A propagação do uso da da ivermectina é uma das histórias
mais sem sentido – em um mar de histórias sem sentido – a surgir durante a
pandemia. Mesmo agora, à medida que os casos diminuem e são menos graves,a
polêmica continua.
Vários ensaios clínicos recentes, metodologicamente
bem-feitos, incluindo um publicado no New England Journal of Medicine, mostram
definitivamente de acordo com um dos autores do estudo ,que “não há realmente
nenhum sinal de benefício com o seu uso”. Mas essa somatória de evidências não convence
os “defensores” da droga.
As falácias da ivermectina ficaram tão bizarras que cada vez
mais é preciso verificar com cuidado se não são sátiras. As pessoas estão
defendendo o uso para bebês , alguns preconizam seu uso profilático , há quem
acuse hospitais de “criminosos” por não estarem usando o produto e por aí segue.
Nunca houve qualquer evidência clínica para apoiar o seu uso
( e de vários outros pretensos “salvadores da pandemia” como a cloroquina) no
contexto da Covid . Nos primeiros dias da pandemia estudos realizados em
laboratório – ou seja, pesquisas feitas em placas de Petri e não envolvendo
humanos – sugeriam que a droga tinha
propriedades antivirais. (Esse tipo de trabalho raramente se traduz em
aplicação clínica.) Houve também alguns estudos observacionais que pareciam
promissores. Mas assim que os dados de estudos mais rigorosos e abrangentes
começaram a chegar, ficou claro que a ivermectina não era uma cura mágica. Em
julho, por exemplo, uma revisão sistemática da altamente respeitada e
independente Cochrane Collaboration – uma organização acadêmica internacional
que faz revisões de evidências para direcionar a prática clínica – concluiu que
não havia justificativas para apoiar o seu uso no tratamento ou prevenção da
Covid.
Infelizmente, uma grande parte do “debate” da ivermectina
foi substancialmente baseada em estudos fraudulentos e/ou mal feitos . Muitos
dos artigos que sugeriram um possível benefício foram retirados por seus autores
ou considerados fundamentalmente falhos . Mas o estrago estava feito.
Como explicar essa e tantas outras falácias terapêuticas na
pandemia ? Porque o debate saiu da esfera da ciência e avançou para a ideologia
e sinalização de grupo. Foi alimentado por uma variedade de vozes de direita , negacionistas
da pandemia , apoiadores de outras teorias conspiracionistas que promovem o
caos da informação em apoio a muitas agendas, tanto pessoais (por exemplo,
lucrar com a venda da ivermectina) e ideológica (por exemplo, fomentar a
desconfiança nas instituições políticas nacionais e de saúde pública).
O discurso ideológico que defende a ivermectina beira o
absurdo. Por exemplo : um estudo realizado pelo Annenberg Public Policy Center
da Universidade da Pensilvânia relatou que 75% das pessoas que recebem notícias
de fontes de notícias muito conservadoras recomendariam ivermectina a alguém
exposto ao Covid. Apenas 35% daqueles que recebem notícias da mídia tradicional
fariam o mesmo. Uma pesquisa realizada no ano passado pelo YouGov,nos Estado
Unidos, documentou que a maioria dos
republicanos que ouviram falar sobre a ivermectina “acredita que pode ser
eficaz, apesar dos avisos da FDA sobre seu perigo”. E um estudo deste ano
descobriu que, como resultado da desinformação, o volume de prescrição de
ivermectina aumentou surpreendentes 964% em 2020. Essa prescrição foi
significativamente maior nos locais com predominância de preferência politica
de direita.
Acreditar na ivermectina tornou-se um emblema de afiliação
que indica uma visão de mundo particular . Mas transforma-se em situação de
risco comunitário : a desinformação das pessoas na crença de que o número de
mortes por Covid foi exagerado (na verdade, é provável que tenha sido
subnotificado ), que as vacinas mataram ou deixaram sequelas em muitos (na
realidade salvaram centenas de milhares de vidas) e de que a Covid pode ser
tratada com sucesso com drogas baratas e acessíveis , foi e será um risco
evitável de vida.
O mito da ivermectina também se encaixa em narrativas
antivacinas. Este tipo de discurso livre de evidências não é apenas
profundamente agravante e incompreensivelmente irresponsável, mas também causa
grande dano. Um estudo publicado no Journal of the American Medical Association
,reportou que as seguradoras de saúde dos EUA desperdiçaram quase US$ 200
milhões em um ano em prescrições de ivermectina para Covid. Os pesquisadores
observam que a “verdadeira quantidade de resíduos é ainda maior porque as
estimativas não incluem os gastos do Medicaid”. No ano passado, a FDA emitiu um
alerta sobre um aumento nos “efeitos adversos significativos relatados aos
centros de controle de toxicologia dos EUA” relacionados à ivermectina.
Um dos maiores danos desse tipo de desinformação é que ela
distrai e cria incerteza sobre abordagens comprovadas para tratar e prevenir a
Covid. A pesquisa mostrou que as pessoas que acreditam nesse tipo de
desinformação são menos propensas a adotar estratégias preventivas, como usar
máscaras, distanciamento físico e, claro, vacinar-se contra a Covid. Quantas
pessoas morreram porque decidiram não se vacinar com base na crença,
constantemente reforçada por vozes altas dentro de sua comunidade ideológica,
de que uma droga antiparasitária estaria lá para salvá-las?
Os crentes da ivermectina nunca abordam a inconsistência
conceitual de por que faz sentido defender um tratamento farmacêutico não
comprovado com efeitos colaterais conhecidos sobre uma vacina que tem uma
grande base de evidências demonstrando eficácia e segurança. Não há dúvidas que
a ideologia desempenha um fundamental papel. Uma vacina que é dada
gratuitamente pelo governo para o benefício de toda a comunidade remete a
socialismo,ou algo semelhante Enquanto tomar uma terapia não comprovada é algo
que os indivíduos fazem por si mesmos.A tal liberdade incondicional.
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