Vivemos num multiverso digital : um mundo infestado de
informações enganosas incrustadas em sofisticadas redes de desinformação.
Milhões de pessoas são submetidas a uma dieta sistemática de mentiras e teorias
da conspiração.. São “notícias”falsas que circulam pelas redes sociais,
distorcendo a realidade, sequestrando evidências, inventando fatos e semeando
sentimentos de ódio, medo e desconfiança na população. Espalham-se como um
vírus altamente contagioso aproveitando-se da maneira como a maioria das
pessoas consome e retransmite informações atualmente: pela tela de um telefone
celular, via aplicativos de mensagens e redes sociais, repetidas vezes ao dia.
O problema não é novo. Informações falsas ou distorcidas são
empregadas para influenciar a opinião pública sobre os mais diferentes temas
desde os primórdios da sociedade, seja na forma de propaganda enganosa ou de
notícias enviesadas por interesses políticos, econômicos e ideológicos. O
surgimento das mídias digitais, porém, ampliou imensamente o poder de fogo e o
alcance dessas “armas de desinformação em massa”, tornando-as muito mais
perigosas. O que era um revólver virou uma metralhadora multimídia, de longo alcance
e sem limite de munição.
Segundo o Instituto Igarapé, que analisa o impacto da
desinformação nas últimas eleições presidenciais no Brasil, desde 2014 o país
se transformou num “verdadeiro laboratório de desinformação”, com processos eleitorais
marcados, cada vez mais, pela “disseminação maciça de notícias falsas e formas
mais amplas de desinformação online”.
Muito além dos factoides de campanha, gerados para manchar a
reputação ou enaltecer as virtudes de um determinado candidato no horário da
propaganda eleitoral, a desinformação
circula por todos os nichos do ecossistema global de comunicação, desde
os calabouços mais escuros da deep web até as torres mais opulentas da mídia
corporativa. Uma diferença fundamental, segundo especialistas, é que as
mentiras não buscam mais apenas atingir a reputação de uma pessoa em particular
(um adversário político, por exemplo), mas manipular o comportamento e a
opinião da população sobre temas diversos que atendam aos interesses
(políticos, econômicos e/ou ideológicos) de determinados grupos que produzem e
financiam essa desinformação. Estamos imersos numa guerra de informações, que
permeia todas as esferas da sociedade. E o mais frustrante é que a maioria das
pessoas não sabe que isso está acontecendo. É uma guerra travada no ambiente
digital, mas com consequências drásticas no mundo real. A desinformação pode
matar pessoas; e matar democracias, também : a mortalidade elevada da pandemia
de covid-19 e os recentes ataques às instituições democráticas no Brasil e nos
Estados Unidos são exemplos disso.
Jamais poderemos quantificar isso precisamente, mas não
existe nenhuma dúvida sobre a relação de causa e efeito entre desinformação e a
morte de pessoas por covid-19 no Brasil. A disseminação de informações falsas
sobre vacinas, máscaras e outras medidas de proteção dificultou o controle da
pandemia e expôs milhões de pessoas a um risco aumentado de infecção,
adoecimento e morte por covid-19. A comunicação é central no gerenciamento de
uma crise que depende do comportamento das pessoas para ser solucionada : se a
comunicação aponta na direção errada, no campo da saúde pública, o resultado
pode ser fatal. A mortalidade da pandemia no Brasil foi uma das mais altas do
mundo, quatro vezes maior do que a média mundial, com cerca de 3.300 mortes por
milhão de habitantes registradas no País, ante 870 mortes por milhão de
habitantes na média global, segundo números compilados pela Organização Mundial
da Saúde e visualizados por meio da plataforma Our World in Data.
Assim como numa pandemia biológica, muitas pessoas carregam
e transmitem o vírus da desinformação sem saber que estão infectadas (ou sendo
influenciadas) por ele. Em última instância, a desinformação busca manipular a
percepção pública da realidade como um todo; por isso ela contamina todas as
áreas do debate público e não apenas o noticiário político . Essa manipulação é
feita por pessoas “que se colocam de fora do processo democrático” e que sabem
usar o maquinário das mídias digitais para construir cenários fictícios — mas
de aparência extremamente realista — dentro dessa maquete social. Todo esse
aparato tecnológico que foi construído dentro da internet nos últimos 20 anos
nos colocou, de certa forma, como espectadores, voluntários e involuntários, de
um espetáculo no qual não temos acesso aos bastidores nem sabemos quem está
cumprindo qual papel. É improvável esperar que as pessoas sejam capazes de
identificar todas as formas de desinformação por conta própria, porque elas são
construídas de uma forma muito crível, quase sempre usando uma pitada de
realidade para conferir um verniz de veracidade a alguma narrativa mentirosa.
Um exemplo foi a mensagem falsa em que a Polícia Militar
supostamente recomenda às pessoas não sair de casa após as 22 horas : muito bem
redigida, ela se aproveita de uma preocupação legítima com a questão da
criminalidade urbana para propagar uma sensação de medo na sociedade, com o
objetivo de torná-la mais permeável à aceitação de políticas armamentistas e
intervencionistas. A mensagem circula amplamente desde 2018 e já foi desmentida
pela Polícia Militar de vários Estados. O texto não pede voto em ninguém, mas
busca construir uma realidade adulterada, na qual as pessoas, sentindo-se
ameaçadas, se tornam mais inclinadas a apoiar políticas e políticos que
defendem intervenções radicais na segurança pública, como armar a população ou
ampliar o conceito de excludente de ilicitude para policiais.
A desinformação é uma forma desonesta de propaganda, que não
diz que é propaganda. É uma mentira disfarçada de verdade, construída para
alterar o comportamento das pessoas. Os disfarces são muitos e variam de acordo
com o objetivo da desinformação e o meio pelo qual ela vai ser disseminada. Não
precisa nem ser uma notícia falsa, propriamente dita. Pode ser uma notícia
verdadeira, porém tirada de contexto ou manipulada de alguma forma para inflar
sua relevância ou lhe conferir algum significado espúrio. Pode ser um boato
espalhado por aplicativos de mensagens; às vezes na forma de texto, às vezes como
arquivo de áudio, gravado por alguém que se apresenta como testemunha ou
delator de alguma informação secreta. Pode ser um vídeo de alguém de jaleco
distorcendo evidências científicas, oferecendo curas milagrosas ou propagando
teorias conspiratórias de que o homem nunca pisou na Lua, que as vacinas
alteram o seu DNA, que as universidades públicas no Brasil são centros de
doutrinação comunista ou que o desmatamento na Amazônia não passa de uma
mentira inventada por ONGs internacionais para destruir o agronegócio
brasileiro. A ficção, diferentemente da verdade, não é limitada por fatos, mas
pela criatividade de seu criador.
A guerra está no seu bolso”, resumiu a jornalista filipina
Maria Ressa, em uma conferência de três dias sobre desinformação, promovida em
maio pela Fundação Nobel e a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
Mais especificamente, a guerra está embutida naquele aparelho eletrônico
retangular que vive dentro dos nossos bolsos: o adorado e famigerado
smartphone; principal vetor usado pelo vírus da desinformação para se espalhar
na sociedade e infectar a mente das pessoas. A internet e as redes sociais,
segundo ela, estão sendo usadas por agentes maliciosos em diversos países —
incluindo o Brasil — como “um sistema de modificação comportamental” da
sociedade, com consequências potencialmente desastrosas para a democracia (por
meio da radicalização política e da interferência em processos eleitorais),
para a saúde pública (pela disseminação de notícias falsas sobre vacinas, por
exemplo), e até mesmo para o futuro da espécie humana no planeta (pelo
negacionismo da crise climática e de outras ameaças de caráter global).
“Uma bomba atômica invisível foi lançada sobre o nosso
ecossistema de informações”, discursou Ressa, em 2021, após receber o Prêmio
Nobel. O primeiro passo para reconstruir o que já foi destruído e desarmar
outras bombas que estão por vir (com poder de destruição ainda maior,
amplificado pelos avanços da inteligência artificial) é a “restauração dos
fatos”, segundo ela. “Sem fatos não pode haver verdade. Sem verdade não pode
haver confiança. Sem confiança, não temos uma realidade compartilhada, não
temos democracia, e torna-se impossível lidar com os problemas existenciais do
nosso tempo”.
A perda dessa “realidade compartilhada” é uma peça-chave do
problema. Ela se dá pela fragmentação da sociedade em grupos culturalmente
fechados, e frequentemente antagônicos, nos quais as pessoas só se relacionam
com aquelas que pensam igual a elas e consomem informações que confirmam suas próprias
convicções. São as chamadas bolhas ou câmaras de eco digitais, nas quais a
desinformação encontra campo fértil para crescer raízes sem ser contestada.
Essa fragmentação é impulsionada em grande parte pelos
algoritmos das redes sociais, que são programados para customizar a
visualização de conteúdo aos interesses e preferências de cada usuário. Um
sistema excelente para vender anúncios e produtos via microtargeting
(propaganda customizada), mas péssimo para a manutenção de uma realidade
compartilhada e, consequentemente, de uma democracia saudável. Isso porque a
customização não se aplica apenas aos anúncios, mas também às notícias (falsas
e verdadeiras), artigos de opinião, comentários, postagens, sugestões de
leitura, recomendações de amizade, resultados de busca e tudo mais que qualquer
pessoa visualiza na internet.
O que você vê não é o que eu vejo. As notícias que aparecem
para você são diferentes das que aparecem para mim. Assim, fica difícil
compartilharmos uma visão de mundo. As bolhas digitais têm o atrativo de serem
ambientes confortáveis, onde as pessoas têm seus desejos de consumo atendidos,
só recebem notícias que confirmam suas opiniões, interagem com pessoas que
pensam igual a elas e, portanto, não precisam responder perguntas incômodas nem
se dar ao trabalho de questionar suas convicções. Os algoritmos nos enxergam
não como indivíduos autônomos, mas como indivíduos que se agregam em clusters
que eles mesmos formam.
É nesses espaços digitais herméticos e recheados de viés de
confirmação que os arquitetos da desinformação constróem seus cenários
fictícios, isolando as pessoas da realidade coletiva e dificultando o debate
democrático sobre desafios compartilhados da sociedade. Uma das comorbidades
associadas a essa fragmentação é o aumento da polarização e da radicalização
política. Nesse cenário incendiário, desinformação e polarização caminham de
mãos dadas, numa relação simbiótica em que uma se beneficia do desenvolvimento
da outra: a desinformação alimenta a polarização, e quanto mais polarizada a
sociedade, mais suscetível as pessoas de cada lado se tornam a aceitar e
propagar conteúdos que reafirmam suas convicções — em contraponto à convicção
dos outros.
Os arquitetos da desinformação tendem a empacotar suas
mensagens da forma mais sensacionalista, ameaçadora e conspiratória possível,
com o intuito de maximizar o engajamento e a disseminação delas nas mídias
digitais. Debates sobre políticas públicas e disputas eleitorais são
apresentados como guerras entre o bem e o mal, frequentemente permeadas por
discurso de ódio, teorias conspiratórias, demonização de inimigos e pregação
religiosa. O propósito da desinformação não é só fazer com que você acredite
numa mentira; é fazer com que você odeie as outras pessoas que não acreditam
nela.
A ciência não fica ilesa nesse processo; nem os cientistas
nem as instituições nas quais eles trabalham. O cientista é um inimigo natural
da desinformação, por isso ele precisa ser combatido. E como é que você faz
isso? Minando a credibilidade das universidades e dos cientistas. A mesma
lógica se aplica à estratégia de sabotar a confiança da sociedade nos veículos
tradicionais de imprensa e redirecioná-la para canais alternativos que, na
verdade, são pouco confiáveis.
Regulamentação das redes
Reconhecida a ameaça, falta organizar a defesa. Como baixar
a fervura e reduzir a formação de bolhas que propagam desinformação quando
todos os botões do comportamento humano e das redes sociais parecem
pré-dispostos a aumentá-la?
Entre as várias ações defendidas por especialistas, duas que
costumam encabeçar a lista de prioridades são a educação midiática e a
regulamentação do funcionamento das plataformas digitais (redes sociais e
aplicativos de mensagens). A primeira se aplica aos usuários e a segunda, às
grandes empresas que operam essas plataformas e, consequentemente, controlam
grande parte do ecossistema global de informações. O problema não está apenas
na má-fé dos operadores das mídias hiperpartidárias, mas em todos nós que
colaboramos para a degradação da esfera pública ao transformar o debate
político numa guerra de informação pouco reflexiva, na qual compartilhar
matérias noticiosas de baixa qualidade é um expediente socialmente aceito. A
regulamentação das mídias digitais é hoje prerrogativa básica para a construção
de uma solução sistêmica para a crise global de desinformação. A ideia de que
podemos solucionar esse problema apelando para a capacidade de pensamento
crítico das pessoas é ingênua. É errado olhar apenas para o indivíduo. Precisamos
olhar também para o cenário mais amplo da mídia e pensar na responsabilidade
das plataformas.