segunda-feira, 5 de junho de 2023

negacionismo

 

Em seu livro “ Si Auschwitz no es nada” (Se Auschwitz não é nada), a filósofa italiana Donatella Di Cesare examina as formas pelas quais o negacionismo tentou rejeitar a existência do Holocausto, invertendo a relação entre vítimas e resposáveis e produzindo a tese da “conspiração judaica mundial”. É uma boa forma de entendermos o negacionismo hoje associado à emergência ambiental ,à crise migratória, à pandemia etc.

Ensaio crítico e analítico, Se Auschwitz não é nada analisa as raízes profundas do negacionismo através de uma genealogia histórica em que mostra que os primeiros a praticar a negação foram os próprios autores dos crimes cometidos nos campos de concentração. Em seu ensaio, Di Cesare explica as maneiras pelas quais o negacionismo inverte os papéis, desenvolve uma história alternativa e instala dúvidas hiperbólicas e improdutivas com vistas a produzir confusões políticas.

Em primeiro lugar, devemos dizer que as democracias, na forma como as conhecemos hoje, especialmente as europeias, nasceram das cinzas de Auschwitz. Sobretudo na Itália e Alemanha, os dois países onde o fascismo e o nacional-socialismo se desenvolveram e sobre os quais recai a responsabilidade principal pelo extermínio do holocausto.

Os negacionistas e os revisionistas tentam alterar não só a história, mas também a própria memória democrática, bem como os mecanismos sobre os quais assentam as dúvidas que, apresentando-se como buscas de conhecimento, não constituem, rigorosamente falando, outra coisa que intervenções políticas destinadas a desacreditar a própria existência do ocorrido. Devemos lembrar, neste sentido, que os primeiros a negar o holocausto foram os próprios nazistas, motivo pelo qual as origens dessa negação encontram-se nos próprios autores do crime.

Claro que a questão do negacionismo ultrapassa a de um caso particular, e isso fica claro com uma série de fenômenos que presenciamos hoje, quando observamos a forma como diferentes atores, principalmente da extrema direita, favorecem novos processos ligados às teses dos negacionistas. Longe de constituir um fenômeno em declínio, o que ficou evidente é que o negacionismo está em plena ascensão. Tanto que se revelaram falsas as hipóteses levantadas há alguns anos, segundo as quais o negacionismo contemporâneo era limitado e reduzido e fazia parte de um processo de “regurgitação do passado”. Hoje podemos falar muito claramente de uma série de negacionismos, no plural, que abrangem diversas áreas  que incluem o negacionismo em relação às mudanças climáticas ou, por exemplo, o negacionismo da pandemia. Essas questões estão claramente ligadas à agenda e à filosofia das novas direitas e, portanto, estão no centro do debate público.

É possível traçar uma genealogia do negacionismo do holocausto que pode ser conectado a um negacionismo mais amplo que inclui os fenômenos atuais. De fato, o fio condutor do negacionismo – que constitui em si um fenômeno de propaganda política e, nesse sentido, diz respeito ao espaço público – é a rejeição de uma verdade considerada “oficial” e a inversão de papéis entre vítimas e carrascos. A primeira fase, que começou a se desenvolver entre 1944 e 1945, é de extrema importância, pois visa diretamente exonerar e inocentar o nacional-socialismo e o fascismo pelos crimes cometidos .Esse processo de exoneração se produz afirmando que as câmaras de gás e os crematórios, que constituem a particularidade do processo de industrialização da morte típico do nacional-socialismo, não existiram. E se esses elementos são rejeitados, um primeiro objetivo é alcançado: igualar o totalitarismo nazista ao totalitarismo soviético.

A tese dos “dois totalitarismos” parte do pressuposto de que os campos de concentração são semelhantes aos gulags, e ao fazê-lo, gera uma condição de igualdade que rebaixa a categoria de campos de concentração nos quais o que se produziu foi uma forma particular e um extermínio cruel vinculado a um processo de industrialização da morte. Não é por acaso que a extrema direita contemporânea se apoia nessa tese dos “dois totalitarismos” para afirmar que na Alemanha houve um “totalitarismo como os outros” e que, portanto, é coisa do passado, que não difere em nada de outros totalitarismos. Para a direita pós-totalitária contemporânea, a tese dos dois totalitarismos cai como uma luva.

A discussão sobre números é, obviamente, de capital importância e diz respeito a uma operação política muito específica. No caso do holocausto, o que os negacionistas fazem? Eles pedem o número concreto, o número preciso das pessoas que foram exterminadas. E perguntam, como se fosse um interrogatório inocente: “São realmente seis milhões?” E respondem: “Se não são, obviamente, você está mentindo”. O mesmo acontece em relação à situação dos desaparecidos na Argentina. Eles podem dizer: “São realmente 30.000? Porque se não forem, você está mentindo”. O problema é que está muito claro que não podemos saber o número exato, embora isso não mude, evidentemente, a gravidade do crime cometido. O ponto fundamental é que esse tipo de proposição instala uma dúvida, mas não uma dúvida construtiva, mas uma “dúvida hiperbólica”. Os negacionistas, que operam como “dobermans do pensamento”, não perguntam inocentemente um número, não têm uma dúvida real e uma vocação para conhecer mais e melhor um fenômeno. O que eles fazem, rigorosamente falando, é instalar uma dúvida que contém em si a afirmação negacionista. É uma dúvida propositalmente levantada para negar ou atenuar os acontecimentos. É uma dúvida, em suma, que se instala para destruir a memória e os aspectos substanciais da comunidade democrática construída, com muito trabalho, após a tragédia.

Mas esse tipo de pergunta pelos números exatos não apenas constitui uma forma de negação velada no quadro da dúvida, mas é a pedra sobre a qual se constrói, na sequência, uma história alternativa. E na construção desta história alternativa, são os familiares que sofreram perdas que são responsabilizados por mentir e enganar. Mais uma vez vemos como o negacionismo inverte os papéis e transforma as vítimas em responsáveis por um engano.

Para discutir com teses negacionistas, é preciso sair da esfera do debate dos especialistas. Segundo sua perspectiva, o fato de os historiadores participarem do debate público contestando as teses negacionistas não só não mudará essas teses, como poderá até contribuir para legitimá-las. Isso acontece porque muitos historiadores, e especialmente aqueles que são especialistas no holocausto, tenderam a considerar que, enquanto as posições negacionistas e revisionistas questionavam dados e situações que dizem respeito à história, sua necessidade e obrigação era responder-lhes a partir do conhecimento histórico. No entanto, e apesar da vontade dos próprios historiadores, as suas respostas não serviram para dissipar quaisquer dúvidas. Muito pelo contrário, essas respostas de especialistas produziram uma legitimação das teses revisionistas e negacionistas, porque deram validade a essas dúvidas, considerando que elas se limitavam à esfera da história. O problema é que, antes de responder a uma determinada pergunta, devemos nos perguntar, filosoficamente, sobre seu caráter. E isso é o que os historiadores não fizeram.

O problema é que as dúvidas dos negacionistas e revisionistas não visam conhecer mais um determinado fenômeno, esclarecer incógnitas e questões. Não se trata de pessoas que duvidam para conhecer mais e melhor um determinado processo, mas de pessoas que negam pela dúvida. É uma dúvida que se apresenta como real, mas que não é. As dúvidas dos negacionistas, em última análise, não são dúvidas “produtivas”. Na verdade, nem sequer são dúvidas: são intervenções políticas cujo objetivo é questionar o próprio fato histórico por meio dessa suposta dúvida. Ao responder-lhes como se suas dúvidas tivessem algum caráter produtivo, os historiadores legitimaram essas teses. Responderam-lhes como se fossem teses inocentes, levantadas por pessoas que querem saber mais sobre o que aconteceu ou por sujeitos que carecem de informações e que, se as tivessem, levariam em consideração a posição dos especialistas. Quem nega não ignora. Quem nega não é ignorante. Quem nega levanta a dúvida com um objetivo político e não com um desejo real de conhecimento. Consequentemente, esta questão, que é política e não meramente histórica, não pode ter apenas a resposta legitimada dos historiadores. Em todo o caso, deve suscitar uma ampla gama de vozes que também colocam em tensão a natureza da dúvida levantada pelos negacionistas e revisionistas.

O negacionista só aceita a vítima transformada em cinzas como prova da existência do holocausto.O negacionista pede aos aniquilados que prestem contas de sua própria aniquilação. E diz ao sobrevivente: a aniquilação não aconteceu, do contrário você teria que ter sido aniquilado. Diante de uma posição desse tipo, com que argumentos a filosofia pode discutir as teses negacionistas, se no próprio ato da negação reivindica-se a aniquilação do outro como prova da verdade?

A razão é que os negacionistas consideram que não podem existir testemunhas e sobreviventes do que aconteceu. E o argumento usado é exatamente essecima: “Se você está aqui e diz que sobreviveu a uma situação desse tipo, está mentindo, porque não se pode sobreviver a algo assim. Se os fatos que você narra fossem verdadeiros, você estaria morto”.

Nesse sentido, o negacionismo desacredita a própria existência das testemunhas . Trata-se de uma operação propagandística muito clara, que se baseia em questionar a testemunha como figura essencial na história e na esfera pública, em virtude de a testemunha não só pertencer ao passado, mas também testemunhar, na esfera democrática, às gerações presentes e futuras..E este é um aspecto fundamental. Só vendo o negacionismo na sua genealogia histórica e desconstruindo as suas principais características é que poderemos responder aos desafios que coloca. E se o fizermos, veremos claramente que a sua intenção é fazer passar as vítimas por farsantes, as testemunhas por mentirosas e os sobreviventes por falsificadores.

É interessante rastrear o processo que se iniciou imediatamente no pós-guerra e se estendeu até a década de 1970, passando pela Guerra dos Seis Dias, através da qual os discursos revisionistas típicos do negacionismo impuseram uma inversão de papéis. Esta inversão consistia em afirmar que a Alemanha tinha sido vítima dos Aliados, que não teriam compreendido o seu papel numa suposta salvação do Ocidente, enquanto os verdadeiros vencedores teriam sido os judeus que, através de um processo de falsificação de um suposto genocídio, teriam conseguido criar seu Estado. É nesse sentido que o negacionismo sempre apontou contra a existência do Estado de Israel, inserindo a criação desse Estado no mito da “conspiração judaica mundial”. Ora, é totalmente verdade que muitas tendências do judaísmo da diáspora, do judaísmo que poderíamos considerar como de “vanguarda popular”, e do judaísmo filosófico representado por pessoas como Hannah Arendt ou Walter Benjamin, passaram por um processo de regressão. E isso é algo que fica evidente na progressiva perda de influência dos setores mais progressistas dentro do próprio Estado de Israel.

 

O forte crescimento da direita israelense, que se fez acompanhar de uma série de políticas discriminatórias, serviu de pretexto para que a extrema direita europeia se posicionasse favoravelmente a um Estado ao qual era fortemente crítica.

É possível afirmar que o negacionismo é, em si, uma forma de complotismo e de conspiração, na medida em que nunca se limita a apenas negar, mas que introduz o que nega dentro de uma teoria do complô. Nesse esquema de pensamento, as vítimas são transformadas em culpadas e na suposta forma de instrumentalização de forças ocultas. A ideia da “mentira de Auschwitz”, levantada historicamente pelos negacionistas, é um bom exemplo disso. Nessa forma de argumentação, Auschwitz não seria apenas uma farsa e uma invenção, mas foi idealizado para o lucro de determinados poderes ocultos. A tese da “conspiração judaica mundial” está ligada ao negacionismo e é, nesse sentido, uma demonstração palpável da ligação entre negacionismo e conspiração.

Atualmente, podemos ver claramente essas questões, por exemplo, em relação a questões como as mudanças climáticas. As posições negacionistas rejeitam que estejamos diante de uma situação crítica em termos ambientais. Após a rejeição, segue-se um posicionamento que responsabiliza os ambientalistas e os ecologistas por tentarem impor uma agenda que responda a algum tipo de poder. São líderes políticos que, dirigindo-se diretamente ao povo, afirmam que este está sendo enganado por poderes ocultos e que eles o defenderão desses poderes. Os poderes são, no caso,os imigrantes, as feministas e os homossexuais.

Importante frisar que a conspiração, neste tempo, surge sobretudo diante da impossibilidade dos cidadãos identificarem o poder. Vivemos em uma época em que, quando nos referimos ao poder, não sabemos exatamente ao que estamos nos referindo ou onde está. O poder já não é mais claramente identificável, não tem um nome e um endereço postal. E isso, evidentemente, favorece o complotismo. Porque a conspiração tem sempre um caráter externo, quem governa o faz “para outro”, há alguém “de fora” que mexe os fios.

O que constitui um problema óbvio de natureza política – o fato de os governos mudarem e tudo continuar igual – transforma-se, nas teorias da conspiração, na demonstração de que existe uma espécie de poder oculto que tudo domina. Esse pensamento parte de uma suspeita legítima, mas se encadeia de uma forma tal que suspende a política e se articula na forma de um complô. A teoria da conspiração preenche um vazio diante de uma situação de impotência.

 

 

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