domingo, 8 de maio de 2022

uma síntese da negação

 

Durante a pandemia do Covid-19, o negacionismo no Brasil tomou proporções alarmantes, manifestando-se na negação ou minimização da gravidade da doença, no boicote às medidas preventivas, na subnotificação dos dados epidemiológicos, na omissão de traçar estratégias nacionais de saúde, no incentivo a tratamentos terapêuticos sem validação científica e na tentativa de descredibilizar a vacina, entre outros exemplos. O negacionismo acarretou incertezas, influenciou na adesão da população aos protocolos de prevenção, comprometeu a resposta do país à pandemia e resultou em mortes e sequelas pela doença.

O negacionismo vai muito além de um boato ou fake news. É um sistema de crenças que, sistematicamente, nega o conhecimento objetivo, a crítica pertinente, as evidências empíricas, o argumento lógico, as premissas de um debate público racional, e se mantém por bolhas organizadas de desinformação.

Os negacionismos (neonazismo, criacionismo, terraplanismo, entre outros) podem ser motivados por interesses diversos e os grupos de negacionistas são distintos entre si, mas têm características em comum, como o oportunismo político e a incoerência.. Em alguns casos ocorre uma dissociação cognitiva: as evidências e fatos entram em choque com valores ou crenças subjetivas, então o negacionista seleciona uma narrativa alternativa para explicar a realidade.  Nesse contexto, a coerência torna-se irrelevante. Um exemplo disso é o modo como os discursos negacionistas em relação à pandemia foram se a modificando: no começo, os negacionistas diziam que a Covid era uma farsa, uma “gripezinha”. Depois, admitiram a existência da doença, mas negaram a sua gravidade e criaram teorias conspiratórias, atribuindo aos chineses a criação do coronavírus, como uma suposta arma biológica. O mesmo fenômeno foi verificado em relação às formas de prevenção da doença. A ignorância não é causa do negacionismo, mas sua consequência, e fabricada propositalmente. É uma construção articulada por pessoas que possuem boa informação e meios sofisticados de produzir comunicação e que constroem espaços seletivos, no qual grupos enormes de pessoas são contaminadas pela desinformação.

Muitas questões sobre o Covid-19 têm sido alvo de dúvidas e debates entre especialistas, o que é natural no processo de construção do conhecimento científico. O negacionismo, por sua vez, nega evidências e simula controvérsias onde na verdade há consenso.

O livro Merchants of doubt (Mercadores da dúvida), de Naomi Oreskes e Erik Conway, expõe como a opinião pública pode ser manipulada a partir de falsas controvérsias e é uma referência obrigatória sobre essa questão. A negação dos malefícios do tabagismo e o negacionismo ambiental são alguns exemplos trazidos pelo livro de como a estratégia negacionista pode servir a interesses econômicos e políticos.

O negacionismo não é mero sinônimo de desinformação nas sociedades. Na verdade, é resultado de disputas de grupos de interesse que procuram exatamente camuflar suas motivações e ganhos, inventando controvérsias científicas e falta de consensos na ciência, mesmo nos casos em que eles inexistem, para atravancar a sua efetivação em políticas, ou para direcioná-las em conformidade aos seus interesses O negacionismo está ligado a amplos grupos sociais que não se sentem representados pelos arranjos políticos e econômicos dominantes no mundo globalizado e que julgam que as instituições sociais consolidadas - imprensa, universidades, sistemas políticos, organismos de governança internacional - são controladas por interesses econômicos dos poderosos.Partem de uma percepção crítica que em si não é descabida, embora genérica demais - a influência do poder econômico ou político no "sistema" - para negar as bases culturais e institucionais das democracias modernas.

São grupos fundamentalmente conservadores, baseados em valores diversos - religiosos, identitários, étnicos, nacionalistas - manejados por líderes políticos oportunistas, mas que oferecem uma sensação de pertencimento e um conjunto de soluções simplórias para "melhorar" o mundo”.

Negacionismo, teorias conspiratórias e pseudociência são estratégias típicas de governos autoritários. O negacionismo destrói a confiança das pessoas nas instituições democráticas e atinge diretamente o debate racional, a argumentação e a escuta, portanto representa uma ameaça à democracia. Na Alemanha nazista, o negacionismo levou à rejeição de qualquer ciência produzida por judeus, como a teoria da relatividade de Einstein. No regime stalinista, as ideias evolucionistas foram descartadas por seu “caráter burguês”.

A tentativa de deslegitimar a ciência é nociva para a sociedade, especialmente nesse momento de crise sanitária. A crise que atravessamos deve servir como oportunidade para definir um programa de ação. Entre as medidas prioritárias desse programa, estão o investimento permanente na ciência e a valorização do sistema público de saúde. Vamos ter, como diz o historiador israelense Yuval Harari, de rever fronteiras: entre disciplinas, porque a complexidade do enfrentamento de pandemias requer saberes e colaboração transdisciplinares; entre países, em prol da solidariedade e da cooperação; e entre o mundo humano e o dos animais não humanos, com revisão do próprio antropocentrismo e da proeminência que os humanos acham que exercem no mundo, que afinal não nos é exclusivo”.

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