Existe muita controvérsia sobre a causa da depressão.
Pesquisas indicam que mais de 80% do público culpa um “desequilíbrio químico”
no cérebro. Essa ideia é defendida na psicologia popular e citada em artigos de
pesquisa e livros médicos .
A substância química cerebral desequilibrada em questão é a
serotonina, um importante neurotransmissor com os lendários efeitos de
“bem-estar”. A serotonina ajuda a regular os sistemas cerebrais que controlam
tudo, desde a temperatura corporal e o sono até o desejo sexual e a fome. Por
décadas, vem sendo indicado como a base terapêutica para combater a depressão.
Medicamentos amplamente prescritos como o Prozac (fluoxetina) são projetados
para tratar a depressão crônica, aumentando (?) os níveis de serotonina.
No entanto, as causas da depressão vão muito além da
deficiência de serotonina. Estudos clínicos concluíram o papel dessa substância
na prática clínica tem sido exagerado. De fato, toda a premissa da teoria do
desequilíbrio químico pode estar errada, apesar do alívio que as medicações
parecem trazer a muitos pacientes.
Uma revisão da literatura que apareceu na revista “ Molecular
Psychiatry” recentemente foi a última e talvez a mais alta sentença de morte
para a hipótese da serotonina, pelo menos em sua forma mais simples. Uma equipe
internacional de cientistas liderada por Joanna Moncrieff da University College
London examinou 361 trabalhos de seis áreas de pesquisa e avaliou
cuidadosamente 17 deles. Eles não encontraram evidências convincentes de que
níveis mais baixos de serotonina causassem ou estivessem associados à
depressão. As pessoas com depressão não pareciam ter menos atividade de
serotonina do que as pessoas sem o distúrbio. Experimentos nos quais os
pesquisadores reduziram artificialmente os níveis de serotonina de voluntários
não causaram depressão consistentemente. Estudos genéticos também parecem
descartar qualquer conexão entre os genes que afetam os níveis de serotonina e
a depressão, mesmo quando os pesquisadores tentaram considerar o estresse como
um possível cofator.
A progressiva avaliação de que os déficits de serotonina por
si só provavelmente não causam depressão vem deixando dúvidas sobre a sua causa.
Tudo nos conduz a pensar que pode não haver uma resposta simples. Na verdade, isto
está conduzindo os pesquisadores neuropsiquiátricos a repensar o que pode ser a
depressão.
A história da relação entre serotonina e depressão começou
com um medicamento para tuberculose. Na década de 1950, os médicos começaram a
prescrever iproniazida, um composto desenvolvido para atingir a bactéria
Mycobacterium tuberculosis .A droga não era muito eficiente para o tratamento
de infecções por tuberculose – mas promoveu , para alguns pacientes, um efeito
colateral inesperado e agradável.O humor tendia a melhorar. Surpresos com esse
resultado, os pesquisadores começaram a estudar como a iproniazida e drogas
relacionadas agiam no cérebro de ratos e coelhos. Eles descobriram que as
drogas impediam o corpo dos animais de absorver compostos chamados aminas – que
incluem a serotonina, uma substância química que transmite mensagens entre as
células nervosas do cérebro.
Vários psicólogos proeminentes acreditaram que a depressão
poderia ser causada por uma deficiência crônica de serotonina no sistema
nervoso central. A hipótese passou a estimular décadas de desenvolvimento de
drogas e pesquisas neurocientíficas. No final dos anos 80 surgiram os
medicamentos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), como o
Prozac. Hoje, essa hipótese ainda é a explicação mais frequentemente dada a
pacientes com depressão.
Mas dúvidas sobre o modelo da serotonina começaram a surgir em
meados da década de 1990. Alguns pesquisadores notaram que os medicamentos
geralmente ficavam aquém das expectativas e não melhoravam significativamente o
quadro clínico. No início dos anos 2000, poucos especialistas ainda acreditavam
que a depressão era causada apenas pela falta de serotonina, mas ninguém jamais
tentou uma avaliação abrangente das evidências. Isso eventualmente levou
Moncrieff a organizar o estudo. Ela e seus colegas descobriram que não, mas a
hipótese ainda tem adeptos. Em outubro do ano de 2022 - apenas alguns meses
após a publicação da revisão - um artigo publicado online na ” Biological
Psychiatry “ afirmou oferecer uma validação concreta da teoria da serotonina.
Outros pesquisadores permanecem céticos, no entanto, porque o estudo analisou
apenas 17 voluntários. Moncrieff descartou os resultados como estatisticamente insignificantes.
Embora os níveis de serotonina não pareçam ser o principal
fator de depressão, os antidepressivos mostram uma melhora modesta em relação
aos placebos em ensaios clínicos. Mas o mecanismo por trás dessa melhoria permanece
indefinido. A especulação sobre a fonte desse benefício gerou teorias
alternativas sobre as origens da depressão.
Os antidepressivos alteram as concentrações relativas de
outras substâncias químicas além da serotonina. Alguns psiquiatras clínicos
acreditam que um dos outros compostos pode ser a verdadeira força que induz ou
alivia a depressão. Por exemplo, as drogas aumentam os níveis circulantes do
aminoácido triptofano, um precursor da serotonina que ajuda a regular os ciclos
do sono. Nos últimos 15 anos, esse produto químico emergiu como um forte
candidato por si só para evitar a depressão.
Vários estudos analisando a falta de triptofano descobriram
que cerca de dois terços das pessoas que se recuperaram recentemente de um
episódio depressivo terão uma recaída quando receberem dietas artificialmente
baixas em triptofano. Pessoas com histórico familiar de depressão também
parecem vulneráveis à depleção de triptofano. E o triptofano tem um efeito
secundário de aumentar os níveis de serotonina no cérebro. Evidências recentes
também sugerem que tanto o triptofano quanto a serotonina podem contribuir para
a regulação de bactérias e outros micróbios que crescem no intestino, e os
sinais químicos dessa microbiota podem afetar o humor. Embora os mecanismos
exatos que ligam o cérebro e o intestino ainda sejam pouco compreendidos, a
conexão parece influenciar a forma como o cérebro se desenvolve. No entanto,
como a maioria dos estudos de depleção de triptofano até agora foram pequenos,
o assunto está longe de ser resolvido.
Outros neurotransmissores como o glutamato, que desempenha
um papel essencial na formação da memória, e o GABA, que inibe as células de
enviar mensagens umas às outras, também podem estar envolvidos na depressão..
Uma outra hipótese é de que a serotonina tem efeitos tão generalizados no
cérebro que podemos ter dificuldade em separar seu efeito antidepressivo direto
de outras mudanças em nossas emoções ou sensações que substituem
temporariamente os sentimentos de ansiedade e desespero.
Nem todas as teorias da depressão dependem de deficiências
de neurotransmissores. Alguns procuram culpados no nível genético.
Quando o primeiro rascunho quase completo da sequência do
genoma humano foi anunciado em 2003, foi amplamente saudado como a fundação de
uma nova era na medicina. Nas duas décadas desde então, os pesquisadores
identificaram genes subjacentes a um enorme espectro de distúrbios, incluindo
cerca de 200 genes que foram associados ao risco de depressão.É muito
importante que as pessoas entendam que existe uma genética da depressão e não
apenas fatores psicológicos e ambientais .Nosso conhecimento da genética, no
entanto, é incompleto. Simplesmente ter os genes para depressão não garante
necessariamente que alguém ficará deprimido. Os genes também precisam ser
ativados de alguma forma, por condições internas ou externas.
A pesquisa genética estuda a da depressão mapeando os
genomas dos indivíduos e observando-os cuidadosamente como respondem a mudanças
em seu ambiente. Isso foi feito recentemente analisando o estresse causado pela
pandemia de Covid-19. Diferentes variações genéticas podem afetar se os
indivíduos respondem a certos tipos de estresse, como privação de sono, abuso
físico ou emocional e falta de contato social, tornando-se depressivo.
Às vezes, influências ambientais, como o estresse, também
podem dar origem a mudanças “epigenéticas” em um genoma que afetam a expressão
gênica subsequente. Por exemplo, é possível estudar mudanças epigenéticas nas
extremidades dos cromossomos, conhecidas como telômeros, que afetam a divisão
celular. Ou mudanças em marcadores químicos chamados grupos de metilação, que
podem ativar ou desativar genes. Às vezes, as mudanças epigenéticas podem até
ser transmitidas de geração em geração.Os efeitos do ambiente são tão
biológicos quanto os efeitos dos genes. Os estudos desses genes podem um dia
ajudar a identificar a forma de tratamento a que um paciente responderia
melhor. Alguns genes podem predispor um indivíduo a melhores resultados da
terapia cognitivo-comportamental, enquanto outros pacientes podem se sair
melhor com um fármaco. No entanto, é muito cedo para dizer quais genes
respondem a qual tratamento.
A equipe liderada por Jonathan Repple , pesquisador em
psiquiatria da Universidade Goethe em Frankfurt, Alemanha, descreveu como
escaneou os cérebros de voluntários com depressão aguda e descobriu que eles
diferiam estruturalmente daqueles de um grupo de controle não deprimido. Por
exemplo, pessoas com depressão mostraram menos conexões dentro da “substância
branca” das fibras nervosas em seus cérebros. Depois que o grupo deprimido
passou por seis semanas de tratamento, a equipe de Repple fez outra rodada de
exames cerebrais. Desta vez, eles descobriram que o nível geral de
conectividade neural no cérebro dos pacientes deprimidos aumentou à medida que
seus sintomas diminuíram. Para obter o aumento, não parecia importar que tipo
de tratamento os pacientes recebiam, desde que seu humor melhorasse.
Uma possível explicação para essa alteração é o fenômeno da
neuroplasticidade : o cérebro realmente é capaz de criar novas conexões, mudar
sua fiação. Se a depressão ocorre quando um cérebro tem poucas interconexões ou
perde algumas, então aproveitar os efeitos neuroplásticos para aumentar a
interconexão pode ajudar a melhorar o humor de uma pessoa.
Repple complementa que outra explicação para os efeitos
observados por sua equipe também é possível: talvez as conexões cerebrais dos
pacientes deprimidos tenham sido prejudicadas pela inflamação. A inflamação
crônica impede a capacidade de cura do corpo e, no tecido neural, pode degradar
gradualmente as conexões sinápticas. Acredita-se que a perda de tais conexões
contribua para os transtornos de humor. Boas evidências apóiam essa teoria.
Quando os psiquiatras avaliaram populações de pacientes com doenças
inflamatórias crônicas como lúpus e artrite reumatóide, eles descobriram que
“todos eles têm taxas de depressão acima da média”. É claro que saber que eles
têm uma condição degenerativa incurável pode contribuir para os sentimentos de
depressão do paciente, mas os pesquisadores suspeitam que a própria inflamação
também seja um fator.
Induzir inflamação em certos pacientes pode desencadear
depressão. O interferon alfa, que às vezes é usado para tratar hepatite C
crônica e outras condições, causa uma grande resposta inflamatória em todo o
corpo ao inundar o sistema imunológico com proteínas conhecidas como citocinas
– moléculas que facilitam reações inflamatórias. Isso leva à perda de apetite,
fadiga e desaceleração da atividade mental e física – todos sintomas de
depressão maior. Os pacientes que tomam interferon geralmente relatam sentir-se
repentinamente, às vezes gravemente, deprimidos.
Se a inflamação crônica negligenciada está causando a
depressão em muitas pessoas, os pesquisadores ainda precisam determinar a fonte
dessa inflamação. Distúrbios autoimunes, infecções bacterianas, alto estresse e
certos vírus, incluindo o vírus que causa a Covid-19, podem induzir respostas
inflamatórias persistentes. A inflamação viral pode se estender diretamente aos
tecidos do cérebro. A elaboração de um tratamento anti-inflamatório eficaz para
a depressão pode depender de saber qual dessas causas está em ação.
Cada vez mais, alguns cientistas estão pressionando para
reformular a “depressão” como um termo genérico para um conjunto de condições
relacionadas, assim como os oncologistas agora pensam em “câncer” como se
referindo a uma legião de malignidades distintas, mas semelhantes. E assim como
cada câncer precisa ser prevenido ou tratado de maneira relevante para sua
origem, os tratamentos para depressão podem precisar ser adaptados ao
indivíduo.
Se houver diferentes tipos de depressão, eles podem
apresentar sintomas semelhantes – como fadiga, apatia, alterações no apetite,
pensamentos suicidas e insônia ou sono excessivo – mas podem surgir de misturas
completamente diferentes de fatores ambientais e biológicos. Desequilíbrios
químicos, genes, estrutura cerebral e inflamação podem desempenhar um papel em
graus variados. Em cinco ou 10 anos, não estaremos falando sobre depressão como
algo unitário.
Para tratar a depressão de forma eficaz é preciso ,
portanto, desenvolver uma compreensão diferenciada das maneiras pelas quais ela
pode surgir.Esperamos que algum dia o padrão-ouro para o cuidado não seja
apenas um tratamento - será um conjunto de ferramentas de diagnóstico que podem
determinar a melhor abordagem terapêutica, seja terapia
cognitivo-comportamental, mudanças no estilo de vida, neuromodulação, evitando
gatilhos genéticos, terapia de fala, medicação ou alguma combinação dos mesmos.
Essa previsão pode frustrar alguns médicos e desenvolvedores
de medicamentos, pois é muito mais fácil prescrever uma solução única para
todos. Mas apreciar a verdadeira e real complexidade da depressão nos leva a um
caminho que será mais impactante.
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