domingo, 18 de setembro de 2022

quando a normalidade supera a cautela

 

O filósofo Isaiah Berlin passou grande parte de sua vida argumentando que não podemos ter tudo. Em qualquer temática de nossas vidas, valores valiosos invariavelmente se chocam: liberdade e igualdade, justiça e misericórdia, imparcialidade e amor. Tais contrapontos são “um elemento intrínseco e irremovível na vida humana”, e a realização de alguns fins “deve envolver inevitavelmente o sacrifício de outros”.

Mas ele também argumentou que podemos suavizar o impacto desse pluralismo de valores. Para tanto , nosso objetivo deve ser “manter um equilíbrio que impeça a ocorrência de situações desesperadoras, de escolhas intoleráveis ​​– esse é o primeiro requisito para uma sociedade decente”.

Durante a pandemia fomos colocados à prova sobre o que escreve Berlin. Podemos analisar nossas condutas e suas repercussões de vários pontos. A educação por exemplo : um tópico que nos fez enfrentar uma situação sem precedentes.Em todo mundo as crianças vêm retomando suas atividades sem grandes restrições ( sem uso de máscaras, protocolos de distanciamento físico, quarentenas obrigatórias ou aprendizado remoto.)Isso tudo ocorrendo quando se registram danos talvez irreparáveis na sua educação motivados pelo período de ausência às aulas. Parte disso foi inevitável – o resultado de um vírus inesperado. Mas nossas escolhas importavam. No inicio de 2020, quase todas as escolass mudaram para o aprendizado remoto, na tentativa de mitigar a pior das situações desesperadoras – hospitais superlotados, ventiladores racionados, mortes em massa. Depois de codificada em parte a situação, houve uma grande variação em quanto tempo e com que frequência as escolas fechariam suas portas. O resultado ficou claro: quanto mais tempo os alunos passavam fora da escola, mais sua educação sofria. De acordo com uma análise de Harvard, dos Institutos Americanos de Pesquisa e da NWEA, as crianças em “escolas de alta pobreza” que passaram a maior parte de 2021 aprendendo remotamente perderam mais de meio ano de instrução. Os efeitos foram mais devastadores para crianças negras e hispânicas.

Essa foi uma troca que escolhemos – hipotecar a qualidade da educação em um esforço para proteger pais, professores, comunidades e (em menor grau) as próprias crianças do coronavírus. Agora,a maioria dos países parece ter chegado a outro julgamento: o valor da normalidade supera o da cautela. Parte dessa mudança reflete uma redução declarada no número de vítimas do vírus. Com vacinas, reforços, antivirais, anticorpos monoclonais e boa parte da população já infectada, a taxa de letalidade da covid caiu significativamente, e as UTIs antes repletas de pacientes com coronavírus agora cuidam de uma variedade de doenças pré-pandemia . Mas muito disso simplesmente reflete a passagem do tempo – uma ameaça outrora nova desaparecendo em segundo plano.

A covid parece que se tornará apenas mais uma das muitas doenças que afligem as pessoas – uma circunstância que diz mais sobre nossas escolhas sociais e políticas do que sobre nossa realidade médica. Os EUA , por exemplo, continuam a registrar mais de dois mil óbitos pela doença por semana; são mais de sessenta mil novos casos todos os dias, e estes números podem ser subdimensionados. De acordo com o CDC ( Centro de Controle e Prevenção de Doenças), mais da metade do país tem níveis altos ou moderados de propagação viral, e muitos especialistas antecipam outro surto de covid neste inverno, possivelmente ao lado de um surto importante de gripe. (A Austrália, que geralmente atua como um indicador para os EUA, acabou de ter sua pior temporada de gripe em cinco anos.).

Enquanto isso, é cada vez mais evidente que as infecções podem ter efeitos duradouros na saúde e na economia,e muitos idosos e imunocomprometidos permanecem em risco de doenças graves, mesmo após a imunização.

No mês passado, a Food and Drug Administration autorizou um redesenho das vacinas covid . Os novos reforços “bivalentes” visam tanto a cepa original quanto as subvariantes Omicron  BA.4 e BA.5. As vacinas atualizadas deveriam, teoricamente, oferecer melhor proteção contra as versões do vírus que circulam atualmente, mas como foram autorizadas com base em dados em camundongos, em vez de em humanos – uma decisão que prioriza a velocidade sobre a certeza – não está claro quanto benefício fornecerá no mundo real.

Durante grande parte da pandemia, o discurso da covid assumiu uma polaridade política gritante. Os conservadores apresentaram argumentos enraizados na liberdade e na autonomia; os liberais centravam-se na equidade na saúde e no bem-estar comunitário. Para melhor ou pior, os dois campos parecem ter se unido em torno de um entendimento compartilhado: o coronavírus está aqui para ficar e cabe aos indivíduos decidir como viver com ele. Mas, ainda assim, não temos verdades universais. O pluralismo de valores que Isaiah Berlin identificou nas sociedades está agora perturbando os indivíduos. Em alguns dias, em alguns eventos, para algumas pessoas, os riscos parecem valer a pena. Em outros momentos, não. Essas tensões internas são inevitáveis ​​— parte integrante de nossos próprios equilíbrios precários.

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