sexta-feira, 20 de maio de 2022

a ameaça da Monkeypox ou varíola dos macacos

 

Novamente nos vemos diante de uma nova doença transmissível a preocupar o planeta.Trata-se da varíola dos macacos ( monkeypox) – uma doença viral rara, mas potencialmente grave, com dezenas de casos confirmados ou suspeitos no Reino Unido, Espanha, Portugal e mais recentemente nos Estados Unidos .

O vírus responsável pelos casos é um parente próximo do que causou a varíola, mas é menos mortal e menos transmissível, causando sintomas que incluem febre e erupção cutânea ( lesões bolhosas pela pele). Endêmico da África ocidental e central, foi descoberto pela primeira vez em macacos de laboratório em 1958 – daí o nome – mas os animais selvagens que abrigam o vírus são provavelmente roedores. O vírus ocasionalmente se espalha para os humanos e essas infecções se tornaram mais comuns nas últimas décadas . Raramente, a varíola dos macacos chega a outros continentes e, quando isso acontece, os surtos são pequenos. O único surto americano significativo ocorreu em 2003, quando um carregamento de roedores vindos de Gana espalhou o vírus para cães em Illinois, que foram vendidos como animais de estimação e infectaram cerca de 47 pessoas, nenhuma de modo fatal. No ano passado (2021), dois viajantes transportaram independentemente o vírus da Nigéria para os EUA, mas não infectaram mais ninguém.

Os surtos atuais na Europa e nos EUA são diferentes e muito preocupantes. O primeiro caso, identificado no Reino Unido em 7 de maio , se enquadra no padrão tradicional: o indivíduo havia viajado recentemente para a Nigéria. Mas vários outros não estiveram recentemente em países endêmicos e alguns não tiveram contato óbvio com pessoas conhecidas por estarem infectadas. Isso sugere que o vírus pode estar se espalhando de pessoa para pessoa, com alguns casos não detectados. (O período de incubação entre a infecção e os sintomas é longo, variando de 5 a 21 dias .)

Podemos já considerar que a Monkeypox é um teste das lições que o mundo aprendeu (ou não) com a COVID. Será que iniciaremos com as polêmicas não científicas ou daremos passagem para a verdadeira ciência ? Evitaremos a incerteza em uma busca frenética por respostas que mais tarde provam estar erradas?

 A COVID era completamente desconhecida quando apareceu pela primeira vez, mas a varíola dos macacos é bem estudada Já sabemos que a doença não se espalha facilmente.. O vírus é transmitido através de superfícies contaminadas ou na proximidade prolongada com outras pessoas infectadas razão pela qual a maioria dos surtos foi pequena .A maioria das transmissões ocorrem entre membros da família ou profissionais de saúde.

Claro, já ouvimos isso antes. No início de 2020 , muitos especialistas afirmaram que o COVID se espalhava apenas por superfícies contaminadas ou gotículas próximas – daí as regras de dois metros de distanciamento e o teatro da higiene. Agora é amplamente aceito que a doença se espalha por meio de partículas de aerossol menores e de maior alcance – daí a importância da ventilação e das máscaras. Mas isso não significa que a história está se repetindo com a varíola dos macacos. Um estudo de 2012 sugeriu que o vírus pode persistir em aerossóis por vários dias – mas isso foi em condições artificiais de laboratório, e a persistência é apenas uma pequena parte do processo de infecção.Em comparação com o SARS-CoV-2, a varíola dos macacos é um vírus completamente diferente e o risco de transmissão natural por aerossol é muito menos provável. E o fato é que os surtos anteriores de varíola dos macacos foram inconsistentes com um vírus que viaja tão facilmente quanto o coronavírus.

Por outro lado, temos menos certeza sobre a varíola dos macacos do que sobre o COVID.Nosso conhecimento sobre a varíola dos macacos é baseado em apenas 1.500 casos registrados  em 2018.Não podemos usar o que aconteceu com os surtos anteriores de varíola dos macacos para fazer declarações abrangentes. Se aprendemos alguma coisa com o COVID, é ter humildade.

Durante décadas, alguns cientistas expressaram preocupações de que o vírus da varíola dos macacos pudesse ter se tornado melhor em infectar pessoas – ironicamente porque erradicamos seu parente, a varíola, no final dos anos 1970. A vacina contra a varíola protegeu incidentalmente contra a varíola dos macacos. E quando novas gerações nasceram em um mundo sem campanhas de varíola ou de vacinação contra a varíola, elas cresceram vulneráveis. Na República Democrática do Congo, essa diminuição da imunidade fez com que as infecções por varíola dos macacos aumentassem 20 vezes nas três décadas após o desaparecimento da varíola. Isso dá ao vírus mais chances de evoluir para um patógeno mais transmissível em humanos. Até o momento, seu R0 – o número médio de pessoas que contraem a doença de uma pessoa infectada – foi inferior a 1, o que significa que os surtos desaparecem naturalmente. Mas pode eventualmente evoluir acima desse limite e causar epidemias mais prolongadas.

Essa possibilidade lança uma nuvem de incerteza sobre os atuais surtos.Estamos diante de uma nova e mais transmissível cepa de varíola dos macacos? Ou eles são simplesmente o resultado de pessoas viajando mais depois que as restrições globais do COVID foram liberadas ? Até agora, os casos são mais numerosos do que um surto normal mas não tanto a ponto de sugerir um vírus radicalmente diferente.

As respostas devem vir rapidamente. Em poucos dias, os cientistas devem ter sequenciado os vírus dos surtos atuais, o que mostrará se eles abrigam mutações que podem ter alterado suas propriedades. Dentro de semanas, os epidemiologistas europeus devem ter uma ideia mais clara de como os casos existentes começaram e se há conexões entre eles.

Além disso, já existe uma vacina. Uma vacina contra a varíola é 85% eficaz na prevenção da doença e já foi licenciada para uso contra o vírus. E como outra precaução de bioterrorismo, os estoques de três vacinas contra a varíola são grandes o suficiente para vacinar basicamente todos nos EUA.E embora os pacientes com varíola geralmente recebam apenas cuidados de suporte, existe um tratamento possível e também foi armazenado: o tecovirimat, ou TPOXX , foi desenvolvido para tratar a varíola, mas provavelmente funcionaria também para a monkeypox.

Existe uma diferença na taxa de mortalidade dependendo da cepa viral. A taxa de mortalidade frequentemente citada de cerca de 10% se aplica a uma cepa que infectou pessoas na Bacia do Congo. A cepa da África Ocidental, à qual vários dos casos atuais estão ligados, tem uma taxa de mortalidade próxima de 1% – e isso ocorre em populações rurais pobres. Ainda assim, como o COVID mostrou, mesmo quando uma doença não mate, dificilmente pode contar como “leve”. Monkeypox pode não decolar da maneira que o COVID fez, mas para aqueles que a contraem, continua sendo uma “doença substancial”.Os pacientes mantém sintomas por duas a quatro semanas. É urgente identificar as pessoas cedo, tratá-las e identificar contatos. Um sintoma comum é a erupção cutânea óbvia, que parece uma versão extrema da catapora. Mas, ao contrário da varicela, as lesões são inicialmente mais dolorosas eos gânglios linfáticos estão inflamados.

Como a COVID mostrou, as narrativas iniciais sobre uma doença podem se transformar rápida e prematuramente em uma tradição aceita. E essas narrativas se transformam em estigma.A comunicação pode ser um dos desafios mais difíceis da monkeypox, como tem sido com a COVID.

domingo, 8 de maio de 2022

uma síntese da negação

 

Durante a pandemia do Covid-19, o negacionismo no Brasil tomou proporções alarmantes, manifestando-se na negação ou minimização da gravidade da doença, no boicote às medidas preventivas, na subnotificação dos dados epidemiológicos, na omissão de traçar estratégias nacionais de saúde, no incentivo a tratamentos terapêuticos sem validação científica e na tentativa de descredibilizar a vacina, entre outros exemplos. O negacionismo acarretou incertezas, influenciou na adesão da população aos protocolos de prevenção, comprometeu a resposta do país à pandemia e resultou em mortes e sequelas pela doença.

O negacionismo vai muito além de um boato ou fake news. É um sistema de crenças que, sistematicamente, nega o conhecimento objetivo, a crítica pertinente, as evidências empíricas, o argumento lógico, as premissas de um debate público racional, e se mantém por bolhas organizadas de desinformação.

Os negacionismos (neonazismo, criacionismo, terraplanismo, entre outros) podem ser motivados por interesses diversos e os grupos de negacionistas são distintos entre si, mas têm características em comum, como o oportunismo político e a incoerência.. Em alguns casos ocorre uma dissociação cognitiva: as evidências e fatos entram em choque com valores ou crenças subjetivas, então o negacionista seleciona uma narrativa alternativa para explicar a realidade.  Nesse contexto, a coerência torna-se irrelevante. Um exemplo disso é o modo como os discursos negacionistas em relação à pandemia foram se a modificando: no começo, os negacionistas diziam que a Covid era uma farsa, uma “gripezinha”. Depois, admitiram a existência da doença, mas negaram a sua gravidade e criaram teorias conspiratórias, atribuindo aos chineses a criação do coronavírus, como uma suposta arma biológica. O mesmo fenômeno foi verificado em relação às formas de prevenção da doença. A ignorância não é causa do negacionismo, mas sua consequência, e fabricada propositalmente. É uma construção articulada por pessoas que possuem boa informação e meios sofisticados de produzir comunicação e que constroem espaços seletivos, no qual grupos enormes de pessoas são contaminadas pela desinformação.

Muitas questões sobre o Covid-19 têm sido alvo de dúvidas e debates entre especialistas, o que é natural no processo de construção do conhecimento científico. O negacionismo, por sua vez, nega evidências e simula controvérsias onde na verdade há consenso.

O livro Merchants of doubt (Mercadores da dúvida), de Naomi Oreskes e Erik Conway, expõe como a opinião pública pode ser manipulada a partir de falsas controvérsias e é uma referência obrigatória sobre essa questão. A negação dos malefícios do tabagismo e o negacionismo ambiental são alguns exemplos trazidos pelo livro de como a estratégia negacionista pode servir a interesses econômicos e políticos.

O negacionismo não é mero sinônimo de desinformação nas sociedades. Na verdade, é resultado de disputas de grupos de interesse que procuram exatamente camuflar suas motivações e ganhos, inventando controvérsias científicas e falta de consensos na ciência, mesmo nos casos em que eles inexistem, para atravancar a sua efetivação em políticas, ou para direcioná-las em conformidade aos seus interesses O negacionismo está ligado a amplos grupos sociais que não se sentem representados pelos arranjos políticos e econômicos dominantes no mundo globalizado e que julgam que as instituições sociais consolidadas - imprensa, universidades, sistemas políticos, organismos de governança internacional - são controladas por interesses econômicos dos poderosos.Partem de uma percepção crítica que em si não é descabida, embora genérica demais - a influência do poder econômico ou político no "sistema" - para negar as bases culturais e institucionais das democracias modernas.

São grupos fundamentalmente conservadores, baseados em valores diversos - religiosos, identitários, étnicos, nacionalistas - manejados por líderes políticos oportunistas, mas que oferecem uma sensação de pertencimento e um conjunto de soluções simplórias para "melhorar" o mundo”.

Negacionismo, teorias conspiratórias e pseudociência são estratégias típicas de governos autoritários. O negacionismo destrói a confiança das pessoas nas instituições democráticas e atinge diretamente o debate racional, a argumentação e a escuta, portanto representa uma ameaça à democracia. Na Alemanha nazista, o negacionismo levou à rejeição de qualquer ciência produzida por judeus, como a teoria da relatividade de Einstein. No regime stalinista, as ideias evolucionistas foram descartadas por seu “caráter burguês”.

A tentativa de deslegitimar a ciência é nociva para a sociedade, especialmente nesse momento de crise sanitária. A crise que atravessamos deve servir como oportunidade para definir um programa de ação. Entre as medidas prioritárias desse programa, estão o investimento permanente na ciência e a valorização do sistema público de saúde. Vamos ter, como diz o historiador israelense Yuval Harari, de rever fronteiras: entre disciplinas, porque a complexidade do enfrentamento de pandemias requer saberes e colaboração transdisciplinares; entre países, em prol da solidariedade e da cooperação; e entre o mundo humano e o dos animais não humanos, com revisão do próprio antropocentrismo e da proeminência que os humanos acham que exercem no mundo, que afinal não nos é exclusivo”.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

a farsa da cloroquina : capítulo final

 

No início da pandemia da COVID-19, com tanto desconhecimento e angústia diante de uma situação de risco à saúde, havia uma busca desesperada por uma terapia contra o vírus que se espalhava por todo o mundo. À medida que os ambulatórios e hospitais ficaram sobrecarregados, ficou claro que eram necessários tratamentos ambulatoriais precoces eficazes, seguros e acessíveis para evitar um colapso. Os cientistas se voltaram primeiro para terapias que mostraram alguma uma promessa de atividade in vitro contra o coronavírus . Em muitos aspectos, a hidroxicloroquina, um antimalárico usado para doenças autoimunes, com décadas de dados de segurança e com estudos sugerindo eficácia in vitro contra o vírus, era uma terapia candidata ideal. O que aconteceu a seguir, no entanto, foi uma infeliz comédia de erros que desperdiçou recursos e oportunidades para encontrar terapias eficazes.

 

Centenas de ensaios clínicos (principalmente pequenos) foram lançados nos primeiros meses de 2020 para avaliar se a hidroxicloroquina poderia prevenir ou tratar a COVID-19. De acordo com dados disponíveis atuais, 247 desses ensaios foram registrados. Nessa verdadeira corrida do ouro, alguns desses estudos competiram com os mesmos pacientes. Lamentavelmente, antes da conclusão do primeiro estudo controlado randomizado, a hidroxicloroquina tornou-se uma causa célebre. Foi endossada por uma série de médicos,políticos e outros pretendentes a celebridades que se apoiavam em uma variedade de estudos observacionais confusos. Muitos serviços de atendimento à covid 19 e médicos particulares começaram a prescrever o medicamento.Pacientes começaram a solicitar a hidroxicloroquina induzidos por indivíduos irresponsáveis.

Uma publicação na revista The Lancet Regional Health – Americas de um grande estudo controlado randomizado duplo-cego de hidroxicloroquina em 1372 participantes com COVID-19 é digno de nota e louvável.Embora este estudo bem projetado e conduzido tenha ficado aquém de sua meta de recrutamento de 1.620 participantes infectados, é o maior estudo terapêutico ambulatorial de hidroxicloroquina publicado até agora. Como dezenas de ensaios menores publicados antes, ele não conseguiu demonstrar qualquer benefício da hidroxicloroquina na prevenção da progressão da COVID-19 entre pacientes ambulatoriais com COVID-19. Há algum tempo, com dezenas de ensaios publicados, podemos finalmente fechar as cortinas da hidroxicloroquina para a COVID-19. No entanto, precisamos aprender algumas lições para futuras pandemias e para a ciência clínica em geral.

Embora lenta e árdua, a progressão de uma terapia testada in vitro para modelos animais e depois para ensaios clínicos progressivamente maiores é fundamental para evitar a priorização equivocada de agentes com poucas perspectivas de sucesso, mas com riscos de desviar recursos escassos e expor pacientes a um dano potencial.No caso da hidroxicloroquina houve um entusiasmo depois que um estudo mostrou que ela poderia bloquear a infecção por SARS-Cov-2 em células derivadas de rins de macacos. A hidroxicloroquina aumenta o pH celular, interferindo assim com uma protease dependente de pH que facilita a entrada viral.No entanto, nas células epiteliais das vias aéreas (que, obviamente, são mais fisiologicamente relevantes para uma infecção respiratória), a entrada do SARS-Cov-2 é facilitada por uma protease independente do pH, anulando assim o efeito da droga. Além disso, os resultados de experimentos em vários modelos animais posteriormente não mostraram nenhum benefício da hidroxicloroquina na prevenção ou tratamento da COVID-19.O problema é que no inicio da pandemia dezenas de “conclusões” já estavam em andamento

Apesar da ausência de dados de ensaios clínicos, muitos indivíduos com potencial influenciador ​​apoiaram a hidroxicloroquina como uma terapia candidata para a COVID-19 e um lamaçal de atitudes políticas levou a uma falha maciça em provar ou refutar a utilidade do medicamento.

Em última análise, a hidroxicloroquina não teve benefício clínico nenhum para a COVID-19. Os esforços dos pesquisadores e a boa vontade dos pacientes que se voluntariaram para os estudos não devem ser diminuídos, mas as lições extraídas desse fiasco devem nos estimular a fazer muito  melhor na próxima pandemia.