terça-feira, 21 de setembro de 2021

um final feliz

 

Todos estamos ansiosos pelo fim da pandemia. Como num filme , aguardamos pelos créditos finais. Os filmes que já abordaram situações pandêmicas , como “ Contágio” , têm narrativas que se aplicam aos enredos que prendem o público : o inicio de uma nova infecção ( o paciente “zero”), o diagnóstico na medida em que ela se expande (uma ameaça global) e a cura (as vacinas).

Na medida em que nos aproximamos do segundo ano da covid-19, o vírus nos mostra que não estamos vivendo um filme com final feliz. A vacina já está pronta mas segue um caminho fragmentado , vagaroso , desigual e , em alguns lugares , negada ou temida pela população. Em diversos países com taxas maiores de imunização as pessoas declararam , independentemente , que a pandemia já acabou. Porém em países sub desenvolvidos menos de 2% da população recebeu as duas doses. Lockdowns acontecem de modo inconstante,fronteiras são fechadas para logo depois serem abertas. Muitos estão vivendo com sequelas permanentes ou transitórias da doença. Ao invés de um fim, estamos cada vez mais ouvindo a possibilidade de que temos que aprender a viver com o vírus.

O significado universal de “ viver com o vírus” é aprender a viver com a incerteza. Isso assusta a muitos pois é , fundamentalmente, uma forma estranha de racionalismo empírico. Ao mesmo tempo que pode encorajar o desenvolvimento de estratégias para inibir a sua transmissão também nos distancia de um final feliz.

A internet é frequentemente acusada de fomentar narrativas alternativas sem embasamento científico.Mas o conhecimento médico moderno também tem sido vulnerável à dúvida. Precisamos atentar ao fato que o fim das narrativas pode ocorrer de diversas formas , nem sempre com términos bem delimitados. O final de uma história sempre nos dá um senso de equilíbrio e de lógica.Tornou-se crucial para nossa percepção do mundo, particularmente em sociedades onde as concepções lineares do tempo são dominantes. O fim é um modo de construir um sentido para uma existência desestruturada.

Nossa experiência com a pandemia tem sido acompanhada pelas características de nosso momento atual como civilização. As inevitáveis comparações com as guerras mundiais e outras pandemias , como a gripe espanhola, revelam um desejo de compreender a covid-19 como uma história datada.

 O conceito de término de uma narrativa é relacionado ao conceito da “necessidade” do término. Na psicanálise é descrito como uma resistência ao desconforto da ambiguidade. Na verdade, o término é visto como um possível obstáculo, um processo pelo qual um indivíduo ou uma sociedade recebem julgamentos prematuros.

É possível que a história da covid entre para um cenário confuso, longo, um processo no qual o vírus — controlado pela vacina e pela imunidade de grupo — ainda ocasione poucas fatalidades e menos complicações crônicas, se tornando algo “como uma gripe”.Enquanto isso fantasias do final — numa narrativa de progressão linear — têm sido construídas por diversos países.Ficou famosa na Inglaterra a expressão “freedom day” que decretava uma data para a liberdade das pessoas. Infelizmente , foi uma experiência catastrófica.

É possível fazer uma analogia com a hiponcondria. Ela é uma experiência de términos frustrados. O hipocondríaco busca,obssessivamente,um fim para os seus problemas.Uma verdadeira crença numa narrativa linear da medicina. Uma resposta racional à expectativa que a medicina tenha a resposta para tudo. A hipocondria é anterior à internet mas se expandiu após a disseminação desta.

Para quem estuda ciência e sociedade está claro que mais informação não leva a maiores certezas. O que se obtém da internet não é um narrador com toda a sabedoria que terá as respostas pata todas as nossas questões. Basta digitar no Google : quando a pandemia irá terminar ¿

Dúvida e incerteza não podem ser erradicadas da medicina: são fundamentais para a sua própria existência. Negá-las é tornar o sistema médico menos confiável.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

a visão realista

 

Neste momento desafiador em que vivemos é uma árdua tarefa ser otimista. As consequências das mudanças climáticas , os conflitos ideológicos e religiosos , os expoentes do fascismo , a pandemia...tudo se configura ameaçador num mundo liquido.

É um lugar comum , diante de tantas dificuldades ,se comparar o presente com um passado na maioria das vezes saudoso . Num artigo para a revista  Wired , o então presidente dos EUA Barack Obama escreveu (com otimismo característico): ...se você tivesse que escolher qualquer momento no curso da história humana para estar vivo, deveria escolher este.' No seu livro C'était mieux avant!('Antes era melhor!'), o filósofo francês Michel Serres elogiou os sucessos da ciência e da razão enquanto zombava de nossa tendência de ver o passado através das lentes seletivas e tingidas de nostalgia. Serres lembra que 'antes' havia mais trabalho, em condições mais difíceis, com menos suporte de tecnologia. Havia um saneamento precário e cuidados de saúde menos eficazes. Houve mais conflito, mais violência. Os 'bons e velhos' dias talvez não fossem tão bons em comparação com o presente. O psicólogo canadense Steven Pinker defenderia uma visão semelhante apenas um ano depois em seu livro Enlightenment Now . A ideia de que o mundo está piorando, argumentou ele, é equivocada.

Os dados mostram claramente que Obama, Serres e Pinker estão certos sobre certas medidas objetivas de bem-estar - mas muitas pessoas se sentem infelizes. Em alguns lugares, incluindo os EUA, pesquisas mostram que a idéia de felicidade está realmente em declínio .

Como devemos ver o estado do mundo: com otimismo ou pessimismo? Essa resposta exige uma analise do balanço entre a bondade e os males que nos afligem. Podemos reconhecer que as coisas melhoraram dramaticamente e ainda sermos mais prudentes quanto à nossa situação atual e perspectivas futuras.

A maioria das pessoas tem percalços ao longo da vida lidando com aspectos dolorosos da realidade por meio de uma mistura de ignorância, indiferença e evasão. Embora os avanços históricos devam ser celebrados, eles podem, se não formos cuidadosos, nos distrair de lidar com fatos difíceis; e não aceitar esses fatos difíceis pode nos impedir de viver bem.

Quando olhamos para a condição humana é preciso entender a inevitabilidade do sofrimento - tanto para nós quanto para aqueles que nos são próximos. Essas coisas pesam na consciência da maioria das pessoas em algum momento. Muitos experimentam a dolorosa solidão da vida, uma incapacidade de comunicar plenamente cada experiência aos outros ou de compreender a deles. E apesar das várias formas de progresso, continuam a existir injustiças inadmissíveis.

Poucos refletem sobre nossa impotência para o destino final de tudo. A natureza efêmera de nossos projetos e realizações, poucos dos quais perduram por um período de tempo significativo. Não importa quantos anos extras de vida a tecnologia médica nos deu, se uma pessoa está vivendo uma vida que ela sente ser sem sentido - ou significativa de uma forma superficial – os anos adicionais não se traduzem em anos extras de satisfação, muito menos de realização ou alegria. Sabemos que isso é verdade em algum nível abstrato, mas temos dificuldade em enfrentá-lo ou entendê-lo. Em vez disso, a maioria das pessoas escolhe , por fuga talvez, lidar com o lado mais escuro da realidade por meio de uma mistura de ignorância, indiferença e evitação.

Uma razão  óbvia pela qual devemos pensar mais sobre a dura realidade da vida é que não podemos evitá-la. Os fatos irão se impor sobre nós. Nenhum progresso ou riqueza nos permitirá ignorá-los para sempre. Por fim, nossa relutância em ver a realidade como ela é leva a formas adicionais de sofrimento como resultado de prioridades desalinhadas.

Nosso destino espinhoso é ver a realidade com os olhos abertos desde o início e ordenar nossas prioridades com base em uma avaliação clara das coisas. Quando, distraídos por nossa boa sorte (saúde, riqueza, segurança), ignoramos as duras realidades que não podemos evitar em nossa própria vida e desconsideramos as de outras pessoas estamos numa espécie de catarse passageira.

Jamais eliminaremos a perda, a decadência, o sofrimento e a morte do mundo. Não se trata de aceitar o mundo como ele é - seja porque a teodicéia nos diz que é perfeito, ou porque o filósofo alemão Friedrich Nietzsche nos diz que devemos dizer "sim" a cada detalhe " inexpressivamente pequeno", ou por alguma outra razão. A questão não é ceder ao desespero ou insistir obsessivamente nas maneiras pelas quais a realidade não é o que poderia ser. Isso não é mais aconselhável do que fechar os olhos às falhas do mundo. A questão, ao contrário, é dar à realidade o que é devido. Quando o fazemos, encontramos mais do que apenas uma catástrofe. Se os olhos abertos nos permitem ver os naufrágios do mundo com mais clareza, eles também nos mostram outra coisa.

A honestidade clara sobre as coisas acaba com a felicidade ingênua ou inocente mas abre a possibilidade para algo mais maduro. Os humanos são os únicos seres que, além de experimentar as coisas como boas em relação aos seus próprios desejos, interesses e objetivos, também podem apreciá-los como bons em si mesmos, bons independentemente de sua relação com nós,totalmente independente de nosso próprio ser.

domingo, 5 de setembro de 2021

negacionismo

 

A pandemia já matou 4,5 milhões de pessoas em todo o mundo – 581 mil só no Brasil –, mas ainda há muita gente capaz de afirmar que ela não existe..Nos Estados Unidos, onde 99% das mortes atuais por covid-19 são de pessoas que não se vacinaram – porque negam a eficácia das vacinas – o governo considera viver outra pandemia dentro da pandemia do coronavírus: a dos negacionistas.. Mas, afinal, o que essas pessoas tanto negam? E desde quando elas se tornaram tão numerosas – ou, pelo menos, tão presentes?

Ao longo da história, pessoas e grupos políticos têm negado de tudo um pouco. E, embora o termo negacionismo tenha se popularizado nos últimos anos, o fenômeno não é novo, nem nasceu junto com comportamentos da extrema-direita.Ele remonta ao final da Idade Média e início da Idade Moderna, quando algumas descobertas científicas ameaçavam os dogmas religiosos. As autoridades religiosas negavam os avanços científicos e as reflexões feitas pelos filósofos humanistas.

Os negacionistas se preocupam em reafirmar sua ideologia – e negar o que pode ser visto como uma ameaça ao seu poder.O que os move, em geral, é a preocupação em negar tudo aquilo que é inconveniente às suas ideologias religiosas e sociais.Muitas vezes estão à serviço da politica. No caso da Igreja, o seu monopólio sobre os fiéis e a sua forma de pensar era um meio de manutenção do seu poder político e social. Foi essa preocupação que fez com que a Inquisição romana perseguisse e condenasse Giordano Bruno à morte, no final do século XVI. O frade, filósofo, teólogo e matemático napolitano foi acusado de heresia ao questionar uma série de dogmas da Igreja Católica e ainda defender a existência de vida em outros planetas. A teoria conhecida como pluralismo cósmico acabou culminando na morte de Giordano Bruno em 1600, numa fogueira em Roma, com plateia e tudo. Quem não quis ter o mesmo fim, acabou negando suas próprias descobertas científicas.Foi o caso de Galileu Galilei, que desenvolveu a teoria do heliocentrismo, indo contra o dogma geocêntrico da Igreja, que era baseado em interpretações bíblicas. Tais descobertas eram vistas como uma espécie de afronta a Deus.

A teoria de que o Sol é o centro do universo de Galileu Galilei se estabeleceu. Mas, outras descobertas científicas ainda são negadas por alguns grupos, como os que acreditam que a terra é plana, medida há mais de 2 mil anos por Eratóstenes.

É possível falar em negacionismo sempre que algum movimento político ou algum indivíduo nega o que a ciência já comprovou com base em pesquisas empíricas ou em reflexões baseadas no método científico. É o que acontece, por exemplo, quando grupos ou pessoas negam a existência da pandemia, a eficácia das vacinas, a circunferência da Terra, os efeitos do aquecimento global ou – um caso clássico de negacionismo – o Holocausto.

A ciência entra na mira dos negacionistas por ser uma forma de autoridade.

Na era das transformações digitais, onde todo mundo é um pouco produtor de conteúdo, as coisas tendem a sair do controle. O negacionismo passa a se confundir, inclusive, com a desinformação.Deixa de ser um boato que atingia pequenas comunidades. Torna-se lucrativo : alguém monta uma página numa rede social ou um canal no Youtube para alimentar essas teorias da conspiração, ganha dinheiro, amplia a audiência etc.

No caso da pandemia, envolve o nosso medo e a nossa vontade individual. A pessoa vê a notícia ruim e começa a negar, a não aceitar. E aí ela começa a buscar informações até achar algo que diga o que ela quer. Cria-se a dúvida (não a dúvida saudável), a insegurança. Vence-se o debate (em questões que nem deveria haver um) pelo grito, pela retórica e apelo emocional e se convence as pessoas a fazerem escolhas erradas para sua saúde.

O negacionismo não se firma em um método.As estratégias negacionistas são muito diversas e apresentam diferentes nuances. Podem se manifestar tanto na forma de comportamentos quanto de discursos, se baseiam em generalizações, omissões ou mesmo ataques diretos à ciência e aos historiadores.

Se é pelas redes sociais que os negacionistas ganham espaço, constroem suas narrativas e convencem outras pessoas, esse parece ser, também, o melhor ambiente onde cientistas e outros pesquisadores podem combater esse tipo de atuação. O desafio é valorizar o papel da ciência e se comunicar melhor com a sociedade.

sábado, 4 de setembro de 2021

resiliencia

 

A pandemia nos trouxe mais do que uma cota de tragédias humanas. Cerca de quatro milhões de pessoas já morreram mas são incontáveis os humanos que ficaram de luto.

O luto é uma resposta natural e inevitável. Porém, para muitos, ele foi agravado pelas circunstâncias em que ocorreu: experiências de solidão no final da vida, impossibilidade do adeus ,funerais isolados e restritos.

Nos milhões que vivenciam os efeitos da perda é importante ressaltar que as crianças são particularmente vulneráveis ​​aos efeitos do luto a longo prazo, com a maioria apresentando  transtornos mentais nas primeiras duas décadas de vida. A pandemia afetou mais de 2,5 bilhões de crianças e jovens em todo o mundo.Estudos sobre os efeitos em sua saúde mental e bem-estar ainda são precoces, mas aprender com os desastres de grande escala anteriores pode ajudar a moldar nossa compreensão e resposta. Os jovens encaram mudanças repentinas devido ao rompimento das rotinas normais, fechamento de escolas, dificuldades financeiras e falta de acesso a ajuda profissional.

Em tempos de perda e incerteza, a comunicação mais clara ajuda a criar resiliência. Mas será que a pandemia melhorou nossa capacidade de falar sobre a morte? As evidências sugerem  que as pessoas agora estão mais à vontade para falar sobre o luto e mais capazes de pensar sobre sua própria mortalidade. E isso deveria ser uma verdade também para os médicos, que têm seu próprio luto para reconhecer e devem abrir espaço para o luto pela morte de pacientes, colegas, familiares ou amigos. Os médicos são frequentemente encorajados ou mesmo obrigados a deixar de lado sua própria dor em nome do profissionalismo e do atendimento eficiente ao paciente. Mas isso pode nos tornar menos autênticos e mais solitários. Ser aberto sobre nossas próprias experiências de luto, mostrando “a força da vulnerabilidade”, pode ajudar os outros e também a nós mesmos a mudar ainda mais as atitudes da sociedade em relação à morte e à perda.

Estender uma atitude solidária e incondicional às pessoas enlutadas e a nós mesmos pode ser tudo o que podemos oferecer.E isso pode ser o suficiente.