domingo, 26 de outubro de 2025

a distopia da cognição

 







Nas últimas décadas do século XX, uma peculiar transformação começou a moldar a cognição humana. A mudança ocorreu gradualmente no início para depois acelerar com velocidade. Poucas pessoas reconheceram esse fato como uma organização da vida mental que iria alterar não somente o que pensamos,mas os vários mecanismos através dos quais pensamos

A mudança não foi só acidental ou inevitável. Ela surgiu da convergência de dois desenvolvimentos: o refinamento das técnicas psicológicas para capturar e direcionar a atenção e a criação de uma infraestrutura digital capaz de empregar essas técnicas numa escala sem precedentes e precisão. Juntas,essas forças, estabeleceram o que os antropologistas cognitivos agora reconhecem como uma profunda reestruturação do ambiente de informação humana—uma que remodelou as mentes individuais e coletivas da mesma maneira.

A arquitetura da mídia social contemporânea baseia-se num elaborado sistema com uma singular proposta:  maximizar o engajamento do usuário. Os algoritmos constantemente experimentam, testam os conteúdos mais fortes, aprendem gatilhos individuais com marcante precisão. Cada notificação, cada vídeo rodado, cada pesquisa ou simplesmente navegação representa a culminação de milhares de experimentos interativos na captura da atenção.

Estamos diante de uma verdadeira expedição , bem documentada, às vulnerabilidades da cognição humana.

Nosso sistema de atenção evoluiu para monitorar ambientes onde as ameaças e oportunidades apareciam infrequentemente e exigiam imediata resposta. As estruturas intermitentes das plataformas digitais—onde o conteúdo na maioria das vezes é inexpressivol—vem criando agendas de incentivos variáveis.o mesmo mecanismo que torna pessoas viciadas em apostas agora moldam bilhões interagindo com “informação”.

As consequências neurológicas são profundas. Cada interrupção digital libera dopamina,criando feedbacks que gradualmente reconfiguram vias neurais.Com o tempo,essas vias se tornam circuitos alternados—aqueles que sustentam a atenção e a leitura profunda—enfraquecendo-os pelo desuso. A Neuroplasticidade, celebrada como um milagre de adaptação do cérebro, revela sua dupla face: nossa arquitetura neural se reconfigura sozinha para corresponder ao ambiente de informação cada mais fragmentado.

Esta transformação se estende muito além da mera distração. A métrica do engajamento dominante—compartilhar, likes, comentários—sistematicamente favorece conteúdos de fortes reações emocionais : raiva, indignação e afiliação tribal. Esses algoritmos funcionam com amplificadores de emoções, espalhando preferencialmente conteúdos que ativam o sistema límbico enquanto enfraquece o córtex pré frontal. O resultado e um pensamento cada vez menos critico.

A fragmentação opera simultaneamente através de multiplas dimensões. Temporariamente, se manifesta pela diminuição da atenção e o colapso da narrativa de coerência. Socialmente, isso causa uma dissolução dos contextos compartilhados e dos pontos de referência. Psicologicamente, emerge um aumento da dificuldade em manter tarefas consistentes e com significados. Esses padrões têm profundas implicações para a formação da identidade pessoal. Onde antes as gerações construíam suas personalidades através de instituições sólidas e estáveis no contemporâneo elas são formadas por fluxos de algoritmos. O self se torna um produto de escolhas de atenções feitas para a promoção do máximo engajamento.

A identidade se torna mais reativa do que integrativa—definida menos pela narrativa consistente do que pelos padrões de respostas aos estímulos fragmentados.

Mais sutil mas igualmente consequencial é a mudança do relacionamento entre intuição e analise. A cognição humana sempre balanceou processamentos intuitivos automáticos com o pensamento critico analítico ( que vai se atrofiando). A informação chega muito rapidamente e em volumes bem vastos para um processamento analitico, empurrando o sistema cognitivo a heurísticas,julgamentos rápidos e reações emocionais—precisamente a operação mental mais  vulnerável à manipulação.

Enquanto essas mudanças se acumulam, elas produzem um desfecho paradoxal : acesso sem precedentes a mais informação ao lado da declinada capacidade de integrar o tanto que chega num entendimento coerente. Aquisição de conhecimento se torna descasada da síntese do conhecimento.

As instituições responsáveis pela síntese do conhecimento—universidades, jornalismo etc —simultaneamente vivem sua própria fragmentação. Sujeitos à mesma dinâmica vão também se moldando aos modelos de mídias e apenas uma minoria ainda consegue entregar um pouco da racionalidade.

Esta confluência do cognitivo, tecnologico,e institucional cria uma realidade distópica—a emergência de informação paralela – um ecossistema longe da realidade em si própria.

Não só representam a base para os desacordos sobre valores e interpretações mas também a divergência básicas factuais. Num cenário fraturado e distópico a questão se torna não só o que sabemos,mas como nós sabemos e se o conhecimento compartilhado ainda é possível.

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