Algumas frases,perdidas no tempo, demonstram uma eterna
relação de (in) credulidade na ciência.
No nosso tempo de SARS Cov2, mais de um ano depois que a
Organização Mundial da Saúde declarou que enfrentamos uma pandemia, uma página
em seu site intitulada “Doença do Coronavírus (Covid-19): Como é transmitida?”
recebeu uma atualização aparentemente pequena diante da sua importância. A
constatação : “as evidências atuais sugerem que a principal forma de propagação
do vírus é por meio de gotículas respiratórias” - que são expelidas da boca e
caem rapidamente no chão - “entre pessoas que estão em contato próximo umas com
as outras . ”
A resposta revisada ainda enfatiza a transmissão em contato
próximo, mas agora diz que pode ser por meio de aerossóis - partículas
respiratórias menores que podem flutuar - assim como gotículas. Ela também
acrescenta : o vírus também pode ser transmitido "em ambientes internos
mal ventilados e / ou lotados", dizendo que isso ocorre porque "os
aerossóis permanecem suspensos no ar ou viajam por mais de 1 metro".
A mudança não chamou muita atenção. Não houve entrevista
coletiva, nenhum grande anúncio. Logo em seguida o CDC também atualizou suas
orientações sobre a Covid-19, dizendo claramente que a inalação dessas
partículas menores é a principal forma de transmissão do vírus.Também não houve
entrevista coletiva do CDC.
Essas últimas mudanças desafiam as principais suposições de
controle de infecção que datam de um século, colocando muito do que deu errado
no ano passado em contexto. Eles também podem sinalizar um dos avanços mais
importantes na saúde pública durante esta pandemia.
Se a importância da transmissão por aerossol tivesse sido
aceita desde o início, teríamos alertado desde o início que era muito mais
seguro ao ar livre, onde essas pequenas partículas se dispersam mais
facilmente, desde que se evite o contato próximo e prolongado com outras
pessoas. Teríamos tentado garantir que os espaços internos fossem bem
ventilados, com o ar filtrado conforme necessário. Em vez de regras gerais
sobre reuniões, teríamos como alvo as condições que podem produzir eventos de
superespalhamento: pessoas em espaços internos mal ventilados, especialmente se
envolvidas em atividades que aumentam a produção de aerossol, como gritar e
cantar. Teríamos começado a usar máscaras mais rapidamente e também teríamos
prestado mais atenção ao seu ajuste. E teríamos ficado menos obcecados com a
limpeza de superfícies.
Como a pandemia está longe de terminar, com países como a
Índia enfrentando surtos devastadores, precisamos entender por que isso demorou
tanto para acontecer e o que isso significará.
Inicialmente, a SARS-CoV-2 foi vista como uma doença
transmitida por gotículas respiratórias , exceto em casos raros de transmissão
por aerossol durante procedimentos médicos como a intubação. Bancadas, caixas e
outros possíveis fômites - superfícies contaminadas - eram vistos como uma
ameaça porque se os tocássemos depois que as gotas caíssem sobre eles,
acreditava-se que o vírus poderia chegar até nossas mãos, depois nosso nariz,
olhos ou boca.
Essa postura negligenciou o padrão epidemiológico mais claro
dessa pandemia: a grande maioria da transmissão ocorreu em ambientes fechados,
às vezes além de um alcance de um metro ou mesmo um metro e oitenta. Os eventos
de superespalhamento que desempenham um papel importante na condução da
pandemia ocorrem de forma esmagadora, se não exclusivamente, em ambientes
fechados. Demorou-se muito para atentarmos sobre ventilação, abrir janelas,preferir
atividades ao ar livre, onde a transmissão tem sido rara e geralmente apenas
durante contato prolongado e próximo. A omissão não é surpreendente. Durante a
pandemia, a OMS demorou a aceitar o papel-chave que as partículas infecciosas
pequenas o suficiente para flutuar podiam estar desempenhando. A suposição de que
só gotículas maiores, que podem viajar apenas alguns metros, são a principal
forma de propagação da doença, é uma das principais razões pelas quais a OMS e
o CDC não recomendaram as máscaras no início. Por que se preocupar se alguém
pode simplesmente ficar fora de seu alcance?
O CDC recomendou as máscaras em abril de 2020, a OMS em junho,
mas primeiro sugeriu que as pessoas usassem máscaras se o distanciamento físico
não pudesse ser mantido, e ainda disse que os profissionais de saúde que
realizam exames na comunidade não precisam usar máscaras se eles podiam ficar a
um único metro de distância dos pacientes ! A OMS atualizou sua orientação de
máscara pela última vez em dezembro, mas continuou a insistir que o uso de
máscara em ambientes fechados não era necessário se as pessoas pudessem
permanecer separadas por aquele mero metro - desta vez admitindo que se a
ventilação não fosse adequada, as máscaras deveriam ser usadas em ambientes
fechados, independentemente do distanciamento. Lástima !!
Se os aerossóis fossem considerados a principal forma de
transmissão, além do distanciamento e das máscaras, os conselhos teriam se
centrado na ventilação e no fluxo de ar, bem como no tempo de permanência em
ambientes internos. Pequenas partículas podem se acumular em espaços fechados,
pois podem permanecer suspensas no ar e viajar ao longo das correntes de ar.
Isso significa que dentro de casa, um metro ou mesmo um metro e oitenta, embora
útil, não é totalmente protetor.
Para ver as consequências desse mal-entendido basta
observare o que ainda está acontecendo no mundo. Na Índia, onde os hospitais estão
sem oxigênio e as pessoas estão morrendo nas ruas, o dinheiro está sendo gasto
em frotas de drones para borrifar desinfetante anti-coronavírus em espaços
externos. Parques, praias e áreas ao ar livre continuam fechando em todo o
mundo. Enquanto isso, muitos países permitiram que seus locais de trabalho
internos abrissem, mas com proteções de aerossol inadequadas. Não houve atenção
à ventilação, instalando filtros de ar quando necessário ou mesmo abrindo
janelas quando possível, focando mais para ter pessoas distando apenas um metro
ou dois metros, às vezes não exigindo máscaras além dessa distância, ou
gastando dinheiro em barreiras de plástico (ou acrílico), que podem ser inúteis
na melhor das hipóteses .
As disputas científicas, a resistência e a controvérsia que
impediram uma mudança na orientação decorrem de um século de suposições
equivocadas cujas raízes remontam às origens da teoria dos germes das doenças
no século XIX. Até que ela se confirmasse na importância dos agentes infecciosos,
muitas pessoas acreditavam que doenças mortais como a cólera eram causadas por
miasmas - gases com odor fétido de material orgânico ou em decomposição. Não
foi fácil persuadir as pessoas de que criaturas tão pequenas que não podiam ser
vistas poderiam estar ceifando tantas vidas.
Esta foi uma luta árdua : entender os mecanismos de
transmissão de uma doença de uma forma errada pode levar a condutas que não
apenas são ineficazes, mas também tornam as coisas piores. Durante o século 19,
temendo o miasma, os londrinos trabalharam duro para direcionar seus esgotos
para o rio Tâmisa, espalhando a cólera ainda mais.
Mas claras evidências não superam facilmente a tradição ou sentimentos
e egos arraigados. John Snow, muitas vezes creditado como o primeiro
epidemiologista científico, mostrou que um poço contaminado foi responsável por
uma epidemia de cólera em Londres em 1854, removendo a alça da bomba suspeita e
documentando como os casos despencaram posteriormente. Muitos outros cientistas
e funcionários não acreditaram nele por 12 anos, quando a ligação com uma nova fonte
de água apareceu novamente e se tornou mais difícil de negar. (Ele havia
morrido anos antes.).
Da mesma forma, quando o médico húngaro Ignaz Semmelweis
percebeu a importância de lavar as mãos para proteger os pacientes, ele perdeu
o emprego e foi amplamente condenado por colegas descrentes . Esses médicos
continuaram a matar seus pacientes por meio de contaminação cruzada por
décadas, apesar das evidências claras de como as taxas de mortalidade despencaram
nas poucas enfermarias onde as parteiras e o Dr. Semmelweis conseguiram
introduzir a higiene das mãos de rotina.
O caminho para a saúde pública moderna foi moldadoa em
grande parte pela luta contra os germes. Uma teoria da transmissão foi promovida
pela influente figura de saúde pública Dr Charles Chapin .Ele afirmou no início
dos anos 1900 que as doenças respiratórias eram mais provavelmente disseminadas
de perto por pessoas tocando fluidos corporais ou ejetando gotículas
respiratórias. Ele também estava preocupado com o fato de que a crença na
transmissão aérea, que ele associava às teorias do miasma, faria as pessoas se
sentirem desamparadas e baixassem a guarda contra a transmissão por contato.
Este foi um erro que iria atrapalhar o controle de infecções pelo próximo
século.
Na linguagem médica moderna, as rotas de transmissão
respiratória são divididas entre as gotículas maiores, associadas a doenças que
se espalham a curta distância, e os aerossóis menores (às vezes também chamados
de núcleos de gotículas), associados a doenças como o sarampo, que sabemos que
podem se espalhar a longa distância e geralmente são altamente contagiosas. Na
verdade, estudos que mostram que as doenças respiratórias se espalham mais
facilmente na proximidade de pessoas infectadas aparentemente confirmaram o
papel das gotículas. Foi nesse contexto, no início de 2020, que a OMS e o CDC
afirmaram que o SARS-CoV-2 era transmitido principalmente por meio dessas
gotículas mais pesadas e de curto alcance e forneceram orientações em
conformidade.
Mas, desde o início, a forma como a doença estava se
espalhando pelo mundo não se encaixava bem nessa teoria. Em fevereiro de 2020,
depois que uma pessoa infectada foi encontrada a bordo do navio de cruzeiro
Diamond Princess , centenas de pessoas presas a bordo por semanas foram
infectadas ( 567 dos 2.666 passageiros) , que estavam confinados em seus
quartos. Hitoshi Oshitani, um virologista japonês que desempenhou um papel
importante na resposta de seu país à epidemia, disse que foi o surto do navio
que ajudou a convencê- lo de que o vírus era transportado pelo ar - e é por
isso que o Japão planejou em torno das suposições de transmissão aérea desde fevereiro
de 2020.
Em seguida, aconteceram muitos eventos de superespalhamento
em todo o mundo que desafiavam as explicações simplistas de gotículas. Em março
de 2020 em Mount Vernon, Washington, 61 pessoas cientes da pandemia
compareceram a um coral e cantaram a alguma distância entre eles em um grande
espaço e receberam desinfetante para as mãos. Mas 53 deles foram confirmados com
Covid-19, e dois morreram.
Estudos epidemiológicos e exemplos continuaram chegando,
todos eles mostrando que o SARS Cov2 estava se espalhando principalmente em
ambientes fechados com aglomerados. E, quando a transmissão externa ocorria,
geralmente era quando as pessoas ficavam em contato próximo prolongado, falando
ou gritando.
A doença também era muito variável em termos de
infectividade, às vezes não sendo muito contagiosa e outras vezes de forma
dramática. Estudos em grande escala mostraram que mais de 70 por cento das
pessoas infectadas não transmitiram a nenhuma outra pessoa, enquanto apenas 5
por cento podem ser responsáveis por 80 por cento das transmissões por meio
de eventos de superespalhamento . Nada disso poderia ser explicado facilmente
se a doença fosse "transmitida principalmente entre pessoas por meio de
gotículas respiratórias e vias de contato", como disse a OMS , uma vez que
as partículas maiores e mais pesadas se comportariam da mesma forma em
ambientes fechados e externos, seriam em grande parte indiferentes à ventilação
e não seriam causadoras de superespalhamento.
Por fim, ficou claro desde o início que as pessoas que ainda
não estavam doentes(tossindo ou espirrando) - que produzem muito mais gotículas
– já estavam transmitindo.
As evidências continuaram se acumulando. A transmissão foi
documentada em quartos adjacentes em um hotel de quarentena onde as pessoas
nunca interagiram. Foi comprovado que vários funcionários de um hospital foram
infectados, apesar das precauções estritas de contato e gotículas. O vírus
viável foi encontrado em amostras de ar de enfermarias de pacientes com
Covid-19 que não haviam passado por procedimentos geradores de aerossol e em
uma amostra de ar do carro de uma pessoa infectada .Também foi encontrado em
exaustores de hospitais. E assim por diante.
A ciência evoluiu para trazer mais conhecimento.Passamos a
saber que o limite superior para que as partículas possam flutuar é, na
verdade, 100 mícrons, não cinco mícrons, como geralmente se pensa. A alegação
incorreta de cinco mícrons pode ter ocorrido porque os cientistas anteriores
confundiram o tamanho em que as partículas respiratórias poderiam atingir o
trato respiratório inferior (importante para estudar a tuberculose) com o
tamanho em que permanecem suspensas no ar.
Se alguém inalar uma partícula do ar, é um aerossol.A
transmissão de gotículas por uma partícula respiratória maior é possível, se
cair no olho, por exemplo, mas biomecanicamente, a transmissão nasal enfrenta obstáculos, já
que as narinas apontam para baixo e a física de partículas maiores dificulta a
subida pelo nariz. E em medições de laboratório, as pessoas emitem muito mais
aerossóis mais fáceis de inalar do que as gotículas. A proximidade é favorável
à transmissão de aerossóis também porque os aerossóis estão mais concentrados
perto da pessoa que os emite. Como os aerossóis também infectam a curta
distância, medidas para prevenir a transmissão de gotículas - máscaras e
distanciamento - podem ajudar a diminuir a transmissão de doenças transmitidas
pelo ar também. No entanto, esse descuido levou os médicos a supor que, se
essas medidas funcionaram, as gotículas devem ter desempenhado um grande papel
em sua transmissão.
Existem doenças transmitidas pelo ar, como o sarampo, que
são altamente contagiosas e outras, como a tuberculose, que não são. Além
disso, embora o SARS-CoV-2 certamente não seja tão infeccioso quanto o sarampo,
em média, pode ser altamente infeccioso nos eventos de superespalhamento que
levam à pandemia. Muitos vírus respiratórios transportados por aerossóis
sobrevivem melhor em ambientes mais frios e com umidade relativa mais baixa.
Porque demoramos tanto para entender tudo isso ?
Um dos motivos é que nossas instituições não foram criadas
necessariamente para lidar com o que enfrentamos. O foco pré-pandêmico estava
habituado a lidar com outros padrões de transmissão. Os hospitais,por exemplo,
empregam profissionais de saúde treinados e são ambientes bem definidos e
controlados, com considerações diferentes daquelas de uma pandemia em muitos
ambientes do mundo real. Além disso, eles tendem a ter controles de engenharia
extensivos para amortecer infecções, envolvendo padrões agressivos de troca de
ar, quase como estar ao ar livre. Isso é o oposto dos modernos edifícios de
escritórios e mesmo residenciais, que tendem a ser mais vedados para eficiência
energética. Em tal ambiente médico, a higiene das mãos é uma consideração mais
importante, uma vez que a ventilação é cuidada.
Desde o Dr. Chapin, a transmissão de curta distância tem
sido vista como prova de gotículas, a menos que seja refutada por meio de muito
esforço, como finalmente foi feito para a tuberculose. Outro problema
importante é que, compreensivelmente, achamos mais difícil fazer as coisas
voltarem. É mais fácil adicionar exceções e justificativas a uma crença do que admitir
que um desafiador tem uma explicação melhor.
Os povos antigos acreditavam que todos os objetos celestes
giravam em torno da Terra em órbitas circulares. Quando ficou claro que o
comportamento observado dos objetos celestes não se encaixava nessa suposição,
esses astrônomos produziram mapas cada vez mais complexos adicionando epiciclos
- arcos e círculos que se cruzam - para ajustar os céus às suas crenças.
Dizem que Galileu murmurou: “E ainda assim se move”, depois
que foi forçado a retratar sua teoria de que a Terra se movia em torno do sol.
Os cientistas que estudaram bioaerossóis só podem dizer: “E ainda assim ele
flutua”.
Muito do que fizemos durante a pandemia - o teatro excessivo
de higiene e a falha em integrar ventilação e filtros em nossos conselhos
básicos - dificultou muito nossa resposta. Parte disso, como a maneira como
subutilizamos ou até fechamos o espaço ao ar livre, não é muito diferente dos
londrinos do século 19 que despejaram a fonte de seu ar fétido no Tâmisa e
pioraram a epidemia de cólera.
O grande progresso que fizemos pode levar a uma revisão em
nossa compreensão de muitas outras doenças respiratórias transmissíveis que
afetam terrivelmente o mundo a cada ano e podem facilmente causar outras
pandemias.
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