Em seu livro “ Si Auschwitz no es nada” (Se Auschwitz não é
nada), a filósofa italiana Donatella Di Cesare examina as formas pelas quais o
negacionismo tentou rejeitar a existência do Holocausto, invertendo a relação
entre vítimas e resposáveis e produzindo a tese da “conspiração judaica
mundial”. É uma boa forma de entendermos o negacionismo hoje associado à
emergência ambiental ,à crise migratória, à pandemia etc.
Ensaio crítico e analítico, Se Auschwitz não é nada analisa
as raízes profundas do negacionismo através de uma genealogia histórica em que
mostra que os primeiros a praticar a negação foram os próprios autores dos
crimes cometidos nos campos de concentração. Em seu ensaio, Di Cesare explica
as maneiras pelas quais o negacionismo inverte os papéis, desenvolve uma
história alternativa e instala dúvidas hiperbólicas e improdutivas com vistas a
produzir confusões políticas.
Em primeiro lugar, devemos dizer que as democracias, na
forma como as conhecemos hoje, especialmente as europeias, nasceram das cinzas
de Auschwitz. Sobretudo na Itália e Alemanha, os dois países onde o fascismo e
o nacional-socialismo se desenvolveram e sobre os quais recai a
responsabilidade principal pelo extermínio do holocausto.
Os negacionistas e os revisionistas tentam alterar não só a
história, mas também a própria memória democrática, bem como os mecanismos
sobre os quais assentam as dúvidas que, apresentando-se como buscas de
conhecimento, não constituem, rigorosamente falando, outra coisa que
intervenções políticas destinadas a desacreditar a própria existência do
ocorrido. Devemos lembrar, neste sentido, que os primeiros a negar o holocausto
foram os próprios nazistas, motivo pelo qual as origens dessa negação
encontram-se nos próprios autores do crime.
Claro que a questão do negacionismo ultrapassa a de um caso
particular, e isso fica claro com uma série de fenômenos que presenciamos hoje,
quando observamos a forma como diferentes atores, principalmente da extrema
direita, favorecem novos processos ligados às teses dos negacionistas. Longe de
constituir um fenômeno em declínio, o que ficou evidente é que o negacionismo
está em plena ascensão. Tanto que se revelaram falsas as hipóteses levantadas há
alguns anos, segundo as quais o negacionismo contemporâneo era limitado e
reduzido e fazia parte de um processo de “regurgitação do passado”. Hoje
podemos falar muito claramente de uma série de negacionismos, no plural, que
abrangem diversas áreas que incluem o
negacionismo em relação às mudanças climáticas ou, por exemplo, o negacionismo
da pandemia. Essas questões estão claramente ligadas à agenda e à filosofia das
novas direitas e, portanto, estão no centro do debate público.
É possível traçar uma genealogia do negacionismo do
holocausto que pode ser conectado a um negacionismo mais amplo que inclui os
fenômenos atuais. De fato, o fio condutor do negacionismo – que constitui em si
um fenômeno de propaganda política e, nesse sentido, diz respeito ao espaço
público – é a rejeição de uma verdade considerada “oficial” e a inversão de
papéis entre vítimas e carrascos. A primeira fase, que começou a se desenvolver
entre 1944 e 1945, é de extrema importância, pois visa diretamente exonerar e
inocentar o nacional-socialismo e o fascismo pelos crimes cometidos .Esse
processo de exoneração se produz afirmando que as câmaras de gás e os
crematórios, que constituem a particularidade do processo de industrialização
da morte típico do nacional-socialismo, não existiram. E se esses elementos são
rejeitados, um primeiro objetivo é alcançado: igualar o totalitarismo nazista
ao totalitarismo soviético.
A tese dos “dois totalitarismos” parte do pressuposto de que
os campos de concentração são semelhantes aos gulags, e ao fazê-lo, gera uma
condição de igualdade que rebaixa a categoria de campos de concentração nos
quais o que se produziu foi uma forma particular e um extermínio cruel
vinculado a um processo de industrialização da morte. Não é por acaso que a
extrema direita contemporânea se apoia nessa tese dos “dois totalitarismos”
para afirmar que na Alemanha houve um “totalitarismo como os outros” e que,
portanto, é coisa do passado, que não difere em nada de outros totalitarismos.
Para a direita pós-totalitária contemporânea, a tese dos dois totalitarismos
cai como uma luva.
A discussão sobre números é, obviamente, de capital
importância e diz respeito a uma operação política muito específica. No caso do
holocausto, o que os negacionistas fazem? Eles pedem o número concreto, o número
preciso das pessoas que foram exterminadas. E perguntam, como se fosse um
interrogatório inocente: “São realmente seis milhões?” E respondem: “Se não
são, obviamente, você está mentindo”. O mesmo acontece em relação à situação
dos desaparecidos na Argentina. Eles podem dizer: “São realmente 30.000? Porque
se não forem, você está mentindo”. O problema é que está muito claro que não
podemos saber o número exato, embora isso não mude, evidentemente, a gravidade
do crime cometido. O ponto fundamental é que esse tipo de proposição instala
uma dúvida, mas não uma dúvida construtiva, mas uma “dúvida hiperbólica”. Os
negacionistas, que operam como “dobermans do pensamento”, não perguntam
inocentemente um número, não têm uma dúvida real e uma vocação para conhecer
mais e melhor um fenômeno. O que eles fazem, rigorosamente falando, é instalar
uma dúvida que contém em si a afirmação negacionista. É uma dúvida
propositalmente levantada para negar ou atenuar os acontecimentos. É uma
dúvida, em suma, que se instala para destruir a memória e os aspectos
substanciais da comunidade democrática construída, com muito trabalho, após a tragédia.
Mas esse tipo de pergunta pelos números exatos não apenas
constitui uma forma de negação velada no quadro da dúvida, mas é a pedra sobre
a qual se constrói, na sequência, uma história alternativa. E na construção
desta história alternativa, são os familiares que sofreram perdas que são
responsabilizados por mentir e enganar. Mais uma vez vemos como o negacionismo
inverte os papéis e transforma as vítimas em responsáveis por um engano.
Para discutir com teses negacionistas, é preciso sair da
esfera do debate dos especialistas. Segundo sua perspectiva, o fato de os
historiadores participarem do debate público contestando as teses negacionistas
não só não mudará essas teses, como poderá até contribuir para legitimá-las. Isso
acontece porque muitos historiadores, e especialmente aqueles que são
especialistas no holocausto, tenderam a considerar que, enquanto as posições
negacionistas e revisionistas questionavam dados e situações que dizem respeito
à história, sua necessidade e obrigação era responder-lhes a partir do
conhecimento histórico. No entanto, e apesar da vontade dos próprios
historiadores, as suas respostas não serviram para dissipar quaisquer dúvidas.
Muito pelo contrário, essas respostas de especialistas produziram uma
legitimação das teses revisionistas e negacionistas, porque deram validade a
essas dúvidas, considerando que elas se limitavam à esfera da história. O problema
é que, antes de responder a uma determinada pergunta, devemos nos perguntar,
filosoficamente, sobre seu caráter. E isso é o que os historiadores não
fizeram.
O problema é que as dúvidas dos negacionistas e
revisionistas não visam conhecer mais um determinado fenômeno, esclarecer
incógnitas e questões. Não se trata de pessoas que duvidam para conhecer mais e
melhor um determinado processo, mas de pessoas que negam pela dúvida. É uma
dúvida que se apresenta como real, mas que não é. As dúvidas dos negacionistas,
em última análise, não são dúvidas “produtivas”. Na verdade, nem sequer são
dúvidas: são intervenções políticas cujo objetivo é questionar o próprio fato
histórico por meio dessa suposta dúvida. Ao responder-lhes como se suas dúvidas
tivessem algum caráter produtivo, os historiadores legitimaram essas teses.
Responderam-lhes como se fossem teses inocentes, levantadas por pessoas que
querem saber mais sobre o que aconteceu ou por sujeitos que carecem de
informações e que, se as tivessem, levariam em consideração a posição dos
especialistas. Quem nega não ignora. Quem nega não é ignorante. Quem nega
levanta a dúvida com um objetivo político e não com um desejo real de
conhecimento. Consequentemente, esta questão, que é política e não meramente
histórica, não pode ter apenas a resposta legitimada dos historiadores. Em todo
o caso, deve suscitar uma ampla gama de vozes que também colocam em tensão a
natureza da dúvida levantada pelos negacionistas e revisionistas.
O negacionista só aceita a vítima transformada em cinzas
como prova da existência do holocausto.O negacionista pede aos aniquilados que
prestem contas de sua própria aniquilação. E diz ao sobrevivente: a aniquilação
não aconteceu, do contrário você teria que ter sido aniquilado. Diante de uma
posição desse tipo, com que argumentos a filosofia pode discutir as teses
negacionistas, se no próprio ato da negação reivindica-se a aniquilação do
outro como prova da verdade?
A razão é que os negacionistas consideram que não podem
existir testemunhas e sobreviventes do que aconteceu. E o argumento usado é
exatamente essecima: “Se você está aqui e diz que sobreviveu a uma situação
desse tipo, está mentindo, porque não se pode sobreviver a algo assim. Se os
fatos que você narra fossem verdadeiros, você estaria morto”.
Nesse sentido, o negacionismo desacredita a própria
existência das testemunhas . Trata-se de uma operação propagandística muito
clara, que se baseia em questionar a testemunha como figura essencial na
história e na esfera pública, em virtude de a testemunha não só pertencer ao
passado, mas também testemunhar, na esfera democrática, às gerações presentes e
futuras..E este é um aspecto fundamental. Só vendo o negacionismo na sua
genealogia histórica e desconstruindo as suas principais características é que
poderemos responder aos desafios que coloca. E se o fizermos, veremos
claramente que a sua intenção é fazer passar as vítimas por farsantes, as
testemunhas por mentirosas e os sobreviventes por falsificadores.
É interessante rastrear o processo que se iniciou imediatamente
no pós-guerra e se estendeu até a década de 1970, passando pela Guerra dos Seis
Dias, através da qual os discursos revisionistas típicos do negacionismo
impuseram uma inversão de papéis. Esta inversão consistia em afirmar que a
Alemanha tinha sido vítima dos Aliados, que não teriam compreendido o seu papel
numa suposta salvação do Ocidente, enquanto os verdadeiros vencedores teriam
sido os judeus que, através de um processo de falsificação de um suposto
genocídio, teriam conseguido criar seu Estado. É nesse sentido que o
negacionismo sempre apontou contra a existência do Estado de Israel, inserindo
a criação desse Estado no mito da “conspiração judaica mundial”. Ora, é
totalmente verdade que muitas tendências do judaísmo da diáspora, do judaísmo
que poderíamos considerar como de “vanguarda popular”, e do judaísmo filosófico
representado por pessoas como Hannah Arendt ou Walter Benjamin, passaram por um
processo de regressão. E isso é algo que fica evidente na progressiva perda de
influência dos setores mais progressistas dentro do próprio Estado de Israel.
O forte crescimento da direita israelense, que se fez
acompanhar de uma série de políticas discriminatórias, serviu de pretexto para
que a extrema direita europeia se posicionasse favoravelmente a um Estado ao
qual era fortemente crítica.
É possível afirmar que o negacionismo é, em si, uma forma de
complotismo e de conspiração, na medida em que nunca se limita a apenas negar,
mas que introduz o que nega dentro de uma teoria do complô. Nesse esquema de
pensamento, as vítimas são transformadas em culpadas e na suposta forma de
instrumentalização de forças ocultas. A ideia da “mentira de Auschwitz”,
levantada historicamente pelos negacionistas, é um bom exemplo disso. Nessa
forma de argumentação, Auschwitz não seria apenas uma farsa e uma invenção, mas
foi idealizado para o lucro de determinados poderes ocultos. A tese da
“conspiração judaica mundial” está ligada ao negacionismo e é, nesse sentido,
uma demonstração palpável da ligação entre negacionismo e conspiração.
Atualmente, podemos ver claramente essas questões, por
exemplo, em relação a questões como as mudanças climáticas. As posições
negacionistas rejeitam que estejamos diante de uma situação crítica em termos
ambientais. Após a rejeição, segue-se um posicionamento que responsabiliza os
ambientalistas e os ecologistas por tentarem impor uma agenda que responda a
algum tipo de poder. São líderes políticos que, dirigindo-se diretamente ao
povo, afirmam que este está sendo enganado por poderes ocultos e que eles o
defenderão desses poderes. Os poderes são, no caso,os imigrantes, as feministas
e os homossexuais.
Importante frisar que a conspiração, neste tempo, surge
sobretudo diante da impossibilidade dos cidadãos identificarem o poder. Vivemos
em uma época em que, quando nos referimos ao poder, não sabemos exatamente ao que
estamos nos referindo ou onde está. O poder já não é mais claramente
identificável, não tem um nome e um endereço postal. E isso, evidentemente,
favorece o complotismo. Porque a conspiração tem sempre um caráter externo,
quem governa o faz “para outro”, há alguém “de fora” que mexe os fios.
O que constitui um problema óbvio de natureza política – o
fato de os governos mudarem e tudo continuar igual – transforma-se, nas teorias
da conspiração, na demonstração de que existe uma espécie de poder oculto que
tudo domina. Esse pensamento parte de uma suspeita legítima, mas se encadeia de
uma forma tal que suspende a política e se articula na forma de um complô. A
teoria da conspiração preenche um vazio diante de uma situação de impotência.