domingo, 29 de outubro de 2023

a filosofia e o terror


 

É impossível não se sensibilizar com os atos de terror perpetrados nas últimas guerras do século XXI: Ucrânia-Rússia e Israel-Palestina. Diante das imagens chocantes das últimas semanas, é mais do que urgente que a Filosofia se manifeste. Conceitos como os de Europa, Ocidente, terror, terrorismo, colonização e a alteridade são fundamentais para esta análise.

A guerra nos impõe um rosário de situações que nos assombra. Entretanto, para disseca-las, é necessário trazer se aprofundar nos conceitos, o ponto de partida de uma base filosófica, bem como o entendimento das bases simbólicas que fomentam as práticas de terror e do terrorismo, que hoje acontecem na região que já foi chamada de Ásia Ocidental. Surge aí a problematização do próprio nome da localização geográfica, o Oriente Médio. Nomear, assim, implica uma ação colonialista européia (inglesa) que ocorreu entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. O resultado foi determinar que as pessoas que ali habitavam foram circunscritas a uma dada região entre o Mar Vermelho e o império inglês nas índias.

O nomear é fundamental aqui na medida em que retirar o ocidente do contexto geográfico não apenas tem implicações nas diferenças de assentamento e culturais, mas, antes, designa um olhar para fora daquela Europa que transcende um continente. Para Edmund Husserl (filósofo ligado à fenomenologia) é fundamental definir o conjunto de características que constitui o espírito de um povo e que este se deve a um local específico de nascimento. Local este que constitui o patamar de valores e crenças. Ora, a Europa designa o ocidente e tem sua origem, seguindo a referência husserliana, na Grécia Antiga.A retirada do Ocidental da Ásia passa a ser fundamental para a exclusão daqueles que não podem ser reconhecidos como europeus e, portanto, adotando entendimento de valores advindos de uma Grécia antiga,passam fazer parte de um mundo dividido entre civilizados e bárbaros.Aqui um primeiro problema posto, o do Nome. Passar a existir um nomear que exclui aquele que não é lido como europeu e, portanto, não é civilizado, comportando-se como um bárbaro.

Entretanto, há um além nesse ato de nomear, pois, a despeito da região geográfica, o Estado de Israel é forjado a partir de um sionismo advindo da tal Europa no sentido husserliano, cujo caráter civilizatório transcende o Continente. A formação do Estado de Israel traz consigo, para além da terra santa, os valores daquele nascimento anterior, que se respalda tanto na filosofia quanto nas ciências europeias.É importante guardar esta questão aqui colocada; afinal, dela derivam apoios a um ou a outro lado no conflito Israel-Palestina, bem como outra nomeação fundamental no conflito, a de terrorista.

Não há conceitos soltos, tampouco deslocados da história. Nesse sentido, é fundamental resgatar os conceitos de Europa, como designação do ocidente, de inimigo, de quem é o outro. As imagens brutais não podem ter um lado apenas na sustentação de que aquele atacado possui o direto de defesa. E já que Guerra existe, as regras devem ser jogadas de modo limpo, e não com limpeza étnica. O conflito, assim, pelas telas midiáticas, demonstra o quanto está pautado pela negação do Outro, um outro que é inimigo na essência e, por esta razão mesma, lhe cabe a morte, mas não sem antes lhe implementar todo medo e terror. O ato de terror perpetrado diante de inocentes se torna ato de terrorismo. Donde a característica de contra-ataque, retaliação ou qualquer meio de defesa ou ataque em tempos de guerra declarada, deixar de ser uma defesa; antes se manifesta como escalada do terror.

Pensando para fora da Palestina, mas circunscrevendo a situação ao Hamas. Esquece-se que o Hamas é formado a partir de palestinos, cuja existência e essência é lida, por Israel, como inimiga. E inimigos,seguindo os princípios animalescos,devem desaparecer. Não obstante, o mesmo ocorre entre o Hamas e os judeus. Ora, se judeus foram Outros desterritorializados e desprovidos de Ser para uma dada Europa, mas hoje o Estado de Israel configura uma Europa extra geográfica,então, ao ser essa Europa, o Estado de Israel traz consigo, não apenas o olhar dos demais grupos da região do Oriente Médio como aquele que invade um espaço na reivindicação de uma terra prometida como também se apresenta enquanto colonizador que destitui um povo, uma etnia de sua existência. Torna-se, portanto, inimigo. Mas o invasor da terra prometida não é, simbolicamente, o europeu, mesmo que este a tenha invadido como colônia; o invasor é o palestino, que sequer deve ter o direito a seu Estado nação, haja vista ser engolfado no termo árabe. A inimizade pública se manifesta na violência. Uma violência que reduz os sujeitos a corpos passíveis do morticínio, sujeitos passíveis de serem violados no aspecto físico e psicológico. 

O Hamas ataca inocentes e civis, em um violento ato de terrorismo. Na ação do contra-ataque, Israel vitima civis e impõe o medo em Gaza. A tensão histórica das várias negações da existência do Outro, palestinos e judeus, acaba por validar a sentença de Hannah Arendt, “se os objetivos não são alcançados rapidamente, o resultado será não apenas a derrota, mas a introdução da prática da violência na totalidade do corpo político”. Afinal, pois os desígnios das ações bélicas não possuem qualquer resultado que não medo e o terror. 

O terror é o uso deliberado de violência, ou ameaça de seu uso, contra pessoas inocentes, com o objetivo de intimidar algumas outras pessoas em um curso de ação que de outra forma não seria necessário.É a morte deliberada de pessoas inocentes, de forma aleatória, a fim de espalhar o medo através de toda uma população e forçar a mão dos seus líderes políticos.O rec recurso ao terror é ideologicamente o último, mas não é o último numa série real de ações, é apenas o último em termos de desculpa. Ou seja, a desculpa é o conceito chave, para ambos os lados, na manutenção do terror. Isso se dá na medida da negação do outro. Impossibilitados de falar abertamente de genocídios, aplicam o terror na tentativa da dupla eliminação.

Albert Camus manifesta suas preocupações ético-políticas a partir de um determinado evento histórico, o nazismo. Todavia, seu olhar, apesar de partir desse evento particular, não se atém a ele. De fato, há um deslocamento em vista da preocupação com a legitimação do terror e com ruptura da liberdade. Estes dois conceitos são advindos de uma necessidade de se dizer “quem é humano ou não”, inerente a um pensamento que emerge no século XX. Se há algo que a Filosofia possa fazer valer numa situação de Guerra, na qual o terror e a negação de humanos emergem, será a problematização diante do contexto da falta do diálogo, da falta de uma política de liberdade, no melhor sentido filosófico; daí ser fundamental compreender conceitos e perceber a impossibilidade da paz.

A paz, na amplitude entre violência e terror, tem se perpetuado como guerra. A base dessa paz só se dá na relação de inimizade, pois o inimigo é sempre passível de eliminação. Enquanto as questões conceituais se mantiverem como mero aparato de justificativa de horrores , e a Filosofia não for ouvida , o cenário de degradação moral da humanidade resultará na inviabilidade civilizacional.

domingo, 22 de outubro de 2023

não é só a ocupação - artigo do filósofo David Benatar

 


Não é só a ocupação

 

 

É raro que toda a culpa por um conflito recaia sobre um lado. Mas isso não significa que a culpa deva ser dividida igualmente.

A culpabilização das vítimas é geralmente considerada inaceitável. Mas quando o crime é um ato extremo de violênciae as vítimas são israelitas, muitas pessoas instruídas parecem pensar o contrário . Após os acontecimentos devastadores de 7 de Outubro, quando os jihadistas do Hamas provenientes de Gaza invadiram o sul de Israel e conduziram uma campanha impiedosa de tortura e assassinato em massa, muitos apressaram-se a colocar a responsabilidade pelo caos diretamente sobre os ombros de Israel. Mesmo quando os horrores da mutilação, da violação e da tomada de reféns são reconhecidos, somos informados de que estes acontecimentos devem ser entendidos no seu “contexto histórico” adequado.

O problema com este argumento é que o contexto histórico proposto é escolhido seletivamente. O ataque do Hamas custou a vida a pelo menos 1.300 israelitas, mas a sua “causa raiz” foi quase imediatamente atribuída à “ocupação”, e não às doutrinas dos seus participantes. De acordo com esta narrativa , o Hamas está apenas reagindo às condições de vida na panela de pressão de uma Faixa de Gaza sitiada. Ou seja , colocar o terrorismo no contexto histórico da “ocupação” não explica nada a menos que “a ocupação” também seja explicada no seu contexto histórico. Nem a resposta israelita está devidamente contextualizada nesta explicação. Não se pensa nas prováveis ​​consequências de Israel não atacar (ou atacar inadequadamente) o Hamas em resposta ao massacre.

Em ciclos de violência, qualquer ato de beligerância pode ser visto como uma resposta ao que o precedeu. O problema é agravado porque a história e o comportamento humano são complicados. Muitas vezes há mal-entendidos, desinformação e respostas desproporcionais, combinados com uma tendência humana de não perceber isso. Portanto, raramente acontece que toda a culpa recaia sobre um lado. Mas isso não significa que a culpa deva ser dividida igualmente. Muitas vezes, um lado é muito pior que o outro, mesmo que o lado melhor esteja longe de ser perfeito.

Identificar a origem do conflito árabe-judaico não é fácil, mas olhar para os motins na Palestina de 1929 e as suas origens é instrutivo. Nesses tumultos, 133 judeus foram mortos e outros 339 foram feridos por árabes. Tal como em 2023, as vítimas foram torturadas e mutiladas. Como resultado da violência de 1929, os judeus foram evacuados de muitas áreas, incluindo a cidade de Hebron, onde mantiveram uma presença quase ininterrupta desde a destruição da segunda Comunidade Judaica em 70 d.C.

É claro que esses distúrbios em si precisam ser explicados. Surgiram dos receios árabes de uma crescente imigração judaica para a Palestina, no contexto da Declaração Balfour de 1917, na qual os britânicos declararam o seu apoio à criação de um Estado judeu na (parte da) Palestina. Mais imediatamente, os árabes ficaram alarmados quando os judeus trouxeram assentos e bancos (para os enfermos) para o Muro das Lamentações, juntamente com uma divisória para separar os sexos, em violação de uma decisão de 1925. Os Árabes consideraram este movimento como parte do “projeto Sionista”, razão pela qual provocou a violência Árabe. Isto, por sua vez, provocou manifestações judaicas no Muro, e essas manifestações estiveram entre os precipitadores dos motins de 1929.

Alguns árabes abrigaram judeus , e árabes também foram mortos durante os motins de 1929. Quase todos estes últimos foram mortos pelas forças britânicas que tentavam controlar a violência, mas em alguns casos, os judeus assassinaram árabes inocentes em ataques de represália. Mas nada disto teve nada a ver com ocupação, pela simples razão de que não houve ocupação judaica na Palestina em 1929. É claro que haviam judeus vivendo lá. Muitos nasceram lá. Outros eram refugiados ou imigrantes. Quaisquer que fossem os sentimentos sobre a imigração, esta não era certamente uma situação para a qual os massacres fossem uma resposta justificável.

O problema em 1929 não era “a ocupação”, mas sim a recusa em aceitar qualquer Estado judeu na Palestina. Esta recusa contrasta com a repetida (embora nem sempre sincera) aceitação judaica de uma solução de dois Estados, incluindo a aceitação pelos judeus da Comissão Peel em 1937 e do Plano de Partição da ONU em 1947. A rejeição árabe da partição então e a rejeição do Hamas a um Estado Judeu está agora enraizada na mesma afirmação de que o Estado Judeu é um empreendimento colonial de colonização. Mas esta caracterização é simplesmente falsa.

Primeiro, Israel não é uma colónia de nenhum país, nem foi estabelecido como tal. Não é como as colónias britânicas na América e na Austrália, nem como as colónias belgas ou alemãs no Congo e no Sudoeste de África. Os judeus não foram enviados por ninguém, nem migraram de um único país ou mesmo de uma única região. Em outras palavras, eles não tinham metrópole. Além disso, possuem laços ancestrais com a terra. É o lugar de onde vieram e de onde foram exilados. Isto não significa negar que os palestinos tenham laços com a mesma terra, mas não é colonização quando aqueles que são expulsos das suas terras regressam a elas. Os exilados palestinos que negam isto poderão perguntar-se se as suas próprias reivindicações sobre alguma parte da Palestina irão evaporar-se com o tempo e, em caso afirmativo, quando?

Em segundo lugar, uma grande proporção da população judaica israelita é descendente de refugiados. Estes incluem também cerca de 650 mil judeus que fugiram da perseguição nos países árabes e no Irã. Outros judeus israelitas são migrantes que se mudaram para Israel porque, por uma série de razões, é onde preferem estar. Refugiados e migrantes não são colonialistas. Aqueles que rejeitam esta distinção serão forçados a reconhecer que existe agora uma substancial colonização muçulmana na Europa, na América e noutros países ocidentais. Esta não é uma caracterização razoável, nem é uma caracterização que os apoiantes ocidentais dos palestinos estarão ansiosos por defender.

Então, e quanto à “ocupação” em 2023? A Faixa de Gaza não está ocupada, e não tem estado desde que Israel se retirou unilateralmente do território em 2005 . É verdade que Israel – juntamente com o Egito – controla as fronteiras de Gaza, mas isso não é o mesmo que ocupação. Também é verdade que o bloqueio parcial (convertido num cerco total após o massacre de 7 de Outubro) trouxe dificuldades aos habitantes de Gaza, mas não é uma imposição gratuita. O bloqueio foi imposto numa tentativa de controlar o fluxo de armas para Gaza, que os israelitas sabiam que o Hamas usaria então para atacar Israel.

Israel continua a ocupar a Cisjordânia, mas a responsabilidade por esse enigma também não pode ser atribuída apenas a Israel. São necessários dois lados para fazer a paz. Qualquer pessoa que sugira que Israel poderia resolver o conflito simplesmente retirando-se da Cisjordânia deveria tentar compreender que os resultados da retirada de Gaza demonstram que isso é impossível. Essa experiência proporcionou uma lição dolorosa sobre os perigos de desocupar terras disputadas na ausência de (e possivelmente mesmo com) um acordo de paz. Desde a retirada israelita de Gaza, aquela área tem sido regularmente usada como campo de lançamento de milhares de foguetes contra Israel (apesar do bloqueio), e agora para o pior massacre de judeus desde os nazis.

Nada disto torna Israel inocente. Há surtos de violência de vigilantes judeus e outros casos de terror contra os palestinos na Cisjordânia. Isto é indesculpável e o Estado de Israel deve garantir que os perpetradores sintam toda a força da lei. E embora o muro de segurança e os postos de controlo em torno da Cisjordânia sejam uma resposta necessária ao terror que levou à sua construção, o processamento do povo palestino através destes últimos deve ser feito com maior respeito pela sua dignidade. Tais críticas são razoáveis.

Mas aqueles que atribuem toda (ou quase toda) a culpa pelo conflito em curso  pela “ocupação” demonstram má-fé ou ingenuidade. O levantamento do bloqueio a Gaza e a retirada unilateral da Cisjordânia equivaleria ao suicídio dos judeus de Israel. O mesmo se aplica à sugestão de que poderia haver um estado unificado de cidadãos judeus e árabes desde o Rio Jordão até ao Mar Mediterrâneo. Aqueles que propõem tal Estado precisam de explicar com que país da região este Estado se assemelharia mais. Nem um único Estado no Médio Oriente se classifica, nem remotamente, tão bem como Israel ainda o faz em termos de liberdades liberais e democráticas. Que razões temos para pensar que uma Palestina unificada seria diferente, especialmente com rejeicionistas anti-semitas como o Hamas no sistema político?

Quando perguntamos o que cada lado do conflito Hamas-Israel poderia fazer de diferente, é muito mais fácil dizer o que o Hamas poderia fazer. Poderia parar de atacar Israel. Se deixasse de se comportar como o regime fundamentalista, repressivo e terrorista que é, e utilizasse os seus recursos para construir um Estado palestino nascente, traria maior prosperidade aos seus cidadãos, aliviaria gradualmente as restrições nas suas fronteiras e demonstraria que a Palestina poderia existir pacificamente. ao lado de Israel. Mas é claro que não é isso que o Hamas quer.


quinta-feira, 19 de outubro de 2023

o não compromisso

 

É preciso união para desobedecer à lógica das guerras e do militarismo.

A guerra é um crime contra a humanidade. O meu compromisso é não apoiar qualquer tipo de guerra e a lutar pela eliminação de todas as suas causas. Leio,com tristeza, as tristes notícias que aparecem em todos os meios de comunicação sobre o que tem sido chamado de “a nova guerra de Israel”.

Fica uma pergunta repleta de indignação : o que tem sido feito , quais iniciativas que buscam construir um mundo em paz com justiça na Palestina, nos territórios ocupados e no Estado de Israel ? O mundo assiste passivamente  à violência do Estado de Israel, que desenvolve políticas genocidas desde 1947. Seu processo de militarização social é uma engrenagem perfeita que prepara as mentes e os corpos de todas as pessoas para a guerra e coloca todos os recursos que dispõe para desenvolver políticas contra a população palestina.

O recrutamento que obriga todos os homens e mulheres judeus (os palestinos com cidadania israelense e mulheres judias religiosas estão isentos) a passar três e dois anos, respectivamente, no exército israelense, socializa a maioria da população na preparação para a guerra, no treinamento com as armas. Por outro lado, há décadas, milhares de jovens palestinos, quase crianças, são presos – quando não gravemente feridos ou assassinados – em cada protesto, em retaliação às ações armadas do Hamas ou simplesmente porque incomodam no processo de usurpação e colonização de sua terra. Centenas de mulheres, centenas de ativistas, de pessoas comuns. Combustível de desespero para incendiar o ódio e a violência.

Entender não significa justificar. Comprometer-se com a paz baseada na justiça e na dignidade não é justificar. Apontar a barbárie cometida pelo Hamas e o restante de facções armadas não é se posicionar ao lado do Estado de Israel, mas, sim, do lado mais humano que nos leva à compaixão. Contabilizar as mortes de todas as pessoas que compõem a sociedade civil,é se posicionar contra um conceito de defesa que se fundamenta na vingança e na violência como único recurso. A linguagem, nesses dias, continua sendo estar ao lado de uns ou de outros e eu proponho sair desta espiral e seguir reafirmando o sólido compromisso de não apoiar as guerras, qualquer guerra.

Quando a violência aumenta, podemos sentir que temos de ‘escolher um lado’, e haverá muitas vozes exigindo que façamos isso. No entanto, também rejeitamos essa forma binária de ver o mundo, que nos faz pensar nos outros como inimigos a serem oprimidos ou mortos e a eliminar a diferença. Não importa o quanto essas demandas sejam fortes, sabemos que existem, existiram e sempre existirão pessoas e comunidades que rejeitam a falsa escolha que a violência exige.

Em vez disso,é preciso se alinhar com aqueles que optam por construir a segurança não com armas e bombas, mas gerando confiança e cooperação de forma não violenta, apoiando aqueles que se negam a matar, mesmo quando estão sob imensa pressão, e talvez até ousar imaginar uma situação mais justa e um mundo pacífico.


domingo, 8 de outubro de 2023

palestinos e judeus


 

Diante do que acontece em Israel , muito se teria que analisar .Porém,existem pessoas justificando a ação do Hamas e da Jihad Islâmica,achando justo e natural o que fizeram ontem (07-10-23), pois Israel os submete a um regime de ocupação colonialista, e é responsável por atrocidades muito maiores.

Analisando um pouco a história : o Hamas e a Jihad Islâmica não existiam antes da ocupação israelense, portanto é um fato que eles são resultado dessa ocupação.Podemos inferir que a opressão ajudou a fomentar a criação destes grupos.Seria uma reação natural e esperada. Uma ação de guerra e domínio historicamente dá surgimento a grupos extremistas e , dependendo das condições incrementadas pelo tempo, ao seu fortalecimento.

Os últimos governos de Israel fizeram de tudo para enfraquecer os grupos mais moderados e seculares, e minou a esperança do povo palestino. Desde 1967, com construção de assentamentos, afrontas aos direitos humanos, humilhações, vergonhas e violência com episódios constantes de mortes e prisões arbitrárias a tensão vem se acumulando.

Explicar não é semelhante a justificar.

O Hamas e a Jihad Islâmica usam de meios terroristas: ataque indiscriminado contra civis,se mesclando a eles,e os colocando em risco. A carnificina era uma questão de tempo. Centenas , por enquanto,de mortos,na maioria das vezes indefesos.Invadiram pequenas cidades e executaram quem viam pela frente.Incendiaram casas com pessoas dentro. O alvo não eram as forças do Estado. O alvo não eram os soldados, o exército de ocupação, as autoridades. O alvo era o que viesse a ser encontrado. Não houve uma dimensão maior porque não tiveram o controle por mais tempo.

Isso é uma reação razoável e justificada? Alguns argumentam que o exército de Israel também mata civis. É verdade, e isso é abominavelmente terrível.Mas nem nos piores bombardeios das mais cruentas operações em Gaza ou nas intifadas, o poderoso exército de Israel causou tantas mortes num só dia.O argumento ainda poderia ser :  "mas Israel matou mais”. Sim, e dessa vez vai matar mais também. Bem mais. E isso é o que é inaceitável.

A essência assustadora é que foi possível ter uma ter uma noção do que o Hamas faria se houvesse igualdade de forças. O objetivo deles não é combater a ocupação e os seus meios não legítimos. O objetivo deles (declaradamente) é exterminar os judeus.

O conflito não é simétrico e não é só entre Israel e o Hamas, envolve em muito as populações civis. A ocupação acaba reprimindo os palestinos dia após dia, enquanto os israelenses vivem próximo à normalidade.O que o Hamas fez não coloca os dois lados em igualdade de condições. A ocupação e a opressão precisam acabar, um Estado palestino independente e soberano precisa ser criado urgente. E isso é responsabilidade de Israel.

Quem está morrendo, são, em geral, habitantes pobres do sul do país. E todos nós sabemos o que acontece quando se incentiva o ódio nacionalista. Acaba a solidariedade entre os povos, a consciência de classe desaparece, e o fascismo floresce.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

o mal que nos habita

Adolf Eichmann , nazista responsável pela logistica do assassinato em massa dos judeus na segunda grande guerra, ao ser julgado pelos crimes cometidos disse em sua defesa: “Essas eram as instruções, se elas [as pessoas] seriam mortas ou não, as ordens tinham que ser executadas”, sem esboçar nenhuma emoção. Um ano depois foi condenado e enforcado.

Todo o julgamento foi amplamente divulgado e gerou diversas repercussões importantes. A mais famosa talvez seja a da expressão “banalidade do mal”, cunhada por Hannah Arendt, que esteve presente no julgament e resultou num livro com o mesmo título. Acompanhando o contexto, Günther Anders, filósofo judeu alemão, resolveu escrever uma carta para Klaus Eichmann, filho mais velho do conhecido nazista.

Destinatário e remetente com trajetórias cruzadas: o filho de um nazista e um judeu alemão, que sobreviveu por ter escapado aos planos do pai do primeiro. Apesar disso, Anders se dirige ao destinatário com respeito, negando que a desumanidade do pai  implique em qualquer responsabilidade do filho, ao mesmo tempo em que lhe cobra uma atitude: “O fato de descender do seu pai não lhe dá o direito de se solidarizar com ele ­— ao contrário, você é obrigado a se desligar de sua origem, e renegá-lo”.

O tom cordial só vai se transformar no post scriptum da carta, quando Anders, um tempo depois de tê-la escrito, conta ter se deparado com uma declaração de Klaus Eichmann a favor do pai. Ao longo do texto, Anders denomina a eliminação industrial de milhões de seres humanos como “monstruosa” e diz recorrer ao passado para “transformá-lo em outra coisa”. Argumenta que os pressupostos que permitiram o extermínio não foram transformados e, portanto, o “monstruoso” não foi uma exceção, logo há um dever de lutar contra possíveis — e prováveis — repetições.

A partir do apontamento de que o “monstruoso” foi possível pelas mãos de vários “Eichmanns”, Anders desenvolve dois pontos que considera as raízes do genocídio. O primeiro é o de que “nós nos tornamos criaturas de um mundo técnico”, o que leva ao grau máximo de mediação dos processos de trabalho e impede as pessoas de perceberem e sequer imaginarem os efeitos de cada ação tomada. O sentimento de responsabilidade por tais consequências se anula, na medida em que o efeito da ação é elevado demais para tal grandeza ser compreendida. Tornamo-nos “analfabetos emocionais”.

O autor deixa claro que este não era o caso de Eichmann, que participou da elaboração minuciosa da estratégia e, portanto, seria absurdo supor que agia sem saber das consequências de suas ações. Anders afirma que não estamos submetidos a essa dinâmica de forma servil: ao tentar imaginar o resultado de uma ação e fracassar nesta tentativa, acende-se um alerta, uma chance de que tal ato seja revisado.

A segunda raiz do monstruoidade reside “no caráter maquinal do nosso mundo atual”. Para que o “fracasso” seja frutífero e usado como alerta, a tentativa de imaginar deve ser feita de maneira real, ação que é geralmente impedida ou dificultada pela corrente moral do trabalho, dividido e especializado, cujo princípio é o desempenho e o objetivo de acumulação máximos.

Günther Anders é um pessimista convicto. Tenta nos convencer de que a ameaça monstruosa do “reino por vir” é muito pior do que o Reich do passado — o que se explica pelo contexto em que escreve sobre a Guerra Fria e a ameaça do armamento atômico, para a qual muitos trabalham sem questionar, como peças de uma máquina. . Nisso se baseia o título do livro: somos todos “filhos de Eichmann” por não questionarmos a destruição que se origina na ação de cada um

O autor acredita na agência humana contra o destino monstruoso, e este é o objetivo final da primeira carta: “Em quase todos os países da Terra há um movimento de pessoas que lutam contra o princípio de Eichmann”, diz, referindo-se aos grupos contrários ao armamento nuclear. Aderir a esse movimento seria a grande chance de redenção possível a Klaus Eichmann.

Vinte e cinco anos depois, outras questões o levam a escrever novamente a Klaus, em tom bem diferente do da primeira carta. Há em 1988, segundo Anders, uma intensificação da “situação Eichmaniana”. Mas não é só isso que o motiva a escrever, mesmo diante da não resposta da primeira. Sua preocupação agora seria a mudança na mentalidade político-moral percebida na Alemanha e na Áustria, que teria regredido nesse intervalo de tempo, com o fortalecimento não dos “velhos nazistas” mas de “novos nazistas”, que minimizam, relativizam e negam Auschwitz, e instrumentalizam as discussões acerca da culpa coletiva. Nesse segundo momento, ele se nutre de discursos contemporâneos, como a crescente problemática em torno da comparação entre Hitler e Stálin. E mais uma vez argumenta que Klaus tem a chance de deixar de ser filho de seu pai — na medida em que se posicione.

A leitura das duas cartas, separadas por mais de duas décadas, é complementada pelo posfácio “De onde vêm os monstros”, escrito pelo tradutor Felipe Catalani, pesquisador da obra de Anders. O texto contextualiza as duas mensagens em relação à trajetória do autor e de outros autores que desenvolveram ideias relacionadas, como a já citada Arendt e Adorno. Assim, potencializa a atualidade da mensagem contida nos escritos de Anders, de que há um alerta trazido pela reflexão a partir do passado. Para este debate, o público do Brasil de 2023 tem mais esse ponto de partida.