Quando falamos em eficácia de uma vacina o que estamos medindo? Qual o significado de 50% ou 90% de eficácia? Importante começar discutindo as fases de produção de uma vacina.
Primeiro, são feitos testes em animais. A vacina é aplicada e comparada com placebo, geralmente uma solução salina. Após cerca de um mês medimos se a vacina foi capaz de provocar uma resposta imune nos animais, uma produção de anticorpos e outras células protetoras. Então inocula-se nos animais o vírus estudados. Observamos para ver quantos ficam doentes.Esta fase só pode ser feito em animais. Por questões éticas, quase nunca é feito em humanos.
Se a vacina der um bom resultado nos animais, mostrando que foi capaz de protegê-los contra a doença, começam os testes em humanos. Daí temos 4 fases.
Na Fase 1, aplicamos a vacina num grupo pequeno de pessoas, apenas para ver se é segura: se ninguém tem efeitos adversos graves ou fica doente.
Na Fase 2, vacinamos um grupo de voluntários um pouco maior, e medimos, como nos animais, se a vacina consegue provocar uma resposta imune.
Se a vacina for bem nas Fases 1 e 2, ela pode seguir para a Fase 3. Este é o teste de eficácia.
É importante frisar que os resultados de Fase 2 – quando vemos se a vacina é capaz de ativar o sistema imune – não contam como prova de eficácia. Porque não basta despertar a resposta imune, é preciso ver se essa resposta dá mesmo conta da doença. E isso só fica claro na Fase 3.
Na fase 3, vamos dividir as pessoas em dois grupos, um que recebe a vacina, e outro, um placebo. Mas agora não podemos mais inocular o vírus, então teremos que esperar que as pessoas fiquem se exponham naturalmente, no decorrer de suas atividades normais. Se a vacina for boa, deverá haver muito mais casos da doença no grupo placebo e, idealmente, nenhum no grupo vacinado (essa situação ideal é extremamente rara).
Cada vez que um voluntário é infectado, contamos um “evento”. Sabemos que precisamos de um determinado número de eventos para atingir o poder estatístico adequado para fazer uma boa comparação entre os grupos, isto é, para afirmar com segurança que a diferença no número de eventos entre um grupo e outro é mesmo mérito da vacina, e não só um acaso.
Exemplo :
No teste de Fase 3 da Pfizer, por exemplo, 42 mil pessoas participaram do estudo, sendo metade com a vacina, e metade com placebo. O número de eventos necessário foi estabelecido em 164. Quando o teste chegou em 170 eventos – pessoas infectadas –, a empresa fez a comparação entre os grupos, e constatou que dos 170, apenas oito estavam no grupo vacinado, e 162, no grupo placebo.
Isso resultou em uma eficácia de 95%, simplesmente porque 154 (a diferença entre o total de doentes nos dois grupos, 162 num e oito no outro) são 95% de 162 (o total de doentes no grupo não-vacinado).
A lógica é que, sem a vacina, poderíamos esperar que o número de eventos (pessoas doentes) nos dois grupos acabasse sendo igual, então a diferença entre os números é o indicador da eficácia. Portanto, a vacina impediu que 154 pessoas do grupo imunizado pegassem COVID-19. Ela evitou 95% dos casos que seriam esperados, caso o grupo não tivesse sido vacinado.
Isso significa que podemos esperar que a vacina proteja 95 pessoas de cada cem que receberem o imunizante. Uma vacina de 50% de eficácia protege 50 pessoas em cem. Então a vacina de 95% é melhor, certo? Não tem por que usar uma de apenas 50%.
Em teoria, sim, uma eficácia maior é sempre mais desejável. Mas isso não quer dizer que devemos descartar vacinas com eficácia menor. A eficácia é calculada a partir da capacidade da vacina em prevenir a doença. Os eventos consideraram qualquer pessoa com sintomas, que teve seu diagnóstico confirmado para COVID-19. Esse é o chamado desfecho primário do teste.
Algumas vacinas estudaram também alguns desfechos secundários: a capacidade de proteger contra doença grave, e a capacidade de evitar infecção, ou seja, impedir mesmo infecções assintomáticas. Esses desfechos não são secundários por acaso. Doença grave é mais rara, vai aparecer, mas em menor número, e assim o poder estatístico dessa análise fica prejudicada. Já assintomáticos, para serem detectados, precisam de um rastreamento geral. É inviável fazer isso em 40 mil pessoas, então as empresas fazem um recorte menor, o que também implica menor poder estatístico.
Ainda assim, esses desfechos secundários podem trazer informações interessantes. Por exemplo, para a vacina Moderna, os trinta casos de doença grave que apareceram nos testes clínicos estavam no grupo placebo, nenhum no grupo vacinado. Isso sugere uma boa proteção contra doença grave, o que pode evitar hospitalização e morte.
Isso já muda a forma como encaramos a proteção que as vacinas podem gerar na sociedade. Podemos dizer, ok, uma vacina de 50% de eficácia não é tão boa quanto a de 95%, mas tem o potencial de prevenir doença grave e morte. Ou seja, mesmo que as pessoas fiquem doentes, a chance de desenvolver um quadro grave e morrer cai significativamente. Isso já é um sonho de consumo: transformar a COVID-19, de fato, em uma gripezinha. Uma gripezinha é manejável. Além disso, mesmo uma vacina de 50% vai diminuir o número de suscetíveis, e fazer com que a transmissão na comunidade seja reduzida, que é o que estamos tentando fazer desde março com as medidas de quarentena, e até agora sem muito sucesso.
Outro desfecho secundário avaliado por algumas empresas foi a capacidade de prevenir infecções assintomáticas. Novamente, a Moderna apresenta resultados interessantes, mostrando um número maior de assintomáticos no grupo placebo (38), quando comparado ao grupo vacinado (14), após a primeira dose, o que sugere que a vacina já pode ajudar a reduzir contágio, mesmo após só uma dose..
Além disso, outros fatores como a capacidade de importação, produção, transporte, armazenamento, cadeia de frio, tudo isso precisa ser considerado na estratégia de vacinação. O que precisamos, urgente, é de uma vacina que reduza hospitalizações e mortes. Não precisa ser a vacina perfeita, precisa permitir que a pandemia seja manejável.
E para tornar a pandemia manejável, precisamos que a população se vacine. Uma vacina só é tão boa quanto a adesão popular a ela. De nada adianta uma vacina de 95% de eficácia se houver ampla rejeição entre o público. Uma vacina de 50% ou 60% de eficácia, com ampla cobertura, e capaz de reduzir casos graves, será extremamente benéfica para reduzir a pandemia no Brasil.
Uma vez aprovada para uso na população, a vacina segue sendo observada – um efeito colateral que só atinge uma pessoa em um milhão, por exemplo, não tem como ser notado nas Fases 1, 2 e 3. Essa vigilância contínua é às vezes chamada de “Fase 4”.
Também é só depois que a vacina começa a ser aplicada na população em geral que conseguimos medir sua efetividade, isto é, sua capacidade real de evitar a doença, fora do ambiente mais controlado dos testes, e os benefícios que traz para a saúde pública em termos de redução dos gastos com hospitais, etc.