O filósofo Isaiah Berlin passou grande parte de sua vida
argumentando que não podemos ter tudo. Em qualquer temática de nossas vidas,
valores valiosos invariavelmente se chocam: liberdade e igualdade, justiça e
misericórdia, imparcialidade e amor. Tais contrapontos são “um elemento
intrínseco e irremovível na vida humana”, e a realização de alguns fins “deve
envolver inevitavelmente o sacrifício de outros”.
Mas ele também argumentou que podemos suavizar o impacto
desse pluralismo de valores. Para tanto , nosso objetivo deve ser “manter um
equilíbrio que impeça a ocorrência de situações desesperadoras, de escolhas
intoleráveis – esse é o primeiro requisito para uma sociedade decente”.
Durante a pandemia fomos colocados à prova sobre o que
escreve Berlin. Podemos analisar nossas condutas e suas repercussões de vários
pontos. A educação por exemplo : um tópico que nos fez enfrentar uma situação
sem precedentes.Em todo mundo as crianças vêm retomando suas atividades sem
grandes restrições ( sem uso de máscaras, protocolos de distanciamento físico,
quarentenas obrigatórias ou aprendizado remoto.)Isso tudo ocorrendo quando se
registram danos talvez irreparáveis na sua educação motivados pelo período de
ausência às aulas. Parte disso foi inevitável – o resultado de um vírus inesperado.
Mas nossas escolhas importavam. No inicio de 2020, quase todas as escolass
mudaram para o aprendizado remoto, na tentativa de mitigar a pior das situações
desesperadoras – hospitais superlotados, ventiladores racionados, mortes em
massa. Depois de codificada em parte a situação, houve uma grande variação em
quanto tempo e com que frequência as escolas fechariam suas portas. O resultado
ficou claro: quanto mais tempo os alunos passavam fora da escola, mais sua
educação sofria. De acordo com uma análise de Harvard, dos Institutos
Americanos de Pesquisa e da NWEA, as crianças em “escolas de alta pobreza” que
passaram a maior parte de 2021 aprendendo remotamente perderam mais de meio ano
de instrução. Os efeitos foram mais devastadores para crianças negras e
hispânicas.
Essa foi uma troca que escolhemos – hipotecar a qualidade da
educação em um esforço para proteger pais, professores, comunidades e (em menor
grau) as próprias crianças do coronavírus. Agora,a maioria dos países parece
ter chegado a outro julgamento: o valor da normalidade supera o da cautela. Parte
dessa mudança reflete uma redução declarada no número de vítimas do vírus. Com
vacinas, reforços, antivirais, anticorpos monoclonais e boa parte da população
já infectada, a taxa de letalidade da covid caiu significativamente, e as UTIs
antes repletas de pacientes com coronavírus agora cuidam de uma variedade de
doenças pré-pandemia . Mas muito disso simplesmente reflete a passagem do tempo
– uma ameaça outrora nova desaparecendo em segundo plano.
A covid parece que se tornará apenas mais uma das muitas
doenças que afligem as pessoas – uma circunstância que diz mais sobre nossas
escolhas sociais e políticas do que sobre nossa realidade médica. Os EUA , por
exemplo, continuam a registrar mais de dois mil óbitos pela doença por semana;
são mais de sessenta mil novos casos todos os dias, e estes números podem ser
subdimensionados. De acordo com o CDC ( Centro de Controle e Prevenção de
Doenças), mais da metade do país tem níveis altos ou moderados de propagação
viral, e muitos especialistas antecipam outro surto de covid neste inverno,
possivelmente ao lado de um surto importante de gripe. (A Austrália, que
geralmente atua como um indicador para os EUA, acabou de ter sua pior temporada
de gripe em cinco anos.).
Enquanto isso, é cada vez mais evidente que as infecções
podem ter efeitos duradouros na saúde e na economia,e muitos idosos e
imunocomprometidos permanecem em risco de doenças graves, mesmo após a
imunização.
No mês passado, a Food and Drug Administration autorizou um
redesenho das vacinas covid . Os novos reforços “bivalentes” visam tanto a cepa
original quanto as subvariantes Omicron BA.4 e BA.5. As vacinas atualizadas deveriam,
teoricamente, oferecer melhor proteção contra as versões do vírus que circulam
atualmente, mas como foram autorizadas com base em dados em camundongos, em vez
de em humanos – uma decisão que prioriza a velocidade sobre a certeza – não está
claro quanto benefício fornecerá no mundo real.
Durante grande parte da pandemia, o discurso da covid
assumiu uma polaridade política gritante. Os conservadores apresentaram
argumentos enraizados na liberdade e na autonomia; os liberais centravam-se na
equidade na saúde e no bem-estar comunitário. Para melhor ou pior, os dois
campos parecem ter se unido em torno de um entendimento compartilhado: o
coronavírus está aqui para ficar e cabe aos indivíduos decidir como viver com
ele. Mas, ainda assim, não temos verdades universais. O pluralismo de valores
que Isaiah Berlin identificou nas sociedades está agora perturbando os
indivíduos. Em alguns dias, em alguns eventos, para algumas pessoas, os riscos
parecem valer a pena. Em outros momentos, não. Essas tensões internas são
inevitáveis — parte integrante de nossos próprios equilíbrios precários. ♦
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