Durante a pandemia do Covid-19, o negacionismo no Brasil
tomou proporções alarmantes, manifestando-se na negação ou minimização da
gravidade da doença, no boicote às medidas preventivas, na subnotificação dos
dados epidemiológicos, na omissão de traçar estratégias nacionais de saúde, no
incentivo a tratamentos terapêuticos sem validação científica e na tentativa de
descredibilizar a vacina, entre outros exemplos. O negacionismo acarretou
incertezas, influenciou na adesão da população aos protocolos de prevenção,
comprometeu a resposta do país à pandemia e resultou em mortes e sequelas pela
doença.
O negacionismo vai muito além de um boato ou fake news. É um
sistema de crenças que, sistematicamente, nega o conhecimento objetivo, a
crítica pertinente, as evidências empíricas, o argumento lógico, as premissas
de um debate público racional, e se mantém por bolhas organizadas de
desinformação.
Os negacionismos (neonazismo, criacionismo, terraplanismo,
entre outros) podem ser motivados por interesses diversos e os grupos de
negacionistas são distintos entre si, mas têm características em comum, como o
oportunismo político e a incoerência.. Em alguns casos ocorre uma dissociação
cognitiva: as evidências e fatos entram em choque com valores ou crenças
subjetivas, então o negacionista seleciona uma narrativa alternativa para
explicar a realidade. Nesse contexto, a
coerência torna-se irrelevante. Um exemplo disso é o modo como os discursos
negacionistas em relação à pandemia foram se a modificando: no começo, os
negacionistas diziam que a Covid era uma farsa, uma “gripezinha”. Depois,
admitiram a existência da doença, mas negaram a sua gravidade e criaram teorias
conspiratórias, atribuindo aos chineses a criação do coronavírus, como uma
suposta arma biológica. O mesmo fenômeno foi verificado em relação às formas de
prevenção da doença. A ignorância não é causa do negacionismo, mas sua
consequência, e fabricada propositalmente. É uma construção articulada por
pessoas que possuem boa informação e meios sofisticados de produzir comunicação
e que constroem espaços seletivos, no qual grupos enormes de pessoas são contaminadas
pela desinformação.
Muitas questões sobre o Covid-19 têm sido alvo de dúvidas e
debates entre especialistas, o que é natural no processo de construção do
conhecimento científico. O negacionismo, por sua vez, nega evidências e simula
controvérsias onde na verdade há consenso.
O livro Merchants of doubt (Mercadores da dúvida), de Naomi
Oreskes e Erik Conway, expõe como a opinião pública pode ser manipulada a
partir de falsas controvérsias e é uma referência obrigatória sobre essa
questão. A negação dos malefícios do tabagismo e o negacionismo ambiental são
alguns exemplos trazidos pelo livro de como a estratégia negacionista pode servir
a interesses econômicos e políticos.
O negacionismo não é mero sinônimo de desinformação nas
sociedades. Na verdade, é resultado de disputas de grupos de interesse que
procuram exatamente camuflar suas motivações e ganhos, inventando controvérsias
científicas e falta de consensos na ciência, mesmo nos casos em que eles
inexistem, para atravancar a sua efetivação em políticas, ou para direcioná-las
em conformidade aos seus interesses O negacionismo está ligado a amplos grupos
sociais que não se sentem representados pelos arranjos políticos e econômicos
dominantes no mundo globalizado e que julgam que as instituições sociais
consolidadas - imprensa, universidades, sistemas políticos, organismos de
governança internacional - são controladas por interesses econômicos dos
poderosos.Partem de uma percepção crítica que em si não é descabida, embora
genérica demais - a influência do poder econômico ou político no
"sistema" - para negar as bases culturais e institucionais das
democracias modernas.
São grupos fundamentalmente conservadores, baseados em
valores diversos - religiosos, identitários, étnicos, nacionalistas - manejados
por líderes políticos oportunistas, mas que oferecem uma sensação de
pertencimento e um conjunto de soluções simplórias para "melhorar" o
mundo”.
Negacionismo, teorias conspiratórias e pseudociência são
estratégias típicas de governos autoritários. O negacionismo destrói a
confiança das pessoas nas instituições democráticas e atinge diretamente o
debate racional, a argumentação e a escuta, portanto representa uma ameaça à
democracia. Na Alemanha nazista, o negacionismo levou à rejeição de qualquer
ciência produzida por judeus, como a teoria da relatividade de Einstein. No
regime stalinista, as ideias evolucionistas foram descartadas por seu “caráter
burguês”.
A tentativa de deslegitimar a ciência é nociva para a
sociedade, especialmente nesse momento de crise sanitária. A crise que
atravessamos deve servir como oportunidade para definir um programa de ação.
Entre as medidas prioritárias desse programa, estão o investimento permanente
na ciência e a valorização do sistema público de saúde. Vamos ter, como diz o
historiador israelense Yuval Harari, de rever fronteiras: entre disciplinas,
porque a complexidade do enfrentamento de pandemias requer saberes e
colaboração transdisciplinares; entre países, em prol da solidariedade e da
cooperação; e entre o mundo humano e o dos animais não humanos, com revisão do
próprio antropocentrismo e da proeminência que os humanos acham que exercem no
mundo, que afinal não nos é exclusivo”.
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