sábado, 25 de julho de 2020

Cloroquina : uma reflexão final



Para que uma verdade científica se estabeleça, não basta escolher um estudo ou vários cujos resultados sejam favoráveis a uma opinião pré concebida.

Nem todos os estudos científicos são originados da mesma forma. Numa pandemia eles geralmente não cumprem , por uma questão de urgência , os trâmites de tempo necessários.

No caso da cloroquina para o tratamento da Covid 19 as evidências nem se qualificariam , em tempos normais, para uma simples cogitação de seu uso. Elas são fracas, de má qualidade ou inadequadas. Nas ultimas semanas , os estudos que se fundamentaram numa estrutura de evidências , reiteraram a ineficácia de sua eficácia.

As boas práticas da medicina baseada em evidências são rigorosas ao exigirem estudos que sejam randomizados e controlados e preferencialmente duplo-cegos com grupo placebo.

Seriam assim : os participantes são distribuídos ao acaso em grupos (são “randomizados”). Um dos grupos recebe o medicamento a ser testado. O outro, um placebo, tomando o cuidado de não deixar ninguém, nem pacientes nem experimentadores, saberem o que cada paciente está recebendo, se o remédio de verdade ou o placebo (por isso, o procedimento é “duplo-cego”).

Isso tudo é cuidadosamente feito para minimizar a interferência dos chamados “fatores de confusão”, elementos que poderiam influenciar o resultado do experimento para além do medicamento sendo testado. Por exemplo : um eventual desequilíbrio entre os grupos (se um deles tiver mais pessoas jovens, ou em estágios iniciais da doença) e o próprio efeito placebo.Isso interferiria nos desfechos.

Uma polêmica se instala quando estudos em células e animais , que são feitos em etapas mais preliminares,são extrapolados para humanos. Nem tudo que funciona em células ou animais funciona em gente. Nem tudo que apresenta resultado em laboratório vai funcionar diante da complexidade metabólica do ser humano. Mas a real confusão real vem à tona quando começam a surgir os estudos observacionais, principalmente os chamados estudos  retrospectivos.Ou seja : constatações geralmente viciosas de observações na prática clínica.

Nesses casos não existe controle, ou têm apenas muito limitado, sobre os fatores de confusão que podem surgir. O tipo mais comum que tem aparecido nesta pandemia envolve análise retrospectiva dos resultados de pacientes que recebem diferentes tratamentos, comparando a evolução de cada um.

Existe,entretanto, uma parte boa nos estudos observacionais. Eles podem estabelecer correlações que poderiam servir de base para os randomizados e controlados. Mas eles geram, sem comprovar, hipóteses. Esta é a sua grande limitação. Desta forma, alguma medicação pode ser promissora mas,depois, ver seu suposto benefício “desaparecer” quando testada de forma correta.Normalmente, a fim de que uma medicação seja aprovada, é necessário haver ao menos dois estudos randomizados e controlados com o mesmo resultado positivo.

No caso da cloroquina temos estudos suficientes que demonstram que a medicação não funciona, incluindo três que avaliaram justamente o uso “precoce”, ou nos primeiros sintomas, como tem sido promovido pelo Ministério da Saúde.

Esta pandemia tem gerado crenças que remetem ao período do Renascimento. Algumas delas :

1.       Um tratamento novo,um exame novo,uma nova vacina fará bem ao paciente

2.       A experiência clínica pessoal do médico e a opinião dos especialistas podem (ou para alguns, até devem) ser consideradas quando da prescrição de medicamentos e tratamentos para os seus pacientes, mesmo que contrariem as evidências científicas.

3.       Na ausência de evidências científicas, pode-se (ou para alguns, até deve-se) usar a compreensão da fisiopatologia da doença, os achados das pesquisas clínicas da fase I ou estudos in vitro e demais fases para se estipular uma conduta

4.       Frente a uma situação clínica grave, seja em relação a um indivíduo, ou na saúde pública (como na atual pandemia), não há tempo para se considerar a Medicina Baseada em Evidências e deve-se utilizar medicamentos e tratamentos, mesmo que não haja evidências científicas da sua efetividade e segurança, pois “é melhor se fazer alguma coisa, do que não fazer nada”.

 

Defender estas crenças não é essencialmente diferente de se defender o uso de simpatias, encantamentos, sangrias ou de qualquer outra forma de crendice da Idade das Trevas.

A ressaltar que dos estudos in vitro com resultados positivos,apenas uma pequena parte (10%), resultam em medicamentos aprovados para uso.

Qualquer prescrição destituída de evidências clínicas de efetividade e segurança vai colocar em risco a saúde da população.

Médicos que defendem estas crenças, nos remetem a tempos pré-científicos. É uma ignorância ao respeito da sociedade à própria atuação dos médicos que apenas surgiu com as conquistas da Revolução Científica e hoje representadas na prática clínica pela Medicina Baseada em Evidências.

 Isaac Asimov  tem uma frase que lapida bem o nosso momento : “se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los”.


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