A progressiva consolidação e, hoje, onipresença da internet
e suas redes sociais como espaço de produção de sentidos levaram as sociedades
contemporâneas a uma espécie de caos comunicacional, que coloca em disputa o
desafio permanente de estabelecer o que é verdade. Ou, como postula o filósofo
e historiador francês Michel Foucault(1926-1984), a “política geral” da
verdade, o regime discursivo que, desde o século XV, com base no pensar e fazer
científico, detinha a primazia de distinguir o verdadeiro e o falso dos
enunciados em circulação no espaço público.
Hoje , o estatuto de verdade baseado na ciência – e
difundido por canais legitimados pela comunidade perita, entre eles a imprensa
generalista –, já não é hegemônico.
Com a emergência do mundo virtual, a informação de
qualidade, aquela submetida a diferentes níveis de validação e checagem, passou
a disputar o espaço público com uma miríade de fenômenos discursivos –
negacionismos, desinformação/misinformação, fake news, infodemia – que instauraram
a chamada “pós-verdade”. Eleita a palavra do ano de 2016, a pós-verdade foi
tecida num longo processo de tensionamentos da credibilidade da política, da
imprensa e da própria ciência, instituições centrais do projeto moderno que
nomeou, enfim, um complexo regime discursivo, o qual, desde o início do século
XXI, sob uma nova ordem neoliberal, viabilizou a emergência de tecnologias de
informação e comunicação (TIC) e a expansão da internet.
Esse aparato sociotécnico colocou em concorrência dois regimes
discursivos: de um lado, o da verdade baseada no saber científico, em corpos de
saber disciplinares; de outro, o da pós-verdade, fincado no testemunho pessoal,
na emoção, na crença e nos valores subjetivos.
Embora boatos sejam tão antigos quanto a própria necessidade
humana de se comunicar, a pós-verdade é um fenômeno do nosso tempo,
estreitamente vinculado às mídias digitais, que impuseram outra forma de
circulação das informações, viabilizando a propagação massiva das mensagens e
afetos, sejam eles baseados em regimes de verdade (disciplinares) ou de
pós-verdade (testemunhais), em tempo real e incontrolavelmente.
De abrangência global, esses discursos fraudulentos ganharam
escala, afetando de modo generalizado todas as dimensões da vida cotidiana, em
particular as mais sensíveis, como a saúde. E impôs desafios inéditos e
complexos aos sistemas de gestão, que agora, além de enfrentar questões
clássicas do processo saúde-doença, também precisam lidar com discursos que
negam a ciência e desinformam, tais como:
recusa e menosprezo a ações de saúde baseadas em evidência;
defesa e prescrição de protocolos cientificamente ineficazes
ou mesmo de risco;
campanhas de difamação, desqualificação e deslegitimação de
políticas, programas e ações públicas de saúde.
Potencialmente, esses discursos afetam a tomada de decisão
de cada indivíduo e da coletividade quanto ao cuidado que aceitarão receber dos
sistemas e dos profissionais de saúde, produzindo novos eventos ou contribuindo
para o agravamento de velhos conhecidos da saúde coletiva. Para ficar num só
exemplo, estudos brasileiros já demonstram que o negacionismo, a desinformação
e as fake news são os principais fatores de hesitação vacinal na imunização
contra a covid-19. Daí a distinção conceitual entre esses fenômenos ser uma das
estratégias para o seu enfrentamento.
Classicamente, negacionismo é o discurso que recusa/nega o
método científico, emergindo contemporaneamente como a expressão de “uma crise
epistemológica, que se traduz na perda de confiança em instituições
fundamentais da sociedade, dentre as quais a própria universidade [academia]”.
Os negacionistas – em geral pessoas sem especialização ou competência técnica,
mas também especialistas – se apropriam de símbolos e signos da ciência para
eleger novas autoridades epistêmicas, inventando competências que lhes dê
destaque na arena pública e, frequentemente, ganhos políticos e financeiros.
Subvertendo valores de reconhecimento e autoridade da
ciência, eles criam suas próprias autoridades, construindo seu discurso em
torno de argumentos retóricos pseudocientíficos que dão aparência de debate
legítimo onde ele nem sequer existe. Como regra, o discurso negacionista é
usado contra um consenso ou evidências contundentes por pessoas que têm poucos
ou nenhum fato para apoiar seu ponto de vista, empregando um conjunto de
táticas para causar impactos discursivos no curto prazo.
Vejamos a tática da seletividade, escolha deliberada de
dados fora do contexto para sugerir que os achados científicos estão errados.
Negacionistas seletivos valem-se do fato de que o conhecimento é sempre
provisório para sustentar seus argumentos em artigos isolados, com evidências
fracas ou já suplantadas. Um exemplo emblemático: o artigo que sugeriu a
associação entre vacina tríplice viral e autismo, publicado em 1998 no
prestigioso periódico The Lancet. Metodologicamente frágil, descobriu-se,
depois, que o estudo era também eticamente reprovável – seu autor convocou os
participantes, 12 pessoas, por meio de um advogado que também levantara fundos
para uma pesquisa que ele liderava sobre… vacina tríplice! Só mais de uma
década depois, em 2010, quando o médico teve seu registro cancelado pelo
conselho de medicina britânico, o periódico suprimiu o artigo de suas bases.
Apesar disso, é ainda hoje exaustivamente citado por militantes do movimento
antivacina.
Há também a tática dos falsos especialistas ou de produção
duvidosa. Vários desses negacionistas têm formação acadêmica e emprestam suas
credenciais para sustentar teses sem respaldo científico. No Brasil, sobretudo
no início da pandemia de covid-19, quando a comunidade científica ainda estava
mergulhada em profundas incertezas sobre o presente e o futuro, muitos médicos
sem quaisquer vivências em epidemiologia, virologia ou infectologia – campos de
excelência em eventos epidêmicos – apresentaram-se como especialistas nas redes
sociais e – pasmem! – na imprensa generalista. Os falsos especialistas também
propagam acusações que desacreditam o trabalho de cientistas sérios.
Por fim, temos a tática conspiracionista que prega que a
validação da ciência não seria o resultado do consenso entre pares com base em
evidências científicas, mas sim do envolvimento destes em uma conspiração
complexa e secreta. Logo no início da pandemia, em 2020, conspiracionistas inundaram
as redes sociais com a tese de que o vírus Sars-CoV-2 teria sido produzido em
laboratório pelo governo comunista chinês para destruir o Ocidente capitalista.
Já a desinformação é a tentativa deliberada (e
frequentemente orquestrada) de confundir ou manipular pessoas por meio de
informações desonestas, intencionalmente produzidas e disseminadas para causar
prejuízos. Seu par é a misinformação (neologismo do inglês misinformation), que
trata do compartilhamento de informação falsa, enganosa, equivocada ou
incorreta, mas sem intenção de prejudicar.
Já as fake news são definidas como agentes de desinformação
propositalmente criadas e disseminadas com o intuito de prejudicar e
influenciar pessoas, cuja principal característica é simular a estrutura
discursiva e os formatos documentais e jornalísticos.Talvez o fenômeno mais
conhecido seja seu uso com fins político-ideológicos, abarcando uma infinidade
de textos e contextos. São histórias falsas, muitas vezes sensacionalistas,
criadas para amplo compartilhamento on-line e com objetivo de gerar receitas
publicitárias por meio do tráfego internético, em geral para desacreditar
figuras públicas, movimentos políticos e sociais, sabotar empresas.
Por mais absurdos ou risíveis que possam parecer,esses discursos
nunca são inocentes, desinteressados, inconsequentes. Potencialmente, têm
consequências graves para as sociedades. No caso da covid-19, estudos nacionais
e internacionais já demonstraram como eles “bagunçaram” os sistemas de saúde,
sobrecarregando-os, desarticulando-os e, por fim, contribuindo para a morte de
pessoas.
Assim, o que está em jogo nesses fenômenos, de modo geral e
na saúde, em particular, é a tensão entre a confiança e a desconfiança na
política, na ciência e no Estado, em direção a uma experiência construída
pessoal e intimamente. Por seu potencial em colocar em risco a saúde e a vida
das pessoas e das populações, é imperioso combatê-los.
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