As abordagens ocidentais ao conhecimento frequentemente
tomam como certo o postulado de René Descartes , Cogito, ergo sum –
"Penso, logo existo". Ao fazê-lo, tipicamente pressupõem uma divisão
cartesiana entre mente e corpo. Ou seja, entre a res cogitans imaterial (ou
"substância pensante", que Descartes equipara à alma) e a res extensa
material ("substância extensa") que constitui a "matéria"
concreta do mundo natural. O conhecimento, se existe em algum lugar, existe
diretamente na mente – uma mente totalmente desvinculada do mundo natural.
O conhecimento, nessa visão, é abstrato e desencarnado. São
nossas mentes imateriais e racionais que pensam. O mundo e, por extensão,
nossos corpos são comparativamente disfuncionais – nada mais do que matéria
extensa que nossas mentes racionais experimentam. Juntamente com as leis do
movimento de Isaac Newton, a compreensão mecanicista da natureza de Descartes
serviu como um pilar fundamental do materialismo científico, o paradigma
científico dominante nas sociedades ocidentais. Tal visão de mundo, no entanto,
serve, em última análise, para separar a humanidade da natureza e, em virtude
disso, de nós mesmos (se nos entendermos como seres "naturais" e não
apenas "racionais").
Embora as concepções ocidentais de conhecimento atuais
possam não ser explicitamente cartesianas, existe, ainda assim, um
cartesianismo residual que contamina nossa compreensão cotidiana do mundo. É um
modo hierárquico de pensamento que expressa e informa os valores da nossa
cultura. Por exemplo, a ideia de que a mente existe para além do mundo natural
é frequentemente revelada em afirmações descartáveis como "mente sobre a
matéria". Podemos nos ver casualmente recorrendo a descrições dualistas de
nossos corpos como se fôssemos cartesianos de carteirinha – atletas aposentados
são particularmente exempos disso: a mente quer continuar, mas o corpo está me
decepcionando.
Mas esta não é a única maneira de compreender a nós mesmos e
ao nosso mundo. De fato, existem muitas alternativas que podemos considerar,
tanto dentro quanto fora da tradição intelectual ocidental. Em vez de
considerá-las isoladamente, podemos tentar vê-las em conjunto como modos de
pensamento aliados.Conexões por meio da consideração dos insights
complementares podem ser encontrados nas obras do matemático inglês Alfred
North Whitehead, do existencialista francês Maurice Merleau-Ponty e da
sabedoria muito mais antiga dos conhecimentos tradicionais indígenas
australianos – ou o que a antropóloga australiana Deborah Bird Rose chamou de
"ética da terra aborígene".
Esta é a maneira de Rose resumir os ricos e complexos
sistemas de conhecimento das comunidades indígenas com as quais ela viveu e
estudou: os povos Ngarinman e Ngaliwurru das comunidades Yarralin e Lingara no
Território do Norte da Austrália. Este é um sistema de conhecimento que entende
que solos, águas, plantas e animais – em suma, o que Descartes relega à res
extensa – têm valor moral e intelectual. Ou seja, têm algo importante a dizer.
Tal compreensão da natureza é totalmente oposta à concepção cartesiana do
conhecimento e da natureza.
Central ao conhecimento sazonal do povo Yarralin é a ideia
de que "eventos separados, mas simultâneos, mantêm uma relação
comunicativa entre si. Segundo esse entendimento, os eventos na natureza não
são isolados nem sem sentido, mas sim codificados com uma espécie de ritmo de
chamada e resposta que transmite conhecimento através de um "sistema"
mais amplo da natureza. Como observa Rose: "Este sistema de informação é
baseado em mensagens enviadas por diferentes agentes dentro do sistema,
'informando' sobre o sistema."
A palavra que muitos grupos indígenas australianos usam para
caracterizar tal sistema é o termo enganosamente simples "País".
Entendido como um lugar "vivido e com o qual se convive", o País é
descrito por Rose como uma "entidade viva" que "conhece, ouve,
cheira, toma nota, cuida" e que pode até mesmo "estar triste ou
feliz". Tal compreensão da natureza e do nosso lugar nela se opõe
fortemente à concepção cartesiana de conhecimento e natureza.
Essa maneira localizada e corporificada de conhecer a nós
mesmos e ao nosso entorno encontra eco na obra de Merleau-Ponty no século XX.
Encontramos isso mais claramente expresso em sua descrição dos hábitos e dos
processos de habituação pelos quais nossos corpos passam quando nos
familiarizamos com certos objetos. Considere seu exemplo de uma pessoa cega e
uma bengala que ela usa para sentir (e, portanto, compreender) o ambiente ao
seu redor. Como Merleau-Ponty coloca em Fenomenologia da Percepção (1945):
“Quando a bengala se torna um instrumento familiar, o mundo
dos objetos táteis se expande, não mais começando na pele da mão, mas na ponta
da bengala... a bengala não é mais um objeto que o cego perceberia, ela se
tornou um instrumento com o qual ele percebe. É um apêndice do corpo, ou a
extensão da síntese corporal.”
Um relato semelhante encontra-se no exemplo de Merleau-Ponty
sobre um datilógrafo e sua máquina de escrever. Ele observa que "o sujeito
que aprende a digitar literalmente incorpora o espaço do teclado ao seu espaço
corporal" . Tal é a conexão entre o indivíduo e os objetos que tais
objetos podem ser vistos como uma extensão do corpo vivido. Ou seja, não apenas
a bengala ou a máquina de escrever deixam de ser objetos comuns, como são
literalmente "incorporados" como apêndices do corpo vivido.
O conhecimento da bengala, no entanto, não é um conhecimento
intelectual – é um conhecimento que reside "nas mãos". Sentimos com
uma bengala; não necessariamente "pensamos" com ela. No entanto, ela
nos diz algo vitalmente importante sobre o mundo em que vivemos. Da mesma
forma, o conhecimento de como digitar não é um conhecimento intelectual em si .
Temos maior probabilidade de cometer erros ao digitar se pensarmos demais – se
agirmos como uma alma cartesiana pilotando um corpo mecânico. De acordo com
Merleau-Ponty, a habituação reflete uma forma mais primordial e concreta de
conhecimento na carne de nossos corpos que sustenta nosso pensamento mais
abstrato. Ele leva essa noção mais adiante em suas obras posteriores e
inacabadas por meio da ideia de la chair du monde – a carne do mundo – por meio
da qual se diz que a carne do meu corpo e a carne do mundo são feitas de la
même étoffe – a mesma matéria.
Há evidências que sugerem que a noção de "carne"
de Merleau-Ponty foi parcialmente inspirada pela filosofia processual de
Whitehead. A filosofia processual sustenta que a realidade fundamental é
composta de processos e não de coisas. Inspirado por avanços científicos que
lançam dúvidas sobre a rígida visão de mundo cartesiana/newtoniana (como os
desenvolvimentos na física quântica e a teoria da relatividade de Albert
Einstein), Whitehead identificou a necessidade de uma nova metafísica para dar
conta das novas ciências não mecanicistas do século XX. Na medida em que o
mundo que vivenciamos é compreendido como constituído por uma complexa teia de
processos abertos e inter-relacionados, o de Whitehead é um esquema metafísico
no qual cada evento, cada ocorrência – não importa quão pequena ou
aparentemente insignificante nos pareça – é entendida como significativa em si
mesma e, em virtude disso, para o mundo em que está inserida. Consequentemente,
não pode haver distinção nítida entre os eventos da natureza. O conhecimento
não está apenas em nossa carne, mas na carne do mundo, feita da mesma matéria
que a carne do corpo.
Em vez da natureza "morta" do materialismo
científico, Whitehead apresenta uma visão da natureza como "viva" –
uma natureza dinâmica, em desenvolvimento e em constante diálogo consigo mesma.
Nesse sentido, Whitehead chega a se referir ao seu esquema metafísico como uma
"filosofia do organismo". Na filosofia do organismo, em vez da
matéria bruta e sem vida, a própria natureza é entendida como composta de
"gotas de experiência". Assim como na filosofia da carne de
Merleau-Ponty – e embora o vocabulário e o ponto de partida cultural sejam
muito diferentes – essa caracterização do mundo natural pode soar um pouco como
as concepções indígenas australianas de Country.
Adotar uma fenomenologia de "processo" informada
por Whitehead proporciona uma nova maneira de interpretar os insights de
Merleau-Ponty no que diz respeito à habituação. Enquanto para Merleau-Ponty o
conhecimento estava "nas mãos" – no corpo – uma leitura whiteheadiana
nos permite estender isso ainda mais, afirmando que o conhecimento não está
apenas em nossa carne, mas na carne do mundo que, segundo Merleau-Ponty, é
feita da mesma matéria que a carne do corpo. Em vez de uma relação dualística,
nos tornamos "um", em certo sentido, com a bengala.
Dessa forma, uma ética territorial aborígene parece sugerir
que existe um conhecimento na terra – na paisagem viva e pulsante que nos dá à
luz como a mãe de todos nós. À primeira
vista, há um incômodo visível mas também há uma significação invisível; um
conhecimento que está disponível para aqueles que estão habituados à terra e,
portanto, a uma forma particular de conhecer.
Apesar de sua prevalência na cultura ocidental, o dualismo
cartesiano tem recebido muitas críticas, tanto de dentro quanto de fora da
tradição filosófica ocidental. Embora tais críticas possam, por si só, oferecer
alternativas convincentes à visão de mundo cartesiana, colocar essas tradições
em diálogo entre si pode nos ajudar a desenvolver uma linguagem intercultural
por meio da qual possamos esperar transcender o paradigma cartesiano, tanto de
dentro quanto de fora da tradição ocidental.
Assim como há algo valioso a ser ganho ao colocar Whitehead
e Merleau-Ponty em diálogo, também há muito a ser ganho ao colocar essas ideias
em diálogo com saberes não ocidentais. O conhecimento indígena nos convida não
apenas a sentir mas a nos perguntar o que o país pode estar nos dizendo, mas
também nos oferece uma oportunidade de ouvir aqueles que já possuem esse
conhecimento.
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