Em alguns casos de lesões cerebrais, uma pessoa não morre
nem se recupera de uma condição clínica e permanece em algum lugar entre o coma
e a vida desperta, um estado de "consciência desordenada", no qual a
qualidade de sua experiência subjetiva é difícil de discernir.
Existem camadas de
mistérios que permeiam aquilo que se convencionou chamar de estado
vegetativo.Esse termo foi utilizado pela primeira vez em 1972 pelos
neurocirurgiões Bryan Jennett e Fred Plum , que estavam preocupados com um novo
grupo de pacientes que estavam sendo mantidos vivos em diversas unidades de
terapia intensiva na Europa e nos Estados Unidos. Esses pacientes mantinham as
funções essenciais da vida de forma independente, mas sem resposta
conscientemente às coisas que aconteciam ao seu redor. Essa condição era
diferente do coma, onde não existem quaisquer tipos de respostas. Eles podem
mostrar comportamentos que, para o "observador inexperiente ou família
esperançosa", parecem muito com sinais de consciência: agarrar com as
mãos, movimentos oculares que parecem seguir objetos, afastamento de cheiros
nocivos, mastigar e ranger os dentes, engolir, coçar, chorar, até mesmo gemer
ou gritar. Mas tudo isso é considerado como reflexo.
Ao procurar um nome para esta condição, Jennett e Plum
consideraram uma série de termos que já existiam : coma vigile, síndrome
apálica, estado decorticado etc. O "estado vegetativo" foi amplamente
adotado na medicina convencional. Hoje, está incluído na 11ª edição da
Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (2022) e
listado como um dos três 'principais distúrbios da consciência' que resultam de
lesão cerebral.
No entanto, o termo vem causando danos e confusão desde a
sua concepção, perturbando pacientes e clínicos, e sendo cooptado para fins
políticos. Pacientes em estado vegetativo sempre estiveram no centro de um
movimento pelo direito de morrer, que influenciou a percepção de seu valor
social e qualidade de vida. Ao cuidar desses pacientes, os médicos tendem a
tomar decisões niilistas, como negligenciar o controle da dor... ou acelerar a
morte retirando prematuramente o suporte de vida. Em seu ensaio 'Bring Them
Back' (2016), o bioeticista Joseph Fins chama isso de 'uma espécie de
segregação neuronal' e conclui que, ao contrário do fatalismo em torno dos
distúrbios da consciência , agora há 'evidências incontestáveis' de que uma
alta porcentagem de pacientes diagnosticados como vegetativos estão de fato
conscientes e podem ser ajudados.
A nomenclatura diagnóstica é motivo de debate e é perigosa. Precisa ser reformulada. É também anticientífica, decorrendo não da observação,
mas de uma ideologia – uma metafísica que fragmenta o ser humano, privilegiando
a mente e negligenciando o corpo.
Talvez o antecedente mais antigo da metáfora vegetativa
possa ser encontrado nos escritos de Aristóteles.De acordo com sua
"hierarquia psíquica", as plantas tinham apenas a faculdade
"nutritiva" mais básica da alma. Elas poderiam "continuar
vivendo enquanto fossem capazes de se alimentar", mas não tinham
"nenhuma outra potencialidade". Os animais se distinguiam das plantas
por possuírem a faculdade perceptiva, aqueles sentidos que lhes davam
consciência do mundo ao seu redor. No topo da hierarquia estavam aqueles seres
com a faculdade do intelecto 'como o homem e qualquer outra criatura que possa
ser igual a ele ou superior a ele'.
Aristóteles também via as faculdades organizadas
hierarquicamente dentro do indivíduo, escrevendo que a mente é naturalmente
superior ao corpo. Isso normalizou a hierarquia presente na sociedade grega
naquela época. Homens adultos livres eram os governantes naturais por meio de
suas faculdades intelectuais mais desenvolvidas, 'pois o escravo não tem
nenhuma faculdade deliberativa; a mulher tem, mas é sem autoridade, e a criança
tem, mas é imatura.' Uma pessoa sem razão era "escrava por natureza".
O hábito de dividir formalmente o mundo em 'reinos' animal,
vegetal e mineral surgiu mais tarde, em conjunto com outra onda de
imperialismo, na Europa do século XVIII. À medida que a consciência da
biodiversidade do mundo aumentava, Carl Linnaeus defendeu o Systema Naturae
(1735), uma teoria taxonômica fortemente influenciada pela filosofia grega
antiga, que impôs ordem em um mundo confuso e demonstrou uma hierarquia de
valor divinamente ordenada. Como Linnaeus colocou em uma edição tardia do
Sistema , das três grandes divisões, 'o reino animal ocupa a posição mais alta
em estimativa comparativa, próximo ao vegetal, e o último e mais baixo é o
reino mineral'. O valor humano era conferido pela inteligência, uma faculdade
que ele tacitamente equiparava à capacidade de adquirir conhecimento. A raça
não era uma consideração periférica na ordem natural lineana, mas seu princípio
organizador: todas as criaturas eram de uma raça, e sua raça era o que definia
seu valor. E isso se aplica tanto entre os seres humanos quanto a qualquer
outra criatura. Nos termos de Linnaeus, por exemplo, os africanos eram "astutos,
indolentes, negligentes" e "governados pelo capricho", enquanto
os europeus eram "gentis, perspicazes, inventivos" e "governados
por leis".
A hierarquia taxonômica e psíquica também influenciou o
desenvolvimento da neurologia e da neurociência. Baseando-se diretamente em
Aristóteles, o anatomista do século XVIII Xavier Bichat dividiu o sistema
nervoso humano em 'vida animal', responsável por funções que eram 'puramente
intelectuais' e a 'vida vegetativa', responsável pela atividade de sustentação
da vida e que existia ' apenas dentro de si'. Para o neurologista e antropólogo
do século XIX Paul Broca, o valor humano era conferido pela inteligência, uma
faculdade que ele tacitamente equiparava à capacidade e vontade de adquirir e
comunicar conhecimentos segundo a tradição europeia.
Linnaeus não incluiu microorganismos em seu Sistema , mas,
com o crescimento dos dados observacionais, em meados do século 19 havia um
consenso de que um novo reino era necessário para acomodá-los. Sua diversidade
causou uma disputa demorada sobre qual nome derivado do grego era mais adequado
- protozoa ('primeiros animais'), protoctista ('primeiros seres criados') ou
protista ('aqueles que vieram primeiro no tempo'). Mas, como todos esses nomes
sugerem, o status primitivo dos micróbios não estava em dúvida. Os envolvidos
no debate habitualmente se referiam a eles como 'as formas inferiores de vida',
ou 'os organismos inferiores', reiterando sua simplicidade e assim mantendo a
arquitetura moral aceita.
O paradigma diagnóstico para o estado vegetativo segue essa
mesma tradição, construindo a consciência verticalmente e confundindo-a com a
virtude. O coma, o degrau mais baixo dessa escada da consciência, termina
quando os sinais de vigília fisiológica podem ser detectados – com o
ressurgimento do ciclo sono-vigília, da abertura dos olhos, das mudanças
diurnas nas funções corporais. O estado vegetativo é diagnosticado quando uma
pessoa não consegue progredir daqui – 'acordada, mas inconsciente', equipada
com 'meros reflexos'. Tradicionalmente, para uma pessoa ser movida para a
próxima categoria, chamada de estado minimamente consciente, ela precisa
mostrar pelo menos sinais intermitentes de capacidade de resposta 'proposital',
por exemplo, mover os olhos ou um dedo quando solicitado.
Quando Jennett e Plum criaram o estado vegetativo, eles
reconheceram que sua premissa poderia ser criticada com base no fato de que a
observação do comportamento é evidência insuficiente para basear um julgamento
da atividade mental, mas concluíram que "não há alternativa confiável
disponível para o estado vegetativo". Eles acreditavam que os clínicos
deveriam seguir em frente e usar o diagnóstico por razões de pragmatismo.
Pesquisas realizadas desde a década de 1990 demonstraram
repetidamente os danos causados por essa abordagem. Uma revisão de 40
pacientes previamente diagnosticados como vegetativos em 1996 mostrou que 17
eram capazes de demonstrar consciência por meio de comportamento deliberado
(por exemplo, movimentos oculares) se fossem observados com cuidado suficiente
– sugerindo que esses 17 haviam sido diagnosticados erroneamente devido às
inadequações do padrão observação clínica na qual Jennett e Plum sentiram que
podiam confiar. Estudos subseqüentes usando ressonância magnética funcional e
PET scan mostraram que mesmo alguns pacientes sem capacidade de responder
comportamentalmente podem fazê-lo por meio do pensamento intencional. Ao pedir
aos pacientes que imaginem diferentes atividades que produzem ativação de
ressonância magnética em diferentes áreas do cérebro (por exemplo, jogar tênis
versus se movimentar pela própria casa) e, em seguida, conectá-las com
respostas 'sim' e 'não' (tênis para 'sim', casa para 'não'), o neurocientista
Adrian Owen e seus colegas conseguiram estabelecer uma comunicação bidirecional
com os pacientes. Com esse método, os pacientes diagnosticados em estado
vegetativo identificaram com precisão destinos de férias anteriores,
reconheceram seus próprios nomes e os de entes queridos e demonstraram saber
que estão no hospital. Tomados em conjunto, esses estudos deixam claro que uma
proporção de pessoas diagnosticadas como vegetativas pode compreender a
linguagem, seguir instruções, sustentar e controlar sua própria atenção, tomar
decisões e entender e responder a narrativas complexas.
A conclusão não embasada do estado vegetativo desumaniza os
pacientes. “Vegetativo” pode facilmente ser ouvido como “vegetal”.' A palavra
vegetativo em si não é obscura: vegetar é definido no Oxford English Dictionary
como 'viver uma vida meramente física, desprovida de atividade intelectual ou
relações sociais' e é usado para
descrever 'um corpo orgânico capaz de crescer e desenvolvimento, mas desprovido
de sensação e pensamento'. Sugere até mesmo para o leigo uma capacidade de
resposta limitada e primitiva a estímulos externos.
As pessoas com transtornos da consciência são uma população
vulnerável e exposta a maior risco pelos diagnósticos que lhes são impostos. O
diagnóstico de 'estado vegetativo' dá aos médicos os meios de definir a consciência
de um paciente como inexistente, uma forma de contornar decisões difíceis e
evitar o que se chama de 'pântano' de diagnósticos mais ambíguos. Ao manter
essa nomenclatura diagnóstica, a profissão médica está descartando o direito
dos pacientes a cuidados adequados e demonstrando que isso não valoriza suas
vidas.
Se nossa abordagem da medicina seguisse a humildade
intelectual de Sócrates em vez da certeza preconceituosa de Aristóteles,
seríamos forçados a admitir que simplesmente não sabemos o quão conscientes são
as pessoas nessa condição - talvez até mesmo que 'distúrbios de consciência'
são impossíveis de diagnosticar. Quer sejam plantas, ou micróbios em uma placa
de Petri, ou pessoas em estados de consciência desordenada – em uma tradição de
humildade, tais seres inspirariam curiosidade e companheirismo.