Nunca se ouviu falar
tanto sobre narcisismo como nos últimos anos. Seja em relações amorosas ou no
caso de mães narcisistas — um perfil bastante popular ultimamente, ainda que,
segundo as estatísticas, haja mais homens narcisistas do que mulheres —, o
termo parece ter ganhado tração na cultura popular.
A palavra , no seu uso cotidiano, geralmente descreve
pessoas egoístas, inseguras, com uma certa instabilidade emocional, muito
voltadas só para si e com dificuldade de se colocar no lugar do outro
.O narcisismo está na base da organização psíquica. É o
primeiro esforço do que gradualmente vai se configurar como a personalidade da
pessoa, com todos os seus traços, defeitos, inibições, desejos e
angústias.Nesse sentido, uma estruturação narcísica precária ou menos estável
implica a busca por compensações narcísicas no dia a dia. Ou seja, o narcisismo
em si é uma etapa central do desenvolvimento da nossa personalidade. Um
desequilíbrio nessa fase é que pode gerar o narcisismo patológico que
conhecemos.
Freud afirmou que o narcisismo tem a ver com o processo de
construção do amor próprio ou autoestima — “o investimento afetivo no eu”.
Então, é uma etapa da formação fundamental para que a gente sinta que a vida
vale a pena. Porém, esse amor por nós mesmos não vem só de dentro. Na equação,
também há um grande impacto do outro, em processos sociais como a relação com a
família — durante a infância, especialmente das fantasias projetadas pelos
pais. E essa interdependência do amor próprio com o amor que a gente tem dos
outros pode não acontecer de uma maneira mais favorável.
O interesse recente no tema faz sentido em uma sociedade
neoliberal que já vem cultivando o espírito individual em suas diferentes
formas . A linguagem digital e as redes se associam com isso. A gente fala
muito no isolamento em bolhas digitais, no fechamento dentro de comunidades que
são ecos para os nossos valores e orientações políticas.
As redes podem ser vistas como o ápice desse processo de
individualização. Um sistema inteiro para minerar nosso interesse por nós mesmos.
. Nelas, o jeito que eu me apresento para o mundo torna-se o centro da vida
afetiva e profissional.
Dentro desse contexto, o comportamento narcisista seria uma
novidade que infla e extrapola o processo de individualização hoje considerado
natural. Mas, numa sociedade que cultiva cotidianamente ideais de meritocracia,
sucesso e desempenho individual, o comportamento narcisista não pode ser bem
visto ou até mesmo incentivado? Em outras palavras, não somos todos um pouco
narcisistas?
Na introdução do livro “A Cultura do Narcisismo” (Fósforo,
2023), o historiador e crítico cultural norte-americano Christopher Lasch
(1932-1994) faz referências à “cultura do individualismo competitivo” e à
“busca da felicidade em um beco sem saída de preocupação narcísica com o self”.
Mais à frente, diz ainda que “o novo narcisista é assombrado não pela culpa,
mas pela ansiedade. Ele não busca inculcar suas próprias certezas nos outros,
mas encontrar sentido na vida.”
Publicada originalmente em 1979, a obra ganhou sobrevida e
tem recebido atenção renovada. Não é difícil entender porquê. Décadas antes das
redes sociais ou do universo de influenciadores digitais, Lasch já juntava o
culto às celebridades, a perda de vínculos coletivos, a preocupação excessiva
com o autocuidado e a fuga dos sentimentos para explicar comportamentos que
descreveu como narcisistas, típicos da sociedade norte-americana da época.
Uma das principais argumentações de Lasch é que as pessoas
estavam perdendo os vínculos com as famílias, grupos políticos e movimentos
sociais para passar a dedicar-se muito mais ao próprio bem-estar. E se, para
compor esse fenômeno, o historiador falava do self-made man e do culto a
celebridades no esporte, na realidade contemporânea adicionamos à conta
fenômenos como os influencers e celebridades. Hoje, vários fazem um trabalho de
engajamento com os fãs, que se sentem respondidos, enxergados. Isso muda a
relação, porque alimenta ainda mais esse culto à personalidade e também a ideia
de que você pode ser uma dessas personalidades, usar um filtro para ficar
famoso nas redes sociais.. Acaba intensificando ainda mais o que Lasch chama de
narcisismo social.
A própria realidade das redes, com estímulos eternos no feed
e a busca por likes, incentiva impulsos narcisistas. Nós vivemos num caldo de
cultura onde, até em meios corporativos, a autopromoção e o marketing pessoal
se tornam um modelo a ser copiado.
O narcisismo hiperdilatado dos nossos tempos acaba criando
uma dualidade: uma sociedade radicalmente individualista precisa ser também
radicalmente desigual.“Não há lugar para todos, só para aqueles que conseguem
performar um hiperdesempenho. Consequentemente, o único jeito de chegar lá é
ser a sua melhor versão.
Mas, existem algumas contradições básicas dessa premissa:
não é possível ser o melhor o tempo todo, muito menos onipotente. O problema é
que somos constantemente bombardeados com a ideia de que podemos sim ser, fazer
e comprar tudo que quisermos — o chamado “eu ideal anabolizado”.
Certos comportamentos típicos do narcisismo, mas bastante
disseminados na sociedade, também podem fazer com que, sem nos darmos conta,
deixemos de aproveitar momentos importantes do cotidiano. Por exemplo, uma
viagem de férias. Hoje, existem pacotes de turismo em que até o fotógrafo está
incluso. Ele registra fotos instagramáveis para propagandear nas redes sociais.
Nesses casos, o passeio em si fica em segundo plano. O que interessa é a foto.
Mas alguns comportamentos narcisistas não são até mesmo
recomendáveis na realidade em que vivemos? Sim. Existe o “egoísmo sadio”
defendido por Nietzsche : um nível razoável de egoísmo que precisa ser
exercitado, cultivado e aprimorado para corresponder às expectativas
contemporâneas. Seria uma espécie de antídoto contra o que se chama de
narcisismo defensivo — aquele que produz ilusões de onipotência mas, na
verdade, oculta um quadro de baixa autoestima e carência de aprovação.
Nesse processo social de individualização, cada vez mais
gente encontra dificuldade de lidar com suas experiências e seu anseio de
viver, e acaba se voltando para dentro de si. Até porque o narcisismo é um
sofrimento, uma defesa contra determinadas dificuldades que a vida impõe,
inclusive a partir do meio social.
Essa perda de coletividade pode alcançar um ponto crítico
num momento em que os desafios sociais e ambientais se mostram cada vez mais
complexos e aparentemente fora do nosso alcance: a Terra vive próxima de um
colapso climático, líderes extremistas têm chegado ao poder em boa parte do
mundo e a Inteligência Artificial paira como uma ameaça sobre o futuro do
mercado de trabalho. Embora pareça a melhor época para integrar ações
coletivas, não é necessariamente isso que está acontecendo. Numa situação
limite como essa, muita gente pode acabar se isolando “de maneira
compensatória”..A falta de alicerces mais sólidos nos faz buscar compensações
narcísicas fortuitas e fugazes que certa forma nos dê estabilidade
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