Todos estamos ansiosos pelo fim da pandemia. Como num filme
, aguardamos pelos créditos finais. Os filmes que já abordaram situações
pandêmicas , como “ Contágio” , têm narrativas que se aplicam aos enredos que
prendem o público : o inicio de uma nova infecção ( o paciente “zero”), o
diagnóstico na medida em que ela se expande (uma ameaça global) e a cura (as
vacinas).
Na medida em que nos aproximamos do segundo ano da covid-19,
o vírus nos mostra que não estamos vivendo um filme com final feliz. A vacina
já está pronta mas segue um caminho fragmentado , vagaroso , desigual e , em
alguns lugares , negada ou temida pela população. Em diversos países com taxas
maiores de imunização as pessoas declararam , independentemente , que a
pandemia já acabou. Porém em países sub desenvolvidos menos de 2% da população
recebeu as duas doses. Lockdowns acontecem de modo inconstante,fronteiras são
fechadas para logo depois serem abertas. Muitos estão vivendo com sequelas
permanentes ou transitórias da doença. Ao invés de um fim, estamos cada vez
mais ouvindo a possibilidade de que temos que aprender a viver com o vírus.
O significado universal de “ viver com o vírus” é aprender a
viver com a incerteza. Isso assusta a muitos pois é , fundamentalmente, uma
forma estranha de racionalismo empírico. Ao mesmo tempo que pode encorajar o
desenvolvimento de estratégias para inibir a sua transmissão também nos distancia
de um final feliz.
A internet é frequentemente acusada de fomentar narrativas
alternativas sem embasamento científico.Mas o conhecimento médico moderno
também tem sido vulnerável à dúvida. Precisamos atentar ao fato que o fim das
narrativas pode ocorrer de diversas formas , nem sempre com términos bem
delimitados. O final de uma história sempre nos dá um senso de equilíbrio e de
lógica.Tornou-se crucial para nossa percepção do mundo, particularmente em
sociedades onde as concepções lineares do tempo são dominantes. O fim é um modo
de construir um sentido para uma existência desestruturada.
Nossa experiência com a pandemia tem sido acompanhada pelas características
de nosso momento atual como civilização. As inevitáveis comparações com as guerras
mundiais e outras pandemias , como a gripe espanhola, revelam um desejo de
compreender a covid-19 como uma história datada.
O conceito de término
de uma narrativa é relacionado ao conceito da “necessidade” do término. Na
psicanálise é descrito como uma resistência ao desconforto da ambiguidade. Na
verdade, o término é visto como um possível obstáculo, um processo pelo qual um
indivíduo ou uma sociedade recebem julgamentos prematuros.
É possível que a história da covid entre para um cenário
confuso, longo, um processo no qual o vírus — controlado pela vacina e pela
imunidade de grupo — ainda ocasione poucas fatalidades e menos complicações
crônicas, se tornando algo “como uma gripe”.Enquanto isso fantasias do final — numa
narrativa de progressão linear — têm sido construídas por diversos países.Ficou
famosa na Inglaterra a expressão “freedom day” que decretava uma data para a
liberdade das pessoas. Infelizmente , foi uma experiência catastrófica.
É possível fazer uma analogia com a hiponcondria. Ela é uma
experiência de términos frustrados. O hipocondríaco busca,obssessivamente,um
fim para os seus problemas.Uma verdadeira crença numa narrativa linear da
medicina. Uma resposta racional à expectativa que a medicina tenha a resposta
para tudo. A hipocondria é anterior à internet mas se expandiu após a
disseminação desta.
Para quem estuda ciência e sociedade está claro que mais
informação não leva a maiores certezas. O que se obtém da internet não é um
narrador com toda a sabedoria que terá as respostas pata todas as nossas
questões. Basta digitar no Google : quando a pandemia irá terminar ¿
Dúvida e incerteza não podem ser erradicadas da medicina:
são fundamentais para a sua própria existência. Negá-las é tornar o sistema médico
menos confiável.