Nas últimas décadas do século XX, uma peculiar transformação
começou a moldar a cognição humana. A mudança ocorreu gradualmente no início
para depois acelerar com velocidade. Poucas pessoas reconheceram esse fato como
uma organização da vida mental que iria alterar não somente o que pensamos,mas
os vários mecanismos através dos quais pensamos
A mudança não foi só acidental ou inevitável. Ela surgiu da
convergência de dois desenvolvimentos: o refinamento das técnicas psicológicas
para capturar e direcionar a atenção e a criação de uma infraestrutura digital
capaz de empregar essas técnicas numa escala sem precedentes e precisão.
Juntas,essas forças, estabeleceram o que os antropologistas cognitivos agora
reconhecem como uma profunda reestruturação do ambiente de informação humana—uma
que remodelou as mentes individuais e coletivas da mesma maneira.
A arquitetura da mídia social contemporânea baseia-se num
elaborado sistema com uma singular proposta: maximizar o engajamento do usuário. Os
algoritmos constantemente experimentam, testam os conteúdos mais fortes,
aprendem gatilhos individuais com marcante precisão. Cada notificação, cada
vídeo rodado, cada pesquisa ou simplesmente navegação representa a culminação
de milhares de experimentos interativos na captura da atenção.
Estamos diante de uma verdadeira expedição , bem
documentada, às vulnerabilidades da cognição humana.
Nosso sistema de atenção evoluiu para monitorar ambientes
onde as ameaças e oportunidades apareciam infrequentemente e exigiam imediata
resposta. As estruturas intermitentes das plataformas digitais—onde o conteúdo
na maioria das vezes é inexpressivol—vem criando agendas de incentivos
variáveis.o mesmo mecanismo que torna pessoas viciadas em apostas agora moldam
bilhões interagindo com “informação”.
As consequências neurológicas são profundas. Cada
interrupção digital libera dopamina,criando feedbacks que gradualmente
reconfiguram vias neurais.Com o tempo,essas vias se tornam circuitos alternados—aqueles
que sustentam a atenção e a leitura profunda—enfraquecendo-os pelo desuso. A Neuroplasticidade,
celebrada como um milagre de adaptação do cérebro, revela sua dupla face: nossa
arquitetura neural se reconfigura sozinha para corresponder ao ambiente de
informação cada mais fragmentado.
Esta transformação se estende muito além da mera distração. A
métrica do engajamento dominante—compartilhar, likes, comentários—sistematicamente
favorece conteúdos de fortes reações emocionais : raiva, indignação e afiliação
tribal. Esses algoritmos funcionam com amplificadores de emoções, espalhando
preferencialmente conteúdos que ativam o sistema límbico enquanto enfraquece o córtex
pré frontal. O resultado e um pensamento cada vez menos critico.
A fragmentação opera simultaneamente através de multiplas
dimensões. Temporariamente, se manifesta pela diminuição da atenção e o colapso
da narrativa de coerência. Socialmente, isso causa uma dissolução dos contextos
compartilhados e dos pontos de referência. Psicologicamente, emerge um aumento
da dificuldade em manter tarefas consistentes e com significados. Esses padrões
têm profundas implicações para a formação da identidade pessoal. Onde antes as
gerações construíam suas personalidades através de instituições sólidas e
estáveis no contemporâneo elas são formadas por fluxos de algoritmos. O self se
torna um produto de escolhas de atenções feitas para a promoção do máximo
engajamento.
A identidade se torna mais reativa do que integrativa—definida
menos pela narrativa consistente do que pelos padrões de respostas aos
estímulos fragmentados.
Mais sutil mas igualmente consequencial é a mudança do
relacionamento entre intuição e analise. A cognição humana sempre balanceou
processamentos intuitivos automáticos com o pensamento critico analítico ( que
vai se atrofiando). A informação chega muito rapidamente e em volumes bem vastos
para um processamento analitico, empurrando o sistema cognitivo a heurísticas,julgamentos
rápidos e reações emocionais—precisamente a operação mental mais vulnerável à manipulação.
Enquanto essas mudanças se acumulam, elas produzem um
desfecho paradoxal : acesso sem precedentes a mais informação ao lado da
declinada capacidade de integrar o tanto que chega num entendimento coerente.
Aquisição de conhecimento se torna descasada da síntese do conhecimento.
As instituições responsáveis pela síntese do conhecimento—universidades,
jornalismo etc —simultaneamente vivem sua própria fragmentação. Sujeitos à
mesma dinâmica vão também se moldando aos modelos de mídias e apenas uma
minoria ainda consegue entregar um pouco da racionalidade.
Esta confluência do cognitivo, tecnologico,e institucional cria
uma realidade distópica—a emergência de informação paralela – um ecossistema longe
da realidade em si própria.
Não só representam a base para os desacordos sobre valores e
interpretações mas também a divergência básicas factuais. Num cenário fraturado
e distópico a questão se torna não só o que sabemos,mas como nós sabemos e se o
conhecimento compartilhado ainda é possível.
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