É lugar comum que se renovem esperanças a cada inicio de um novo ano. È como se a
sensação de alivio e recomeço precisasse de uma evasão , algo que permita viver e
compreender o incompreensível . Por isso a esperança falha. Ela é uma forma de passividade .
Uma expectativa que parte de um otimismo e que , normalmente , gera poucas ações que
realmente mudem o rumo destes tempos tortuosos. Ano após ano , para quem nutre a
esperança , a inércia acaba frustrando mais do que acalentando.
Proponho que façamos votos de indignação. Entendo que durante o tempo de confrontação a
uma situação -limite coletiva em que nos encontramos ,só o rechaço das pessoas supera a
impotência diante da presença selvagem da realidade.
Homens e mulheres veem a antiga crença no próprio protagonismo , ao optarem pela
esperança , reduzida a um adaptar-se às forças que os ultrapassam , a um reagir a elas , a um
viver com elas. Às vezes é muito tarde para descobrir que em momentos como vivemos , não
saõ as pessoas que se moldam a si mesmas, elas se moldam às circunstâncias que são impostas
pelas mentiras , pelas ideologias , pelo aniquilamento progressivo do pensamento crítico.
A pandemia está mostrando a lição mais clara da modernidade : o mundo não existe para os
homens. Seu tempo não é o deles. O vírus virá no seu tempo e irá embora no seu tempo
também. E partirá , não pela esperança, não porque os homens realmente assim o queiram
(eles estão destinados , em sua grande parte , a olharem apenas para o espelho). Parte porque
foi esse o caminho do seu próprio desenvolvimento. Se não for pela indignação a
inevitabilidade darwiniana se dará pelo nascimento , crescimento , ápice e um lento
desaparecimento.
A pandemia impõe uma temporabilidade própria ao coletivo humano. Tudo se abala. A
sociabilidade já fragilizada se altera até se tornar irreconhecível. A infecção comportamental se
espalha pelo tecido da vida em comum e o paralisa , definha , atrofia , corrompe , apodrece.
Está claro que as finalidades , ambições e esperanças dos homens – tudo o que os impele ao
futuro – são suspensas . Com a suspensão do futuro , o tempo se achata. E se repete na sua
linearidade.O sentimento de sucessão se dissolve no da extensão . E aqui , se nutridos apenas
pela esperança , se experimenta o tédio , em escala coletiva.Renovam-se os mesmos votos , os
clichês calcados em ébrias emoções , as mesmas mensagens pueris , os mesmos rituais
protocolares. E passa-se a aceitar o inaceitável.
A indignação consiste em recomeçar . Tudo é restaurado ao inicio , e , no entanto , nem por
isso o mundo é novo. Um recomeço sem renovação pode parecer um pesadelo. O que nos
resta é uma revelação pela constatação do tempo e dos contextos em que vivemos.É o
exercício do absurdo . Precisamos da reflexão sobre o absurdo das mortes evitáveis em nosso
país. O mesmo absurdo que se impõem à consciência a comparação entre o apelo que
lançamos ao mundo a partir de nossas aspirações íntimas e a acolhida fria com que ele nos
recebe. O mesmo absurdo negado com veemência por aqueles que rechaçam as evidências de
que navegamos numa nave dirigida pela vulgaridade e irracionalidade. A superposição da crise
sanitária e da deliquescência da democracia sob o peso do populismo em que vivemos ganha
contornos dramáticos.
A indignação trata antes do fato de que , a despeito de toda ciência e toda tecnologia
empregadas pelo gênero humano , esse mundo parece incompreensível , ou seja , irredutível
às necessidades e às vontades humanas. Segue arisco e inassimilável . Falta a seu mecanismo a
causa final de todas as causas finais , que asseguraria sentido de unidade , um plano centrado
e coerente à medida do homem .
A esperança , muitas vezes, resulta apenas de momentos temporariamente vividos que a
ilusão teima em prolongar na memória como se fossem infinitos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário