tão bem deve ter algo a seu favor.

O desentendimento provavelmente resultará em vários fatores, incluindo suas origens culturais e o que dá a cada um de vocês um senso de significado à medida que avança na vida. Suas respostas a perguntas sobre a imortalidade são afetadas por suas opiniões básicas sobre o que é necessário para declarações de convicção religiosa serem verdadeiras ou falsas. Quando isso se torna aparente para vocês surge uma outra questão: o que é preciso para uma declaração de convicção religiosa ser verdadeira, em vez de falsa? Esta é uma pergunta desafiadora, é claro, e abordá-la exigirá uma reflexão cuidadosa sobre a verdade.

É possível discutir ideias sobre a verdade de uma forma filosoficamente fundamentada. Os filósofos têm lutado com questões sobre a verdade por um longo tempo. Debates sobre a verdade ocorreram e continuam a ocorrer nas tradições filosóficas de todo o mundo. Eles impactam muitos outros debates e também se cruzam de maneiras fascinantes com a pesquisa científica contemporânea. Compreender ideias filosóficas sobre a verdade não necessariamente fornecerá uma receita direta de como chegar a crenças verdadeiras. No entanto, ajudará a pensar com mais clareza sobre o relacionamento dos humanos com o mundo que habitamos, as semelhanças e diferenças em nossas formas de representar o mundo e por que importa se nossas crenças são verdadeiras ou falsas.

1.       Antes de aceitar ou descartar a ideia de verdade objetiva, pergunte a si mesmo o que a "verdade objetiva" deveria ser .

 

Pode parecer corajoso e visionário – ou talvez irremediavelmente imaturo – declarar que você simplesmente não acredita na verdade objetiva. Antes de ponderar sobre esta questão, vale a pena pensar cuidadosamente sobre o que a 'verdade objetiva' deveria ser em primeiro lugar. Aqui estão algumas coisas que as pessoas geralmente querem dizer quando dizem que a verdade é objetiva:

Crenças verdadeiras escolhem fatos que existem independentemente de nossas crenças sobre eles.

Essa ideia é reconhecidamente questionável quando aplicada a certas crenças verdadeiras, como a crença de que o ouro é mais caro que o bronze. Com certeza, essa crença revela um fato: o fato dovalor maior do ouro. Mas se ninguém jamais tivesse acreditado que isso é um fato, então não seria um fato. Os preços dos objetos são determinados unicamente pelas convenções sociais humanas, que geralmente são ditadas pelos níveis de oferta e demanda. Portanto, embora a crença de que o ouro seja mais caro seja verdadeira, não é uma verdade objetiva.

Em contraste, a ideia de que a verdade é objetiva nesse sentido é muito plausível quando aplicada a outras crenças. Considere a crença de que Júpiter é maior que Vênus. Essa crença também destaca um fato: o fato de Júpiter ser maior que Vênus. Mesmo que ninguém acreditasse que isso é um fato, ainda assim seria. Portanto, a crença de que Júpiter é maior que Vênus é uma verdade objetiva.

Em um desacordo sobre o que é verdadeiro, no máximo uma pessoa pode estar correta.

Mais uma vez, essa ideia é definitivamente questionável quando aplicada a certos desacordos. Você e eu podemos discordar sobre se a música dos Beatles é esteticamente superior à dos Rolling Stones. Nesse caso, parece que nós dois podemos estar corretos. Certas características da música podem ressoar fortemente em mim, mas não em você. Se nossos gostos musicais diferem dessa maneira, parece perfeitamente correto mantermos as opiniões que temos.

No entanto, a ideia de que a verdade é objetiva nesse sentido é muito plausível quando aplicada a outras discordâncias.

A mudança climática antropogênica está ocorrendo ou não está ocorrendo ?. Se você acha que está ocorrendo e eu acho que não, então apenas um de nós pode estar correto. Qualquer um de nós que tenha uma crença verdadeira tem uma crença objetivamente verdadeira nesse sentido.

Se você ainda desconfia da ideia de que a verdade é objetiva, aqui está outra coisa que você pode ter em mente: nossas crenças são tendenciosas, o que significa que nunca podemos formar crenças totalmente objetivas sobre o que é verdadeiro.

 Nossas crenças podem ser afetadas por vieses cognitivos como a heurística de disponibilidade, viés de confirmação ou o efeito Dunning-Kruger . No entanto, isso nos diz apenas que nossas crenças não são totalmente objetivas, pois podem ser distorcidas por preconceitos. Não se segue disso que a verdade não seja objetiva.

Se muitas ou talvez a maioria de nossas crenças são tendenciosas, isso significa que nossas crenças são guias imperfeitos para o que é verdadeiro. Isso não significa que nossos preconceitos de alguma forma determinam o que é ou não verdadeiro. Considere uma analogia: um barômetro com defeito é um guia imperfeito para a pressão do ar atual, mas os defeitos no barômetro não determinam qual é a pressão do ar. Então, quando descobrimos que nossas crenças são tendenciosas, uma resposta sensata é tentar melhorá-las mitigando os efeitos dos vieses cognitivos, da mesma forma que tentamos consertar um barômetro defeituoso. Se pudermos fazer isso, então é razoável esperar que melhoremos, provavelmente aos trancos e barrancos, em descobrir o que é e o que não é verdade.

 

2.       As ideias de 'sua verdade' e 'minha verdade' podem ser autodestrutivas e difíceis de explicar

 

A verdade não pode ser absoluta e relativa. Para resolver essa tensão devemos pensar sobre o que significaria a verdade ser relativa ou absoluta.

O relativismo da verdade é uma visão sobre o que torna as crenças verdadeiras ou falsas. De acordo com o relativista : “ minhas crenças são verdadeiras pela minha perspectiva, e as suas são verdadeiras pela sua perspectiva”. Os relativistas negam que as crenças sejam verdadeiras por uma realidade independente de suas perspectivas. Isso significa que eles negam que a verdade seja objetiva.

Eles também negam que a verdade seja absoluta . Se a verdade é absoluta, então suas crenças podem ser falsas. Sustentam que uma crença pode ser apenas verdadeira ou falsa, em relação a uma perspectiva particular.A verdade pode ser relativa a perspectivas, ou pode ser absoluta, mas não pode ser ambas.

Um problema sério com o relativismo da verdade é que ele parece ser autodestrutivo. Um relativista da verdade endossa o relativismo da verdade. Então, eles presumivelmente acreditam que o relativismo da verdade é verdadeiro. Mas os relativistas pensam que “nada é verdade”, ou não existe a verdade absoluta. Ao endossar o relativismo da verdade, então, os relativistas parecem ir contra o próprio relativismo.

O relativista pode responder sugerindo que não está afirmando que o relativismo da verdade é absolutamente verdadeiro, mas apenas que é verdadeiro em relação à sua perspectiva. Esse movimento parece evitar o problema, mas ao custo de tornar o relativismo filosoficamente desinteressante. Dizer que o relativismo é verdadeiro em relação à perspectiva do relativista é apenas dizer que o relativista é um relativista. Mas nós já sabiamos disso. Então, se isso é tudo o que o relativista está dizendo, então a resposta apropriada é: 'Sim, claro, mas estou interessado na natureza da verdade, não apenas em aprender sobre suas opiniões sobre a verdade.'

O relativismo da verdade também convida a algumas questões desafiadoras que tornam difícil dizer qual é, exatamente, a visão. Aqui estão alguns deles:

Será que, enquanto algumas crenças são relativamente verdadeiras, outras são absolutamente verdadeiras? Como saber quais são quais? Por exemplo, e as crenças morais, biológicas, políticas etc ?

O que é uma perspectiva? Frequentemente descrevemos perspectivas usando metáforas como 'visão' ou 'ponto de vista'. Mas o que é uma perspectiva, literalmente falando?

Algumas perspectivas são melhores que outras? Ao avaliar vinhos, parece razoável privilegiar a perspectiva de um crítico de vinhos sobre a de um amador que experimentou apenas alguns vinhos. Portanto, mesmo que todas as crenças do amador sobre o vinho sejam verdadeiras, em relação à sua perspectiva, ainda é possível para ele melhorar sua perspectiva aprendendo mais sobre o vinho. O mesmo ponto parece se aplicar a perspectivas sobre comida, comédia, música, cinema, pintura, moralidade, política e assim por diante. Isso significa que existem verdades absolutas sobre quais perspectivas são melhores ou piores do que outras perspectivas?

A verdade pode ser um dos conceitos mais básicos que temos.

Os seres humanos têm muitos conceitos. Alguns de nossos conceitos – como os conceitos de pessoa, grupo e música – são mais básicos do que outros – como o conceito de uma orquestra sinfônica. Adquirimos os conceitos menos básicos usando os conceitos mais básicos dos quais eles dependem.

Alguns de nossos conceitos parecem ser primitivos , no sentido de que não dependem de nenhum outro conceito. Esses conceitos primitivos são aqueles que alguém deve ter para pensar sobre qualquer coisa. Pense, por exemplo, sobre o conceito de existência. É difícil ver como poderíamos entender o mundo se não pensássemos em certas coisas como existentes e outras como não existentes. Pensar em termos de existência e não existência parece ser uma característica básica do próprio pensamento. O mesmo vale para os conceitos de objeto, igualdade e diferença, lugar, tempo e talvez também para o conceito de verdade.

A ideia de que o conceito de verdade é primitivo surgiu ao longo da história da filosofia analítica. Foi defendido por filósofos eminentes como GE Moore , Bertrand Russell , Gottlob Frege e Donald Davidson . Também pode ter sido sustentado, pelo menos implicitamente, pelo antigo filósofo chinês Wang Chong..Uma das razões pelas quais essa ideia é tão atraente é que, sempre que os filósofos tentam definir a verdade, eles se deparam com problemas espinhosos que provavelmente ainda precisam ser resolvidos. Esse padrão de falha não seria surpreendente se a verdade fosse um conceito primitivo. Uma definição de verdade tenta definir a verdade em termos de conceitos mais básicos e, se a verdade é tão básica quanto possível, simplesmente não existem tais conceitos. Não é de admirar, então, que as definições de verdade sejam insuficientes.

A ideia de que a verdade é um conceito primitivo também é empolgante porque é apoiada por 40 anos de descobertas na psicologia do desenvolvimento. Essas descobertas estão relacionadas à nossa capacidade de atribuir crenças falsas a outras pessoas.. Nas últimas quatro décadas, os psicólogos descobriram que temos essa habilidade bem cedo no desenvolvimento – talvez já aos 13 meses.

Uma explicação razoável para esse fato impressionante envolve a ideia de que a verdade é um conceito primitivo. É assim: o conceito de verdade é um dos primeiros conceitos que adquirimos e, pouco tempo depois, adquirimos o conceito de falsidade ao combinar o conceito de verdade com o conceito de negação (pois ser falso é, pelo menos aproximadamente , para não ser verdade). Em seguida, usamos o conceito de falsidade para atribuir crenças falsas a outras pessoas.

3.       Alguém de outra cultura pode pensar de forma diferente sobre a verdade do que você

 

Mesmo que a verdade seja um conceito fundamental, isso não garante que todos tenhamos as mesmas crenças sobre o que é a verdade e por que ela é importante. Quando pensamos sobre a verdade, precisamos ter em mente que nossas crenças sobre a verdade – mesmo aquelas que parecem óbvias e inquestionáveis ​​– podem não ser compartilhadas por pessoas de outras culturas. Se ignorarmos esse fato, será mais difícil nos comunicarmos e entendermos pessoas de outras culturas, o que pode ser desastroso em um mundo tão interconectado como o nosso. O resultado é este: sua cultura e os idiomas que você fala podem afetar significativamente a maneira como você pensa sobre a verdade. Isso significa que, quando refletimos sobre o que é a verdade, devemos ser sensíveis às diferentes representações da verdade nas várias culturas do mundo.

 

4.       A natureza da verdade pode ser mais simples do que você pensa

 

Pensando na pergunta 'O que é a verdade?' pode nos deixar com a impressão de que a pergunta é simplesmente grande demais para responder. Mas aqui está algo a considerar: e se a natureza da verdade for realmente muito simples? Esta é uma ideia que foi apresentada pelos deflacionistas sobre a verdade. Como o nome sugere, os deflacionistas querem liberar um pouco do ar quente dos debates filosóficos sobre a verdade.

Aqui está uma ideia de senso comum: afirmações verdadeiras nos dizem como é o mundo. Essa ideia pode ser representada de maneira diferente em diferentes idiomas, mas, por mais que seja articulada, parece ser uma verdade fundamental sobre a verdade. Quando consideramos essa ideia, nossos impulsos filosóficos podem nos levar a fazer perguntas metafísicas como 'O que é uma afirmação?' 'O que é o mundo?' e 'O que é uma pretensão de nos dizer como é o mundo?' No entanto, os deflacionistas insistem que realmente não precisamos fazer essas perguntas para ter um entendimento perfeitamente útil da verdade. Podemos expressar ideias de senso comum sobre a verdade em linguagem clara e simples, de modo que elas estejam prontas para serem usadas imediatamente .

Considere um exemplo. Você ouve alguém afirmar que a ivermectina pode tratar com sucesso a COVID-19 e está se perguntando se essa afirmação é verdadeira. Como você deve descobrir isso? Resposta: saiba se,de fato, a ivermectina pode funcionar. Se puder, sua afirmação é verdadeira, e se não puder, sua afirmação é falsa.

Como saber se a ivermectina pode tratar com sucesso a COVID-19? Resposta: use as melhores fontes de evidências disponíveis, pois elas serão os melhores guias de como é o mundo. Nesse caso, as melhores fontes de evidência são estudos médicos revisados ​​por pares facilmente acessíveis online . Fontes ruins de evidências incluem boatos ou especulações nas mídias sociais e seus próprios sentimentos ou palpites, uma vez que esses são guias não confiáveis ​​de como é o mundo. Isso significa que, se você estiver interessado na verdade, deve simplesmente ignorar essas evidências inúteis (mesmo que chamem sua atenção com mais facilidade) e seguir os melhores guias disponíveis.

 

Saber que não sabemos é um grande avanço.

Infelizmente , um surto de verdade traria a qualquer cidade uma epidemia de confusão . Evoluímos para constatar que uma verdade objetiva é de difícil consenso. Precisamos indagar o quanto de verdade suportamos para viver em sociedade.

Para Blaise Pascal  a vida humana não passa de uma ilusão perpétua; não se faz mais do que se entre-enfganar e se entreadular. A verdade pode ser insuportável para muitos.