Os Estados Unidos apresentam mais mortes por COVID-19 do que
pelo furacão Katrina, mais do que após
os ataques terroristas de 11 de setembro, mais do que as quatro décadas da
pandemia de AIDS. Até metade de Março de 2022 , pelo menos 953.000 americanos
morreram de COVID, e o número real provavelmente é ainda maior porque muitas
mortes não foram contabilizadas .
A COVID é agora a terceira principal causa de morte nos EUA,
atrás das doenças cardíacas e do câncer. O número dessa tragédia sobrecarrega a
imaginação moral. Em 24 de maio de 2020, quando o páis ultrapassou 100.000
mortes registradas, o jornal New York Times publicou em sua primeira página os
nomes dos mortos, descrevendo sua perda como “incalculável”. Agora, a nação se
aproxima da marca de 1 milhão. O que é 10 vezes” incalculável” ?
Muitos países foram duramente afetados pela pandemia, mas
poucos se saíram tão mal quanto os EUA. Sua taxa de mortalidade superou a de
qualquer outra nação grande e rica – especialmente durante o recente surto de
Omicron . O governo Biden apostou todas as suas fichas em uma estratégia focada
na vacina , em vez dos estímulos e contenções de medidas de transmissão.O país
tem um histórico de negacionismo vacinal e ficou atrás de outros países ricos
na vacinação (e reforço) de seus cidadãos – especialmente os idosos , que são
mais vulneráveis ao vírus.
Em um estudo de 29
países de alta renda , os EUA experimentaram o maior declínio na expectativa de
vida em 2020 e, ao contrário de grande parte da Europa, não se recuperaram em
2021. Foi também o único país cuja expectativa de vida reduzida nos últimos anos
pela pela crise dos opioides, sofreu piora dos indices principalmente por
mortes entre pessoas com menos de 60 anos. Morrer de COVID roubou a cada
americano cerca de uma década de vida em média. Como um todo, a expectativa de
vida nos Estados Unidos caiu dois anos — o maior declínio desse tipo em quase
um século. Nem a Segunda Guerra Mundial, nem as pandemias de gripe prejudicaram
tanto a longevidade americana.
Cada americano que morreu de COVID deixou uma média de nove
parentes próximos enlutados . Aproximadamente 9 milhões de pessoas – 3% da
população – agora têm um vazio permanente em seu mundo que já foi preenchido
por um pai, filho, irmão, cônjuge ou avós. Estima-se que 149.000 crianças
perderam um pai ou cuidador. A muitas pessoas foram negados os rituais
familiares de luto – despedidas à beira do leito, funerais pessoais. Outros vêm
sofrendo perdas cruas e recentes, sua dor pisoteada em meio à debandada em
direção ao normal.
Atravessar 1 milhão de mortes deveria oferecer uma
oportunidade de uma séria reflexão das nossas atitudes. Começando por algumas
perguntas que aplicam ao modo de enfrentamento adotado em diversos países ,
incluindo o Brasil : Por que nenhuma estatística foi capaz de mudar o
comportamento social ? Por que tantos gestores se concentraram nas reaberturas
e flexibilizações em janeiro e fevereiro – o quarto e quinto meses mais mortais
da pandemia? Por que o CDC emitiu novas diretrizes que permitiu que a maioria
dos americanos dispensasse o uso de máscaras em ambientes internos quando pelo
menos 1.000 pessoas estavam morrendo de COVID todos os dias por quase seis
meses seguidos? Se os EUA enfrentassem meio ano de furacões diários, se um
prédio fosse derrubado por semana , se caíssem dois aviões lotados por dia não
haveria uma medida de prevenção fortemente implantada ? Por que, então, na
COVID é diferente?
Muitos aspectos da pandemia parecem ser contra um acerto de
contas social. A ameaça – um vírus – é invisível, e o dano que inflige está
oculto à maioria do público. Sem enchentes ou prédios fumegantes, a tragédia se
torna contestável em um grau que um desastre natural ou ataque terrorista não
pode ser. Enquanto isso, muitos daqueles que viveram a ruína da COVID não estão
em posição de discutir isso. Os profissionais de saúde ainda estão se
recuperando da “morte em uma escala que eu nunca tinham visto antes”. Os
enlutados enfrentam a culpa em cima da tristeza com alguns se responsabilizando
pela infecção de algum familiar ou amigo.
Para lidar com as consequências de um desastre, primeiro
deve haver uma consequência. Mas a pandemia de coronavírus ainda está em
andamento e parece tão grande que não podemos mais abraçá-la .Na medida em que a tragédia se torna rotina, as
mortes em excesso parecem menos excessivas. Níveis de sofrimento que antes
pareciam insuportáveis agora se assemelham a algo cotidiano. O mesmo processo
aconteceu há um século: em 1920, os EUA foram atingidos por uma quarta onda da
grande pandemia de gripe que havia começado dois anos antes, mas mesmo com a
morte em grande número de pessoas,praticamente nenhuma cidade mudou sua rotina.
As pessoas estavam cansadas da gripe, assim como os funcionários públicos. Os
jornais estavam cheios de notícias assustadoras sobre o vírus, mas ninguém se
importou.
O fatalismo também foi alimentado pelo fracasso. Governos
fracassaram no controle do vírus e transferiram a responsabilidade de fazê-lo
para os indivíduos . As vacinas trouxeram esperança, que foi frustrada à medida
que a aceitação estagnou, outras proteções foram revertidas prematuramente e a
variante Delta chegou . Durante essa onda, alguns países viveram um nível
chocante de morte e transmissão.. E mesmo assim a resposta política foi anêmica
na melhor das hipóteses.
Estamos aceitando não apenas um limiar de morte, mas também
um gradiente de morte. Idosos com mais de 75 anos têm 140 vezes mais chances de
morrer do que pessoas na faixa dos 20 anos. Entre as pessoas vacinadas, os
imunocomprometidos são responsáveis por uma parcela desproporcional de
doenças graves e morte . Pessoas não vacinadas têm 53 vezes mais chances de
morrer de COVID do que pessoas totalmente vacinadas; são também mais propensos
a não ter seguro de vida, ter renda mais baixa, menos educação e enfrentar o
risco de despejo e insegurança alimentar . Dentro de cada classe social e nível
educacional , negros, hispânicos e indígenas morreram em taxas mais altas do
que os brancos. Se todos os adultos tivessem morrido na mesma proporção que os
brancos com formação universitária, 71% menos pessoas de cor teriam perecido .
Pessoas de cor também morreram em idades mais jovens : em seu primeiro ano, o
COVID apagou 14 anos de progresso na redução da diferença de expectativa de
vida entre americanos negros e brancos.
Porque a morte veio de forma desigual, o mesmo aconteceu com
a dor: crianças negras tiveram duas
vezes mais chances de perder um pai para o COVID do que as brancas, e as
crianças indígenas, cinco vezes mais. Mais velhas, mais doentes, mais pobres,
mais negras ou mais pardas, as pessoas mortas pelo COVID foram tratadas tão
marginalmente na morte quanto em vida. Aceitar suas perdas é um retrato de uma
sociedade que hierarquiza o valor da vida humana.
Quando falamos em voltar ao normal é preciso refletir que
bem antes da COVID, as casas de repouso eram insuficientes , as pessoas com
deficiência eram negligenciadas e as pessoas de baixa renda eram desconectadas
dos cuidados de saúde. Neste aspecto, a normalização das mortes por COVID não é
surpreendente. Quando as mortes acontecem com pessoas que já não são
valorizadas é mais fácil não valorizar
suas vidas dessa maneira adicional.
Acetuou-se também as diferenças nos cuidados à saúde. Novas tratamentos,
vacinas e métodos diagnósticos foram primeiro para pessoas com poder , riqueza
e outros facilitadores; isso explica por que as desigualdades em saúde
persistem tão teimosamente ao longo das décadas , mesmo quando os problemas de
saúde mudam. O ativismo da AIDS, por exemplo, perdeu força e recursos uma vez
que os americanos brancos mais ricos tiveram acesso a medicamentos
antirretrovirais eficazes, deixando as comunidades negras mais pobres com altas
taxas de infecção.É sempre um perigo real que as coisas piorem quando as
pessoas com maior influência política estão bem. Da mesma forma, especialistas
que foram vacinados contra o COVID mais cedo começaram a argumentar contra o
excesso de cautelas e (incorretamente) prevendo o fim iminente da pandemia. O
governo também o fez, enquadrando a crise apenas como uma questão de escolha
pessoal , mesmo não conseguindo fazer testes rápidos, distribuir máscaras de
alta qualidade, coquetéis de anticorpos e vacinas acessíveis aos grupos mais
pobres.
Grande parte da atual retórica da pandemia – a conversa
prematura sobre endemicidade ; o foco nas comorbidades ; o debate de óbitos com
COVID ou por COVID , trata as mortes como descartáveis e "tão
inevitáveis que não merecem precaução". Assim como a violência armada,
overdoses, morte por distúrbios climáticos, doenças cardíacas e tabagismo ,a COVID
torna-se cada vez mais associada à escolha comportamental e à responsabilidade
individual e, portanto, cada vez mais invisível.
Ninguém sabe quantas pessoas morrerão de COVID nos próximos
anos. O número dependerá do nosso comportamento coletivo, da adesão de mais
pessoas à vacinação, da duração e a força da imunidade, novas variantes etc. É
possível que o COVID leve a óbito menos pessoas do que nos dois últimos, mas provavelmente
ainda será mais letal que a gripe.. Não esquecendo que o pós COVID continuará
causando incapacidades a longo prazo .
Quanto dessa mortalidade será “aceitável”? As novas
diretrizes do CDC fornecem uma pista. Eles recomendam que medidas de proteção
como uso de máscaras em ambientes internos seja liberado assim que as
comunidades atinjam certos limites de casos e hospitalizações . Mas os
especialistas em políticas de saúde calculam que quando essas comunidades chegarem
aos limites do CDC, elas estariam no índice de pelo menos três mortes diárias
por milhão, o que equivale a 1.000 mortes por dia em todo o Estados Unidos.
Se 1.000 mortes por dia não for aceitável, qual seria o
limite? A resposta clara - nenhuma! –infelizmente é impraticável, porque a
COVID já passou do ponto em que a erradicação é possível e porque todas as
intervenções têm pelo menos algum custo. Alguns sugeriram que deveríamos olhar
para outras causas de morte – digamos, 39.000 mortes de carro por ano, ou entre
12.000 e 52.000 mortes por gripe – como uma linha de base do que a sociedade
está preparada para tolerar. Mas esse argumento se baseia na falsa suposição de
que nossa aceitação dessas mortes é informada. A maioria de nós simplesmente não
sabe quantas pessoas morrem de várias causas – ou que é possível que menos o
faça . As medidas que protegem as pessoas do COVID reduziram as mortes de
adultos por gripe e quase eliminou viroses respiratórias entre as crianças.
Nossa aceitação dessas mortes nunca levou em conta as alternativas. Mesmo
quando os benefícios potenciais são claros, não há algoritmo universal que
equilibre a ruptura social de uma política com o número de vidas salvas. Em vez
disso, nossas atitudes sobre a prevenção da morte giram em torno de quão
possível parece e quanto nos importamos. Cerca de 40.000 americanos são mortos
por armas todos os anos, mas em vez de prevenir essas mortes nos organizamos em
torno da inevitabilidade da violência armada.
As desigualdades que
foram negligenciadas nesta pandemia irão desencadear a próxima. Melhorar a ventilação
em locais de trabalho, escolas e outros edifícios públicos evitaria mortes por
COVID e outros vírus respiratórios. O acesso equitativo a antivirais e outros
tratamentos pode ajudar pessoas imunocomprometidas que não podem ser protegidas
pela vacinação. Os cuidados de saúde universais ajudariam as pessoas mais
pobres, que ainda correm o maior risco de infecção.
Stephan Lewandowsky, da Universidade de Bristol, apresentou
uma amostra representativa de pessoas com dois possíveis futuros pós-COVID –
uma opção de “voltar ao normal” que enfatizava a recuperação econômica e uma
opção de “reconstruir melhor” que buscava reduzir as desigualdades. Ele
descobriu que a maioria das pessoas preferia o futuro mais progressivo — mas
erroneamente assumiu que a maioria das outras pessoas preferia um retorno ao
normal. Como tal, eles também consideraram esse futuro mais provável. Esse
fenômeno, onde as pessoas pensam que as opiniões generalizadas são minoritárias
e vice-versa, é chamado de ignorância pluralista. Muitas vezes ocorre por causa
da distorção ativa dos políticos e da imprensa. Isso é problemático porque com
o tempo, as pessoas tendem a ajustar suas opiniões no direção do que eles
percebem como a maioria. Ao assumir erroneamente que todos os outros querem
retornar ao status anterior, excluímos a possibilidade de criar algo melhor.
Ainda há tempo.